quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

DIREITO DA FAMILIA - NOTAS AVULSAS

I

UNIÃO DE FACTO: JURISPUDÊNCIA SOBRE NATUREZA E EFEITOS DECORRENTES

Proc. 129/01 (Paulo Mota Pinto), disponível em www.tribunalconstitutcional.pt, tirado por maioria e contando com votos de vencido de BRAVO SERRA e JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA, em que se considerou poder chegar-se a uma solução de inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, por violação do artigo 36.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa conjugado com o princípio da proporcionalidade, por, em caso de morte da vítima de um crime doloso, excluir o direito de "indemnização por danos não patrimoniais" sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges. No aresto em questão, questionou-se, desde logo, se a pretendida extensão a tais pessoas do direito a indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima, previsto para o cônjuge no artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil, não poderá já hoje fazer-se decorrer da alínea e) do artigo 3.º da Lei n.º 7/2001, na qual se prevê o direito a «protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral (...) da lei». Além disso, partindo do pressuposto que a distinção entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de atribuição de uma compensação por danos não patrimoniais sofridos por morte da vítima, se afigura destituída de fundamento razoável, constitucionalmente relevante, afirmou-se poder-se chegar logo a uma conclusão de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade (que censura distinções sem fundamento racional, justo ou objectivo, discriminações arbitrárias e irrazoáveis ou baseadas em critérios não relevantes, exige uma comparação de situações e se apresenta como limite à liberdade de conformação do legislador, nomeadamente quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada), pois: a) a existência de um vínculo matrimonial, por contraposição à convivência em união estável e duradoura, não constitui só por si um fundamento razoável para excluir a compensação do sofrimento e da dor sofridos com a morte pela companheira da vítima de um homicídio doloso; b) na dimensão normativa em causa, não só o beneficiário da indemnização se encontra perfeitamente delimitado, e é apenas um (pretendendo ser colocado no mesmo plano do cônjuge, e, portanto, no primeiro grupo dos titulares de indemnização), como não merece certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à compensação de todos os danos que provocou com o homicídio; c) sob a perspectiva do fundamento para o reconhecimento da compensação, não se vê como possa relevar a existência de um vínculo matrimonial, em lugar apenas de uma convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em condições análogas às dos cônjuges, para excluir completamente a atendibilidade dos padecimentos sofridos por esta. E, ainda que se entendesse que da distinção entre a família e o casamento prevista no artigo 36.º, n.º 1 (1ª parte) e do artigo 67.º, n.º 1 ambos da Constituição da República Portuguesa não resulta uma imposição para o legislador de reconhecer e proteger, em geral, a união de facto estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, e a família nela fundada, em termos idênticos aos da família baseada no casamento, haveria certamente de extrair-se daí o dever de não desproteger, sem uma justificação razoável, a família que se não fundar no casamento, pelo menos quanto àqueles pontos do regime jurídico que directamente contendam com a protecção dos seus membros e que não sejam aceitáveis como instrumento de eventuais políticas de incentivo à família que se funda no casamento. Ora, não se afiguraria adequada e aceitável, à luz do reconhecimento constitucional de protecção também da família não fundada no casamento – e do próprio valor da dignidade humana –, a utilização do regime da "indemnização" pela dor e pelo sofrimento resultantes da morte para as pessoas que conviviam com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, como instrumento para a prossecução de eventuais objectivos políticos de incentivo à família fundada no casamento.


Decisão oposta
Todavia, a solução diametralmente oposta chegou a mesma secção do Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.º 86/2007 e 87/2007, 2.ª Secção, Proc. 26/2004 e Proc. 995/2005 (Paulo Mota Pinto) disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, tirados por maioria e contando com votos de vencido de MÁRIO JOSÉ DE ARAÚJO TORRES e MARIA FERNANDA PALMA, em que se decidiu que a norma do artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil, na medida em que não admite que a pessoa que vive em união de facto com uma vítima de acidente de viação, do qual resulte a morte dessa vítima, tenha o direito a receber uma indemnização por danos patrimoniais, não viola nem o princípio da igualdade nem o artigo 36.º, n.º 1 da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade. Afirmando que na situação anterior a norma do artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil não foi considerada inconstitucional, na interpretação então questionada, por violação do princípio da igualdade, mas antes, e apenas, «por violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade», começa o Tribunal Constitucional por considerar que, na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer.
[nota: nem tem de ser equiparada a opção pelo matrimónio a uma outra opção de vida íntima, norteada por critérios de organização interna que cada núcleo de pessoas escolha:
_ com repercussão sexual ou tendo na origem essa ligação, mas podendo ainda abranger outras formas de afectividade, como acontece com as Vidas em Economia Comum;
_ com aceitação recíproca de deveres pessoas, mas podendo estes diferir, seja em amplitude, seja em intensidade (dever de fidelidade com dimensão sexual norteada pelo exclusivismo, ou não; dever de assistência tão intenso quanto o que vincula tipicamente os cônjuges, ou menos do que esse dever;

Do que se fez a defesa, no Curso, foi da aproximação crescente de realidades institucionais que no passado se excluíam reciprocamente. Se o Casamento era instituição familiar, a união de facto, de conotação pejorativa e aproximável ao concubinato, não o era. Se perpassava o Direito do Casamento a influência do Direito canónico, natural seria que o matrimónio laico ainda colhesse naquele outro, parte da sua inspiração.
Ou seja: as formas de união sexual eram encaradas como conflituantes e algo antagónicas. Como se o direito da união de facto, o “concubinato”, representasse o “não Direito”, o plano juridicamente não contemplado. Ou o “pouco Direito”, o Direito de efeitos parcimoniosos e portador de consequências restritas, portanto.
Ora, que faz a ordem jurídica actual? Assume a diversidade e assumindo-a, a complexidade das formas de vivência íntima são acolhidas com congruência no mesmo seio jurídico.
Que critério vale para saber se uma união de facto é familiar ou quase familiar? O critério da opção por vida comum, ao alvedrio de cada par, mas vida comum em todo o caso.


Ainda que se tenham unido A e B para escrever um romance, ou fazer um filme, e projectado na sua vida pessoal a bizarria do enredo que para a obra vão construindo. Ainda assim: vivem em comum, é o seu modelo de união. O legislador tem de conhecer e reconhecer. E respeitar. Não foram à Conservatória, não registaram o momento? O Direito da Família demite-se desse aspecto. Mais importante será o afecto e o respeito que ele merece. Como merece respeito, constitucional, a liberdade de opção pela organização de vida constituída, posto que não colida com a Ordem Pública, com os bons costumes.

Numa relação sexuada;
Numa relação de intimidade que não torne esse aspecto da Vivência perceptível sequer,

É o sentido de intersubjectividade íntima, de cumplicidade de experiência e partilha quotidiana que define a Família.

É que estaremos (porventura) de acordo em convir que há mais mundo familiar do que o mundo do Matrimónio. E que ele corresponde a uma outra opção que a lei contempla e acolhe com dignidade. Acolhe no Direito da Família.
Aliás, ocorre perguntar: o que seria uma relação “parafamiliar”? Em que plano jurídico se situaria?
A “relação parafamiliar” é uma metáfora deslocada. O mundo institucional da vida partilhada com afecto é, na perspectiva do Direito da Família, inclusivo. Este meio termo que, usando o “meio tom”, tenta assumir uma zona “parafamiliar” é afinal a mais evidente confissão da falta de critério dogmático adequado que não colida com o papel cometido ao Matrimónio mas permita vencer a partida na integração das instituições familiares.
Que dirão os Autores seus defensores se porventura entrar em vigor, na esteira da sugestão já contida no Veto presidencial ao casamento entre pessoas do mesmo sexo _ na esteira, também, do projecto que entrou na AR _ uma lei de uniões entre pessoas de sexo diferente mais abrangentes nos efeitos, porventura ainda, respeitando a possibilidade de dispensa de formalismos legais de constituição?
Modificarão o seu conceito de Família, para que nele caiba a nova realidade legal? Nem se dirá que o venham a fazer em nome de assumido positivismo: pois que as normas com essa inspiração existem já: as Leis 6 e 7/2001.
Outro caminho não resta…]



Além disso, para o Tribunal Constitucional o legislador constitucional não pode pretender retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infra-constitucional, de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio, como sucede relativamente ao regime da indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima, pelo que não existe violação do princípio da igualdade na norma em apreciação. E, sobre o confronto com o princípio da proporcionalidade conjugado com o reconhecimento constitucional da «família não fundada no casamento», entende o Tribunal Constitucional que haverá que ter em conta que o recorte de um regime jurídico pela hipótese do casamento, deixando de fora situações que as partes não pretenderam intencionalmente submeter-lhe, tem necessariamente como consequência a exclusão dos respectivos efeitos jurídicos, importando apenas apurar se tal recorte segue um critério constitucionalmente aceitável, tendo em conta o fim prosseguido e as alternativas disponíveis e sem deixar de considerar a ampla margem de avaliação de custos e benefícios e escolha dessas alternativas, que tem de ser reconhecida ao legislador. O legislador goza assim de uma considerável margem de discricionariedade na delimitação, no artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil, do círculo das pessoas que podem pedir indemnização por morte da vítima. De resto – afirma o Tribunal Constitucional –, no controlo da constitucionalidade não está em causa a qualificação do «melhor dir da constitucionalidade não está em causa a qualificação do «melhor direito» em si mesmo, que é missão do legislador, competindo ao Tribunal Constitucional apenas dizer o «não direito», porque incompatível com a Constituição. Com base nestes pressupostos, conclui-se não ser possível detectar qualquer falta grosseira ou evidente de adequação entre a dimensão normativa em apreço e as finalidades dessa delimitação, resultante do artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil, tanto mais que há necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, por razões de certeza, designadamente em casos como este, em que está em causa a infracção de regras legais de circulação rodoviária e de deveres de cuidado, com negligência do lesante. No mesmo sentido, cfr. Acórdão do STJ de 04.12.2003, Proc. 03B3825 (Quirino Soares) e Acórdão da Relação do Porto de 10.05.2006, Proc. 0545740 (Coelho Vieira), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Não é pensável, nesta fase do nosso Direito, uma aplicação do regime sucessório do Livro das Sucessões do Código Civil em sede de união de facto. Herdeiro legitimário é o cônjuge sobrevivo, a par de alguns familiares próximos (artigo 2157.º do Código Civil). O conceito de Família referenciado na lei das sucessões aparta-se das instituições modernas que vêm integrar o Direito da Família




Nos termos do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (aprovado pelo DL n.º 142/73, de 31 de Março, e alterado pelo DL n.º 191-B/79, de 25 de Junho, DL n.º 173/89, de 26 de Maio, DL n.º 192/83, de 17 de Maio, DL n.º 214/83, de 25 de Maio, DL n.º 283/84, de 22 de Agosto, DL n.º 40-A/85, de 11 de Fevereiro, DL n.º 198/85, de 25 de Junho, DL n.º 20-A/86, de 13 de Fevereiro, DL n.º 343/91, de 17 de Setembro, DL n.º 78/94, de 9 de Março, e DL n.º 71/97, de 3 de Abril), têm direito à pensão de sobrevivência, como herdeiros hábeis dos contribuintes, o cônjuge sobrevivo, o divorciado ou separado judicialmente de pessoas e bens e a pessoa que estiver nas condições do artigo 2020.º do Código Civil (artigo 41.º, n.º 1, alínea a)), sendo certo que «[a]quele que no momento da morte do contribuinte estiver nas condições previstas no artigo 2020.º do Código Civil só será considerado herdeiro hábil para efeitos de pensão de sobrevivência depois de sentença judicial que lhe fixe o direito a alimentos e a pensão de sobrevivência será devida a partir do dia 1 do mês seguinte àquele em que a requeira, enquanto se mantiver o referido direito» (artigo 41.º, n.º 2 ). De acordo com aquele regime, tem direito à prestação de sobrevivência, a pessoa que, no momento da morte do beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges. O direito à atribuição da prestação por morte do beneficiário da segurança social está, por isso, dependente da prova dos seguintes requisitos: 1. A pessoa não ser casada ou separada judicialmente de pessoas e bens; 2. Viver com a pessoa em união de facto há mais de dois anos. 3. Ter direito a alimentos e não os poder obter das pessoas identificadas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 2009.º do Código Civil. Este regime tem suscitado algumas dúvidas, que a jurisprudência e doutrina têm procurado responder.
Em primeiro lugar, cumpre assinalar alguma controvérsia quanto ao requisito da necessidade de alimentos, quando se verifiquem os restantes requisitos para atribuição da pensão recebida pelo falecido companheiro, e, a entender-se ser aquele requisito exigível, no que respeita à possibilidade de o conceito de alimentos sofrer as restrições referidas nos artigos 2003.º e 2004.º do Código Civil.
Por um lado, a necessidade de alimentos resulta dos artigos 3.º, alínea e) e 6.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio e do artigo 2020.º do Código Civil. Os alimentos a que se refere o artigo 2020.º do Código Civil respeitam a tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, numa perspectiva de salvaguarda permanente da dignidade da pessoa humana. E o progresso económico, social e cultural reflecte-se no conteúdo dos alimentos. Porém, como sustenta jurisprudência recente, os referidos alimentos não se destinam a manter (ou ainda a mitigar uma redução de) um certo nível de vida alcançado, superior àquele que corresponde ao da satisfação condigna das necessidades básicas essenciais, diferentemente do que sucede num contexto de direito matrimonial. Por isso, para determinar a necessidade de alimentos, para os efeitos do disposto no artigo 2020.º do Código Civil, não basta realizar um confronto, meramente aritmético, entre os rendimentos auferidos, por um lado, e as despesas apresentadas, por outro, uma vez que podem haver despesas susceptíveis de extravasar a satisfação condigna das necessidades básicas da respectiva pessoa, designadamente no que concerne a uma habitação adequada, um direito social revestido também de garantia constitucional. O critério para delimitar a satisfação condigna das necessidades essenciais tem assim de corresponder, num justo equilíbrio, à realidade económica e social do País, com rejeição de situações extremas, quer de pendor miserabilista, quer de natureza voluptuária. A prestação social da segurança social, prevista para os casos de união de facto, justifica-se pela necessidade de conferir melhor protecção às pessoas que, por morte do beneficiário da segurança social, são confrontadas com insuperáveis dificuldades económicas susceptíveis de atingir a dignidade pessoal, de forma a garantir o equilíbrio e a coesão social. Neste contexto, será de recusar a atribuição de pensão de sobrevivência a quem, tendo vivido em união de facto com o beneficiário há mais de dois anos e auferindo a quantia líquida mensal de € 2.738,19 pelo exercício da sua actividade profissional, invoca suportar mensalmente um encargo correspondente ao valor de € 2.369,82, por não se pode concluir que estivesse numa situação de necessidade de alimentos, tal como os mesmos devem ser entendidos ao abrigo do disposto no artigo 2020.º do Código Civil, pois: aquele encargo equivale a uma despesa voluptuária, que excede significativamente a utilidade, quanto mais a necessidade, da satisfação do direito a uma habitação adequada; o rendimento auferido adequa-se à satisfação condigna das suas necessidades básicas – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de Outubro de 2007, Proc. 7402/2007-6 (Olindo dos Santos Geraldes), disponível em www.dgsi.pt


Por outro lado, parece aceitar-se hoje a possibilidade de o conceito de alimentos sofrer as restrições dos artigos 2003.º e 2004.º do Código Civil. A questão que se coloca é só a de saber se os alimentos são os referidos nos artigos 2003.º e 2004.º do Código Civil ou se são os alimentos a que se refere o artigo 1675.º do Código Civil (direito a alimentos inserido no cumprimento do dever recíproco de assistência entre os cônjuges). No primeiro caso, a noção de alimentos deveria restringir-se aos «meios de subsistência estritamente necessários para viver, e não para manter o padrão de vida que o requerente e o falecido mantiveram durante a união de facto, como se depreende, aliás, logo da simples localização sistemática da norma – colocada, não nas adjacências do direito matrimonial ou à sombra de recíproco dever de assistência conjugal, mas no coração do título do Código que trata dos alimentos, no sentido técnico-jurídico da expressão». Na verdade, de acordo com o artigo 2003.º, n.º 1, por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, devendo ser proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los, nos termos do artigo 2004.º, n.º 1, ambos inseridos no Título V (alimentos) do Livro IV do Código Civil. No segundo caso, a noção de alimentos teria a ver com o dever de assistência conjugal referido no artigo 1675.º do Código Civil, sendo certo que nem neste nem noutros preceitos do instituto, se faz qualquer referência às linhas redutoras do direito a alimentos referido a propósito dos artigos 2003.º e 2004.º, tendo-se entendido que na expressão alimentos cabe tudo quanto seja necessário, não apenas ao sustento, habitação e vestuário do titular do direito, mas tudo o que a plena comunhão de vida que o casamento cria entre os cônjuges, concretamente, a igualação do seu trem de vida económica e social. Acontece que a obrigação alimentar referida no artigo 1675.º do Código Civil constitui uma relação jurídica familiar que tem como fonte o casamento, enquanto a obrigação alimentar referida no artigo 2020.º do mesmo diploma tem como fonte a lei, na medida em que tutela certos aspectos da união de facto e esta não constitui uma relação jurídica familiar, como resulta do artigo 1576.º do Código Civil. Com a Reforma de 1977 (que introduziu no Código Civil a actual redacção do artigo 2020.º) abordou-se pela 1.ª vez de forma expressa e frontal algumas questões da união de facto, tendo-se feito depois o enquadramento na segurança social através do DL n.º 322/90, de 18/10, e Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18/01, que veio evoluindo com a Lei n.º 135/99, de 28/08 e finalmente com a Lei n.º 7/2001, de 11/05. Com estes diplomas procurou-se, por imperativo de justiça social, acautelar alguns direitos fundamentais à custa do sistema ou sistemas de segurança social que dependem da contribuição dos cidadãos neles enquadrados. Porém, num momento histórico da sociedade portuguesa, em que se impõem restrições que se antevêem duras à generalidade dos cidadãos em nome da segurança social, não seria seguramente justo que dos seus cofres saísse dinheiro para alguém que dele diz carecer, não para o que é necessário ao seu sustento, habitação e vestuário, mas para fazer viagens ao estrangeiro, tanto mais que certamente não é este o espírito do legislador que adoptou as medidas de protecção das uniões de facto constantes da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio. Nesta medida, importa concluir que a medida dos alimentos é assim «a fixada nas disposições gerais dos arts. 2003.º e 2004.º, e não a que seria necessária para manter o mesmo padrão de vida do “casal”, como bem se compreende, pois da união de facto não decorre qualquer dever de assistência, idêntico ao que a lei impõe aos cônjuges no art. 1675.º» – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 21 de Junho de 2005, Proc. 1456/05 (Coelho de Matos), disponível em www.dgsi.pt, Acórdão do STJ de 23 de Setembro de 1999, 84.
Em segundo lugar, manifestam-se dúvidas sobre a constitucionalidade do artigo 41.º, n.º 2 do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, por introduzir uma diferenciação entre os regimes da união de facto e do casamento, face aos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Mas a conformação legislativa, estabelecendo esta diferenciação, não viola nem o princípio da igualdade, nem o da proporcionalidade, pois as situações matrimoniais e as situações de união de facto, embora socialmente apresentem afinidades, em termos jurídicos, distinguem-se em vários aspectos, justificando, por isso, um tratamento diferenciado. Na verdade, com o casamento, os cônjuges contraem deveres jurídicos, cujo incumprimento acarreta sérias consequências, inclusivamente, de natureza patrimonial, o que não sucede na união de facto, pelo que, enquanto o cônjuge sobrevivo goza do direito à herança, a pessoa sobreviva da união de facto só, condicionalmente, tem direito a alimentos da herança. De resto, a diferenciação de tratamento não pode considerar-se destituída de fundamento razoável, nem se baseia em critério arbitrário, atento o respectivo efeito jurídico, sendo aceitável, à luz da finalidade social prosseguida, o incentivo às relações matrimoniais.
Nesta linha, relativamente à alegada inconstitucionalidade do artigo 41.º, n.º 2 do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, por violação do princípio da igualdade, a jurisprudência constitucional tem sublinhado que: a) na óptica deste princípio, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer; b) o legislador constitucional não pode ter pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infra-constitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge; c) a diferenciação de tratamento em causa na presente norma não pode, assim, ser considerada como destituída de fundamento razoável ou arbitrária, verificando-se, por outro lado, um indiscutível paralelo entre ela e o tratamento sucessório de ambas as situações (introduzido pela reforma de 1977).
Por seu turno, relativamente à pretensa inconstitucionalidade da mesma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, a mesma jurisprudência constitucional acentua que: a) o que está em causa no confronto de uma solução normativa com o princípio da proporcionalidade não é simplesmente a gravidade ou a dimensão das desvantagens ou inconvenientes que pode acarretar para os visados (como, por exemplo, a necessidade da prova da carência de alimentos, ou, mesmo a exclusão total de certos direitos); b) o recorte de um regime jurídico – como o da destruição do vínculo matrimonial ou o dos seus efeitos sucessórios – pela hipótese do casamento, deixando de fora situações que as partes não pretenderam intencionalmente submeter-lhe, tem necessariamente como consequência a exclusão dos respectivos efeitos jurídicos; c) o que importa apurar é se tal recorte é aceitável – se segue um critério constitucionalmente aceitável – tendo em conta o fim prosseguido e as alternativas disponíveis, sem deixar de considerar a ampla margem de avaliação de custos e benefícios e como de escolha dessas alternativas, que, à luz dos objectivos de política legislativa que ele próprio define dentro do quadro constitucional, tem de ser reconhecida ao legislador; d) o tratamento post mortem do cônjuge é, justamente, um daqueles pontos do regime jurídico em que o legislador optou por disciplinar mais favoravelmente o casamento; e) esta distinção entre a posição post mortem do cônjuge e a do companheiro em união de facto – que, aliás, podem concorrer entre si depois da morte do beneficiário – é adequada à prossecução do fim de incentivo à família fundada no casamento, que não é constitucionalmente censurável e antes recebe até (pelo menos numa certa leitura) particular acolhimento no texto constitucional; e) os requisitos para o direito à pensão de sobrevivência são diversos, dependendo, no caso de união de facto, e tal como em geral para o direito a alimentos nos termos do artigo 2020.º do Código Civil, de o unido de facto ter direito a obter alimentos da herança, por não os poder obter das pessoas referidas no artigo 2009.º do mesmo Código; f) não é só para o companheiro sobrevivo que existem condições específicas para ser reconhecido o direito à pensão: o ex-cônjuge ou



cônjuge separado de pessoas e bens só dela beneficia se tiver sido casado com o beneficiário pelo menos um ano e se na data da morte tiver direito a uma pensão de alimentos; os pais e os avós têm de estar “a cargo” do contribuinte à data da morte para terem direito a pensão, etc. E a pensão cessa quando os titulares do direito obtiverem outras fontes de rendimento; g) apenas ao cônjuge não são exigidas condições adicionais, pois os cônjuges estão ligados por específicos deveres de solidariedade patrimonial – o dever de assistência e, na constância do casamento, o dever de contribuir para os encargos da vida familiar (artigos 1672.º e 1675.º do Código Civil); h) diversamente, a união de facto não implica forçosamente deveres patrimoniais, ou uma geral solidariedade patrimonial, admitindo-se mesmo que quem vive em união de facto continue a ter direito a alimentos do ex-cônjuge ou, até, mantenha uma pensão de sobrevivência. Recorde-se, aliás, que os próprios diplomas que introduziram medidas de protecção das pessoas que vivem em união de facto não obrigaram os membros da união de facto a deveres de assistência recíprocos ou a deveres de alimentos em caso de ruptura, ou, sequer, alteraram os preceitos do Código Civil sobre alimentos em caso de morte; i) na solução normativa em apreço não se verifica qualquer «exclusão de plano, e em abstracto, do direito do convivente, por contraposição ao direito do cônjuge», pois a norma em questão «visou justamente, pelo contrário, conceder também protecção, pela extensão de prestações na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social, às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil»; j) o sentido da remissão para o artigo 2020.º do Código Civil, com a exigência de provar os requisitos exigidos neste normativo, mais não é do que «a prova, justamente, da necessidade de protecção da pessoa em causa, por não a poder obter dos seus familiares directos», sendo, portanto, coerente com o objectivo visado pela prestação social em causa: para o cônjuge, considerando os deveres de solidariedade patrimonial e a obrigação de alimentos em caso de ruptura, presume-se essa situação; para o caso da união de facto, é necessário fazer prova da necessidade de protecção, tal como quando se pretende obter alimentos; k) da exigência daqueles requisitos não resulta, assim, qualquer violação do princípio da proporcionalidade, sendo de notar, aliás, que, para além da possível conveniência em distinguir a posição do cônjuge, pode verificar-se também, no caso concreto, um problema de concurso entre aquele e o companheiro em união de facto – cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 88/04, de 10 de Fevereiro, 3ª Secção, Proc. 411/03 (Gil Galvão), n.ºs 159/05, de 29 de Março, 2ª Secção e 614/05, de 09 de Novembro, Plenário, ambos do Proc. 697/04 (Paulo Mota Pinto), disponíveis em www.tribunalconsttucional.pt, Acórdão do STJ de 16 de Setembro de 2008, Proc. 08A2232 (Fonseca Ramos), disponível em www.dgsi.pt






II

Relações com a Santa Sé em sede matrimonial

II A

No artigo 1.º do Protocolo Adicional à Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, celebrado em 15 de Fevereiro de 1975, acordou-se a modificação do artigo XXIV da Concordata de 7 de Maio de 1940, que passou a ter o seguinte teor: «Celebrando o casamento católico, os cônjuges assumem por esse mesmo facto, perante a Igreja, a obrigação de se aterem as normas canónicas que o regulam e, em particular, de respeitarem as suas propriedades essenciais. A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio». Como acentuou JORGE MIRANDA, “A Constituição e a Concordata: Brevíssima Nota”, cit., p. 107, «a celebração do Protocolo de 1975 (…) permitiu desdramatizar a questão (na altura muito discutida na opinião pública) do divórcio entre casados canonicamente como, de certa forma, legitimou a Concordata [de 1940]».

III
APADRINHAMENTO CIVIL
Lei n.º 103/2009, de 11 de Setembro, que define o apadrinhamento civil como «uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com ele estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento, constituída por homologação ou decisão judicial e sujeita a registo civil» (artigo 2.º). É admissível o apadrinhamento civil, desde que apresente reais vantagens para a criança ou o jovem e desde que não se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adopção, a apreciar pela entidade competente para a constituição do apadrinhamento civil, de qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que esteja a beneficiar de uma medida de acolhimento em instituição ou de outra medida de promoção e protecção, que se encontre numa situação de perigo confirmada em processo de uma comissão de protecção de crianças e jovens ou em processo judicial e que seja encaminhada para o apadrinhamento civil por iniciativa do Ministério Público, da comissão de protecção de crianças e jovens, do organismo competente da segurança social ou de instituição por esta habilitada, dos pais, representante legal da criança ou do jovem ou pessoa que tenha a sua guarda de facto e da criança ou do jovem maior de 12 anos. Também poderá ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que esteja a beneficiar de confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção ou a pessoa seleccionada para a adopção quando, depois de uma reapreciação fundamentada do caso, se mostre que a adopção é inviável (artigos 5.º e 10.º). Os padrinhos exercem as responsabilidades parentais, beneficiando os pais dos direitos expressamente consignados no compromisso de apadrinhamento civil (artigo 7.º), designadamente os previstos no artigo 8.º. O vínculo de apadrinhamento civil constitui – se por decisão do tribunal ou por compromisso de apadrinhamento civil homologado pelo tribunal (artigo 13.º). Os padrinhos e os afilhados consideram-se, respectivamente, ascendentes e descendentes em 1.º grau do afilhado para efeitos da obrigação de prestação de alimentos, sendo precedidos, respectivamente, pelos pais e filhos quando estejam em condições de satisfazer esse encargo (artigo 21.º). O vínculo de apadrinhamento civil constitui, sob pena de incapacidade para receber do seu consorte qualquer benefício por doação ou testamento, impedimento impediente à celebração do casamento entre padrinhos e afilhados, embora o impedimento possa ser dispensado pelo conservador do registo civil (artigo 22.º).
Há, em nosso entender, uma dissonância entre o fundamento da nova estrutura e os seus efeitos, designadamente, matrimoniais.
A lei afirma que o padrinho tem uma função substitutiva do progenitor. Atentos os casos em que o instituto poderá aplicar-se, é meritório o seu surgimento na nossa ordem jurídica. Porém, o padrinho não é um pai nem se aproxima de modo inequívoco do papel de um familiar: as palavras são eloquentes. Resta saber se, além de eloquentes, serão felizes… É desejável que quem desempenha papel familiar tenha uma relação de proximidade que as próprias palavras simbolizem, traduzam. Ora, o que confere a relação de proximidade aqui? O afecto, a homologação judicial ou a submissão a registo do mencionado “apadrinhamento”?
E que utilidade retira o legislador do impedimento impediente que resulta do Apadrinhamento? Que sabe o Conservador da vida pessoal de padrinho e afilhado para proceder a essa diligência?
Sobre a nova figura, cfr. JORGE DUARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, 2.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2009, pp. 722 e 723.



IV a

Divórcio

Veto presidencial disponível em www.parlamento.pt.
De 20.08.2008, disponível em www.presidencia.pt, por se entender que: a) na realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo subsistem múltiplas situações em que um dos cônjuges – em regra, a mulher – se encontra numa posição mais débil, fragilidade que a lei não deve agravar nem, por arrastamento, adensar a



desprotecção que indirectamente atingirá os filhos menores; b) para não agravar a desprotecção da parte mais fraca, o legislador deveria ponderar em que medida não seria preferível manter-se, ainda que como alternativa residual, o regime do divórcio culposo, a que agora se põe termo de forma absoluta e definitiva; c) o novo regime jurídico do divórcio pode vir a projectar-se sobre a própria vivência conjugal na constância do matrimónio, já que, em casos-limite, o novo regime, ao invés de promover a igualdade entre cônjuges, pode perpetuar situações de dependência pessoal e de submissão às mais graves violações aos deveres de respeito, de solidariedade, de coabitação, entre outros; d) as contribuições dadas para os encargos da vida conjugal e familiar são susceptíveis de gerar direitos de crédito sobre o outro cônjuge, sendo certo que, além de a vivência conjugal e familiar não estar suficientemente adaptada a uma realidade tão nova e distinta, podendo mesmo gerar-se situações de autêntica «imprevisão» ou absoluta «surpresa» no momento da extinção do casamento, o novo modelo de divórcio corresponde também a um novo modelo de casamento, no seio do qual são ou podem ser contabilizadas todas e quaisquer contribuições dadas para a vida em comum; e) desta visão «contabilística» do matrimónio emerge um paradoxo, uma vez que a filosofia global do casamento gizada pelo novo regime do divórcio corresponde a uma concepção do casamento como espaço de afecto, sendo certo que, a par desta visão «afectiva» do casamento, pretende-se que a seu lado conviva uma outra, dir-se-ia «contabilística», em que cada um dos cônjuges é estimulado a manter uma «conta-corrente» das suas contribuições, e apenas a prática poderá dizer qual delas irá prevalecer; f) o desaparecimento da culpa como causa de divórcio não fará diminuir a litigiosidade conjugal e pós-conjugal, existindo boas razões para crer que se irá processar exactamente o inverso, até pelo aumento dos focos de conflito que o legislador proporcionou, quer no que se refere aos aspectos patrimoniais, quer no que se refere às responsabilidades parentais e aos inúmeros conceitos indeterminados que as fundamentam; g) é extremamente controverso, por aquilo que implica de restrição à autonomia privada e à liberdade contratual, o disposto no artigo 1790.º, segundo o qual «em caso de divórcio nenhum dos cônjuges pode, na partilha, receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos», por consubstanciar uma «revogação retroactiva» de uma opção livre e uma limitação que sempre virá beneficiar um dos cônjuges em detrimento do outro, impondo no momento da partilha de bens um regime distinto daquele que foi estabelecido de comum acordo.
Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro.
Novamente sublinhados no comunicado do Presidente da República, de 21.10.2008, relativo à promulgação do Decreto n.º 245/X da Assembleia da República que deu lugar à Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, igualmente disponível em www.presidencia.pt.


V

INVALIDADES

Na versão inicial do Código Civil de 1966 não se falava (expressamente) em qualidades essenciais a propósito do erro vício, estatuindo o artigo 1636.º, que tinha igualmente por epígrafe o “Erro que vicia a vontade”, que «[o] erro que vicia a vontade só é relevante para efeitos de anulação quando recaia sobre a pessoa do outro contraente e consista no desconhecimento de algum dos seguintes factos:

a) A nacionalidade ou o estado civil diferente do que lhe era atribuído ou que ele se arrogava;
b) A prática, antes do casamento, de algum crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos, seja qual for a natureza desta;
c) A vida e costumes desonrosos antes do casamento;
d) A impotência funcional incurável, absoluta ou relativa, ou alguma deformidade física irremediável, já existentes ao tempo do casamento;
e) A falta de virgindade da mulher ao tempo do casamento».


Veja-se o que se passa em sede de vontade viciada ou de erro-vício. A lei evoluiu entre nós num sentido de erradicar os fundamentos de erro inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, ao banir a virgindade feminina alegada pela nubente como fundamento de invalidação do casamento por “erro sobre qualidades essenciais”. Esse foi, sem dúvida, o principal escopo da alteração que a Reforma de 1977 introduziu no artigo 1636.º do Código Civil. E, por esse motivo, substituiu o legislador a enumeração fechada (“taxativa”) dos casos de erro sobre qualidades essenciais por um critério de enumeração exemplificativa. O sentido da Reforma de 1977, porém, terá pretendido olhar mais adiante: compatibiliza-se bem melhor com a adequação ao respeito pela dignidade da pessoa, à igualdade dentro do casamento e ao carácter deste como instituição de descoberta da personalidade e desenvolvimento de um tipo de projecto de vivência, pois não deixa que esse propósito esmoreça gerando situações de estigmatização, de diminuição ou humilhação pública. Ora, é evidente que esse efeito decorre para o nubente contra quem se interpõe acção de invalidação do casamento. Deve, pois, tal hipótese circunscrever-se a casos contados e funcionar como última instância. Mas, vendo a doutrina subsequente, não é essa a solução que se encontra. Os autores assumem a cláusula aberta do artigo 1636.º, aberta em razão do pudor e móbil de evitar a linguagem a “esquecer” (virgindade feminina como valor aceite pelo Direito numa relação matrimonial), numa abertura de contemporização com o sistema anterior. Segundo esse sistema, não se pensa sequer à luz do casamento contemporâneo o elenco das invalidades. Sucede, contudo, que estas invalidades aqui plasmadas não são invalidades civis comuns, são invalidades jurídico-familiares. E a omissão de manejo de conclusões adaptadas à dogmática jusfamiliar é, estamos em crer, um erro, uma distorção do Direito da Família contemporâneo – cfr., por todos, PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 232 e ss. Segundo os Autores, são essenciais as «qualidades particularmente significativas que, em abstracto, sejam idóneas para determinar o consentimento». Em razão da porosidade deste conceito que se pretende utilizar como complemento e critério de orientação para o preenchimento do conceito indeterminado «qualidades essenciais», os Autores chegam a uma conclusão perplexizante. Ali onde a Reforma de 1977 pretendeu ser mais exclusiva, restrita, mostra-se esta doutrina inclusiva e ampliadora. O que parece redundar numa perversão do sentido legislativo. Perversão, diga-se, em matéria legislada, tendo em conta a Constituição e o sentido amplo que se pretendeu conferir à autonomia da vontade dos nubentes. A conclusão, a partir desta tese, é inversa: o Tribunal poderá apreciar muito mais matérias do que seria de esperar; o Tribunal poderá interferir na privacidade das partes, nas opções dos nubentes, conhecendo de matérias onde a autonomia da vontade e a privacidade de cada nubente deveria ser a ultima ratio.
Pense-se no regime legal criado para o nubente que celebra matrimónio com o cônjuge de alguém que matou ou tentou matar, ou em cujo homicídio participou. Pense-se no regime legal das invalidades do casamento: por impedimento dirimente absoluto ou relativo e falta de vontade. A lei considera que três anos depois o casamento se convalida. E, no entanto, o homicídio pode ser um candidato à pena máxima, dependendo de circunstâncias de que se alheia o Código Civil.


IV b

DIVÓRCIO

“Se um dos cônjuges quer divorciar-se (mesmo que esse cônjuge seja o que, pelo seu comportamento, deu causa à separação de facto) compreende-se que a lei tutele o seu interesse, pois, decorrido determinado prazo, a esperança da reconciliação torna-se remota e a lei acha socialmente mais vantajosa a situação dos cônjuges divorciados do que a dos cônjuges separados de facto. Não basta a possibilidade de divórcio por mútuo consentimento, que um dos cônjuges pode não aceitar por muitas razões e, sobretudo, pelo desejo de prender o outro. Bem sei que entre essas razões está a esperança, que em um dos cônjuges ainda existirá apesar de tudo, de que o outro venha a restabelecer a vida em comum. E sei como é doloroso destruir a esperança de alguém. Mas a verdade é que o casamento não pode subsistir sem uma disposição comum dos cônjuges e que aquela esperança não é objectivamente fundada decorridos seis anos consecutivos de separação de facto. Esta é a verdade, e os cônjuges devem ter a coragem de a aceitar».







VI

MENORES

Veja-se o Acórdão do Plenário do TC n.º 359/1991, de 9 de Julho de 1991, Proc. 36/90 (Monteiro Dinis, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, tirado por maioria e contando com votos de vencido de MESSIAS BENTO, VÍTOR NUNES DE ALMEIDA, BRAVO SERRA, MARIA DA ASSUNÇÃO ESTEVES, FERNANDO ALVES CORREIA e JOSÉ MANUEL CARDOSO DA COSTA, no qual se decidiu «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, I Série, de 28 de Maio de 1987, por força da violação do princípio da não discriminação dos filhos, contido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição», por excluir a aplicação das normas dos n.ºs 2, 3 e 4 de artigo 1110.º do Código Civil às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

TÓPICOS DOS DIREITOS E DEVERES DE NATUREZA PATRIMONIAL

TÓPICOS DOS DIREITOS E DEVERES DE NATUREZA PATRIMONIAL


A – DA ADMINISTRAÇÃO DE BENS (1678º, 1679º, 1680º e 1681º)

• Face ao artigo 1699º/1/c), há quem sustente que:
i) As regras relativas à administração de bens do casal são imperativas, sem prejuízo de um dos cônjuges ceder ao outro todos ou parte dos seus poderes sobre bens próprios ou comuns por mandato livremente revogável (1678/2/g) e 1170º/1; Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, p. 368);
ii) Existe uma supletividade condicionada à celebração de um mandato livremente revogável (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 530).


1) ADMINISTRAÇÃO DE BENS PRÓPRIOS

a) Regra: são administrados pelo cônjuge titular (1678º/1);
b) Desvios: 1678º/2/e), f) e g) (constituem excepções para o regime dos actos de disposição) e situações em que o dono tenha concedido poderes de administração ao seu cônjuge por mandato (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, p. 369).


2) ADMINISTRAÇÃO DE BENS COMUNS

a) Regra:
i) Administração conjunta ou de mão comum – ambos os cônjuges são administradores do património comum (1678º/3/2ª parte) – relativamente a actos de administração extraordinária, o que pressupõe que os actos tenham de ser praticados pelos dois ou, pelo menos, um tem que ter a autorização do outro (consentimento, suprimento judicial desse consentimento ou aparência de mandato);
ii) Administração disjunta ou de representação mútua – qualquer um dos cônjuges pode administrar isoladamente – 1678/3/1ª parte – em relação a actos de administração ordinária (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, pp. 369-370 - actos frequentes, rotineiros, de frutificação normal e de conservação, onde se incluem as benfeitorias necessárias ou úteis; Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, pp. 532 e 533 – actos de gestão normal, tendo em conta a frequência da sua prática, as condições económicas do casal em concreto e a sua repercussão na esfera jurídica dos cônjuges), salvo o caso de participações sociais que integrem bens comuns (8º/3 CSC e Rita Lobo Xavier, Reflexões sobre a posição do cônjuge meeiro em sociedades por quotas, p. 92), prevalecendo em caso de actos incompatíveis o acto praticado em primeiro lugar.

b) Desvios:

i) Administração exclusiva:
- 1678º/2/a) – apesar de o salário de cada um dos cônjuges pertencer aos dois (1724º/a) e 1734º), só o cônjuge que o recebe é que tem direito de o administrar, sem prejuízo do cumprimento do dever de assistência (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 535);
- 1678º/2/b) – só direitos patrimoniais de autor (cfr. 1733º/1/c));
- 1678º/2/c) – incluem-se os rendimentos dos bens aí indicados e na categoria de bens sub-rogados cabem os adquiridos por meio de troca directa ou indirecta e o preço dos bens alienados, podendo a sub-rogação ser provada por qualquer meio;
- 1678º/2/d) – visa-se salvaguardar o respeito a quem fez a doação e inclui-se o legado em substituição da legítima (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, IV, 1992, p. 285);
- 1678º/2/e) – não se aplica a bens imóveis nem ao estabelecimento comercial (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 537; em sentido diferente sobre a não inclusão do estabelecimento, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, p. 376); questiona-se se esta alínea abrange os rendimentos dos bens (Leonor Beleza, Os efeitos do casamento, p. 124); a disposição inicial de começar a utilizar (o início de utilização exclusiva) um móvel comum como instrumento de trabalho requer a colaboração do outro cônjuge;

Apesar da lei não o referir, também se aplicam aos bens comuns as seguintes disposições:
- 1678º/2/f) – pressupõe cumulativamente a impossibilidade de exercício da administração dos bens pelo outro cônjuge (impedimento com carácter de permanência ou durabilidade que justifique a transferência de poderes, designadamente a ausência em lugar remoto e a ausência em sentido técnico, uma situação susceptível de fundamentar interdição ou inabilitação e o cumprimento de pena de prisão) e a falta de procuração bastante para a administração desses bens (os poderes do procurador não podem ser menores dos que os que cabem a um cônjuge administrador), não se aplicando nos casos do 1679º e do 1649º/2 (cfr. 1604º/a); Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, pp. 538-540);
- 1678º/2/g) – cônjuge administrador só tem os poderes que o outro lhe conferir através do mandato e não impede que as partes estipulem uma co-administração sobre um bem próprio (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 541).

Nota: 1678º/2/e) e f) são inaplicáveis após simples separação judicial de bens (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 540).

ii) Administração atribuída aos representantes legais (1604º/a) e 1649º).


3) PROVIDÊNCIAS ADMINISTRATIVAS (1679º) - Situações de impossibilidade temporária, ficando o cônjuge administrador com poderes (faculdade e não dever jurídico) de administração só para requerer as providências em causa, isto é, para evitar um prejuízo iminente, que vinculam o titular do bem sem necessidade de ratificação (diferentemente do que sucede com a gestão de negócios – 268º, 464º e 471º).


4) 1678º/2/f) vs. 1679º

a) Comum
i) Impossibilidade de o administrador nomeado pelas regras gerais praticar determinado acto;
ii) Só se aplicam se não houver uma administração com procuração bastante.
b) Diferenças
i) 1678º/2/f) – situações de ausência estável e duradoura, em que muda o administrador, podendo este realizar todos os actos de administração que entender, sem estar obrigado a prestar contas e só respondendo pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge;
ii) 1679º - situações de impossibilidade temporária, eventual, pontual, ocasional ou transitória; o administrador mantém-se, só sendo autorizada a prática de determinados actos, isto é, as providências necessárias para evitar o agravamento de prejuízos, podendo o gestor conjugal incorrer em responsabilidade civil pela prática de actos meramente culposos (465º/c), 466º/1, 1681º/1 e 3, 2ª parte).


5) 1680º - Significa que o banco não tem responsabilidade perante o cônjuge do depositante pelo facto de facultar o serviço bancário sem averiguação prévia da legitimidade do seu cliente para fazer as operações, mas a liberdade do depositante não dá ou tira poderes de administração nem confere a titularidade do bem depositado (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, p. 383), podendo defender-se que a protecção efectiva dos direitos patrimoniais de um cônjuge, casado num regime de comunhão, se faça através da sua consideração como um cliente (material) para efeitos de dispensa do sigilo bancário, prestando-lhe o Banco informações em caso de dúvida sobre a coincidência da titularidade nominal da conta e a titularidade efectiva do saldo (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, pp. 553 e 554).


6) REGIME DE EXERCÍCIO DA ADMINISTRAÇÃO (1681º e 1687º)

• 1681º
a) Regra: cônjuge administrador não é obrigado a prestar contas da sua administração, respondendo apenas pelos actos dolosos de gestão (incluindo omissões intencionais - Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 543), em prejuízo do casal ou de outro cônjuge (n.º 1), pois visa-se evitar:

i) Conflitos nas relações internas;
ii) Prejudicar a vida em comum;
iii) Aplicar a uma gestão tão complexa os padrões normais de julgamento da administração isolada de bens alheios.

b) Desvios: n.ºs 2 (mandato livremente revogável, gratuito e reduzido a escrito) e 3 (casos de administração de facto ou de aparência de mandato, confinada em princípio à administração ordinária - Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 546).

• A administração de bens ao abrigo do 1678º/1 (se colidir com o dever de assistência ou implicar frutificação inferior à que um proprietário diligente teria obtido) e do 1678º/3 não está isenta de sujeição ao regime da responsabilidade civil, desde que exista dolo da parte do cônjuge administrador – Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 547.

• À falta de legitimidade para a prática de actos de simples administração (incluindo os do 1679º - contra Antunes Varela, Direito da Família, p. 383 que sustenta a nulidade) é aplicável analogicamente a disciplina do 1687º (anulabilidade), salvo tratando-se de bens próprios (nulidade) – Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, p. 548.





B – DA DISPOSIÇÃO DE BENS (1682º, 1682º-A, 1682º-B, 1683º, 1684º, 1685º e 1687º)


• 3 Critérios que necessitam de ser conjugados: titularidade, administração e utilização.


1) ALIENAÇÃO OU ONERAÇÃO DE BENS MÓVEIS

a) Móveis comuns com administração conjunta (1682º/1) – é necessário o consentimento de ambos com ressalva dos actos de administração ordinária.

Sanções:
- Negócio oneroso – 1687º/1;
- Negócio gratuito – 1682º/4.

b) Móveis comuns administrados só por um (1682º/2) – fica de fora o mandato e basta o consentimento do próprio administrador.

Sanções:
- 1687º/1 por analogia (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, p. 400).

c) Móveis comuns administrados só por um mas utilizados conjuntamente pelos dois (1682º/3/a)) – é necessário o consentimento de ambos.

Sanções:
- Se o alienante for o cônjuge não administrador – 1687º/1;
- Se o alienante for o cônjuge administrador
 Negócio oneroso – 1687º/1;
 Negócio gratuito – 1682º/4.

d) Móveis próprios administrados pelo titular (1682º/2) – basta o consentimento do próprio titular.

Sanções:
- Se o alienante não for titular nem administrador – 1687º/4.

e) Móveis próprios utilizados conjuntamente pelos dois cônjuges (1682º/3/a)) – é necessário o consentimento de ambos.

Sanções:
- Se o alienante for o titular – 1687º/1;
- Se o alienante não for o titular – 1687º/4.

f) Móveis próprios administrados pelo não titular (1682º/3/b)) – é necessário o consentimento de ambos.

Sanções:
- Se o alienante for o titular – 1687º/1;
- Se o alienante não for o titular mas é administrador – 1687º/4.


2) ALIENAÇÃO OU ONERAÇÃO DE BENS IMÓVEIS OU ESTABELECIMENTO COMERCIAL (1682º-A)

a) Regra:

i) Se o bem imóvel é a casa de morada de família, a alienação ou oneração necessita sempre do consentimento de ambos os cônjuges, qualquer que seja o regime de bens (n.º 2), a fim de se defender a estabilidade da habitação familiar no interesse dos cônjuges e dos filhos, exigência que se mantém ainda que a alienação ou oneração seja posterior à separação de facto dos cônjuges e desde que se mantenha enquanto residência da família (Ac. STJ de 10.05.1998, RLJ 123º, pp. 366 e ss.);
ii) Tratando-se de outros bens imóveis:
 Nos regimes de comunhão (geral ou de adquiridos) é sempre necessário o consentimento de ambos;
 No regime de separação já não é necessário (cfr. 1735º).

b) 1682º-A/1/a)
i) Ficam de fora os casos em que a alienação de imóveis constituir o objecto da empresa (um acto de gestão ordinária da empresa), v.g. de uma construtora de que o cônjuge é o único titular e que se dedica à compra e venda de imóveis por ela construídos (Ac. STJ de 10.02.2002, CJ (STJ) 2002/I/32-36);
ii) Excluído o contrato-promessa de alienação (410º e Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, p. 385);
iii) A ratio da necessidade de consentimento de ambos os cônjuges na alienação e oneração reside no facto de os imóveis ainda constituírem a base económica fundamental de cada família (a riqueza imobiliária ou fundiária), traduzindo-se a constituição de direitos reais numa limitação pesada (direitos reais de gozo) ou numa alienação forçada (direitos reais de garantia);
iv) A ratio da necessidade de consentimento de ambos os cônjuges no arrendamento deriva da estabilidade deste que justifica a sua equiparação aos actos de alienação.


c) 1682º-A/1/b) – o estabelecimento é equiparado a um imóvel pela importância que reveste para a economia familiar.


3) DIREITO AO ARRENDAMENTO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA (1682º-B) – tutela extensível ao arrendamento rural e ao comodato (Salter Cid, A protecção da casa de morada de família, pp. 196 e 229).


4) REPÚDIO DE HERANÇAS OU LEGADOS (1683º/2)


5) DISPOSIÇÕES POR MORTE (1685º)



C – DAS DÍVIDAS DOS CÔNJUGES (1690ºa 1696º)


• 2 Questões:

1º Quem é responsável pelo pagamento da dívida em termos pessoais?
2º Que bens serão utilizados para pagar a dívida?

• 2 Regras – 1690º/1 (cfr. 36º/3 CRP) e 1690º/2.
• A responsabilidade de um só cônjuge é residual (cfr. 1692º/a)), pelo que primeiro é necessário ver se ambos respondem.


1) DÍVIDAS QUE RESPONSABILIZAM AMBOS OS CÔNJUGES


1ª Questão

a) 1691º/1/a)
i) Aplica-se independentemente do regime de bens;
ii) Consentimento tem de ter a forma exigida para a celebração do negócio e não é suprível judicialmente;
iii) Abrange dívidas contraídas antes ou depois do casamento, mas têm que ter em vista o casamento.

b) 1691º/1/b)
i) Situação especial ou excepcional de dívidas contraídas por um mas que responsabilizam ambos;
ii) Aplica-se independentemente do regime de bens;
iii) Abrange dívidas contraídas antes ou depois do casamento, mas têm que ter em vista o casamento;
iv) Considera-se encargo normal as despesas que correspondem ao padrão de vida familiar (especialmente os rendimentos da família – cfr. Ac. STJ de 27.06.2000, 130-135);
v) Incluem-se as dívidas contraídas por ocasião do 1679º.

c) 1691º/1/c)
i) 2 Requisitos:
­ Proveito comum – não se presume, cabe ao credor alegá-lo e prová-lo (1691º/3); pode ser material ou intelectual; não releva o resultado concreto, mas a intenção (avaliada objectiva e subjectivamente e tendo em conta o interesse de ambos os cônjuges ou da sociedade familiar) ainda que cause prejuízo;
­ Dívida contraída pelo cônjuge administrador dentro dos seus poderes (1678º) – trata-se de um requisito difícil de provar; não se aplica quando a dívida resulte da aquisição de bens, porque nesse caso ainda não existe administração; fazia sentido quando a administração dos bens era por pelouros, em que se sabia quem era administrador.
ii) Aplica-se independentemente do regime de bens;
iii) Só abrange dívidas contraídas na constância do casamento (pois «é com o casamento que adquire relevo o instituto da administração de cada uma das massas patrimoniais daí em diante existente, sejam estas bens próprios ou bens comuns do casal» - Helena Salazar, Breves notas sobre a responsabilidade pelas dívidas contraídas por um dos cônjuges no exercício da actividade comercial, p. 366).

d) 1691º/2
i) Dívidas contraídas por qualquer um dos cônjuges antes do casamento com proveito comum;
ii) É o credor que tem que alegar e provar o proveito comum (1691º/3);
iii) Exige-se a comunhão geral, pois se os bens passam a ser comuns as dívidas também (comunica-se o activo e o passivo), justificando-se ainda a solução pelas expectativas dos credores.

e) 1691º/1/e)
i) Tratando-se de comunhão geral – remissão para o 1693º/2;
ii) Tratando-se de comunhão de adquiridos – remissão para o 1729º.

f) 1694º/1
i) Dívidas que oneram bens comuns;
ii) Tratando-se de comunhão geral – momento da comunicação é o casamento;
iii) Tratando-se de comunhão de adquiridos – momento de aquisição é o casamento.

g) 1694º/2 parte final

h) 1691º/1/d)

i) 2 Requisitos:

1º Dívida contraída no exercício do comércio (15º do C. Comercial) – dívida comercial (2º ou 230º do C. Comercial); cônjuge comerciante (13º do C. Comercial); dívida contraída com conexão com actividade exercida.

2º Proveito comum do casal – presume-se pela alínea d), pelo que quem tem de provar que não houve proveito comum do casal é o cônjuge que não contraiu a dívida.

­ Ratio – em geral os proventos auferidos no exercício da actividade comercial são utilizados no sustento e na satisfação de interesses comuns dos cônjuges e da sua família;
­ O que releva não é o resultado da contracção da dívida mas o fim que lhe presidiu, designadamente o interesse comum do casal;
­ Pode não apresentar conteúdo puramente lucrativo ou económico e ser intelectual, moral ou espiritual;
­ A separação de facto não permite afastar por si só a existência de proveito comum (Helena Salazar, Breves notas sobre a responsabilidade pelas dívidas contraídas por um dos cônjuges no exercício da actividade comercial, pp. 371 e 372; Acórdão da Relação de Coimbra de 09.11.1993, 29-32).


 Trata-se de uma dupla e articulada presunção: se o credor provar os dois requisitos do artigo 15º do C. Comercial faz funcionar a primeira presunção (a dívida foi contraída no exercício do comércio). Funcionado a primeira presunção, funciona também a segunda presunção (proveito comum do casal). Funcionando ambas as presunções, existe responsabilidade de ambos os cônjuges.

ii) Condição de aplicabilidade – não vigorar o regime da separação de bens, pese embora se questione a viabilidade de aplicação do 1691º/1/c) às dívidas resultantes do exercício do comércio desde que o credor prove os respectivos requisitos (contra – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. V, p. 336 e Acórdão da Relação do Porto de 09.06.1998, 192-194; a favor - Helena Salazar, Breves notas sobre a responsabilidade pelas dívidas contraídas por um dos cônjuges no exercício da actividade comercial, pp. 374 e 375).


2ª Questão (1695º)

a) Regimes de comunhão – 1º Bens comuns; 2º Na insuficiência dos comuns respondem os bens próprios de cada um solidariamente (responsabilidade subsidiária e solidária);
b) Regimes de separação – respondem os bens próprios de cada um; a responsabilidade é conjunta (1695º/2), mas nada impede que se convencione a solidariedade nos termos do artigo 513º do Código Civil.

Nota: os bens em compropriedade são ainda bens próprios, pelo que não há razão para que prevaleçam sobre os restantes bens próprios.


2) DÍVIDAS QUE RESPONSABILIZAM SÓ UM DOS CÔNJUGES


1ª Questão

a) 1692º/a) – é o reverso do 1691º/1/b), c) e d) e 2;
b) 1692º/b) – se o crime for praticado por ambos os cônjuges a responsabilidade é individual;
c) 1693º/1 – dívidas que oneram doações, heranças ou legados;
d) 1694º/2 1ª parte + 1692º/c).


2ª Questão (1696º)

a) Regimes de separação – só os bens próprios do cônjuge devedor (n.º1);
b) Regimes de comunhão – 1º Bens próprios (n.º 1) + 1696º/2 (bens comuns); 2º meação nos bens comuns (n.º 1).

1696º/2: são bens comuns; estão sujeitos a um regime especial de administração (são administrados exclusivamente pelo cônjuge que é responsável); a razão desta extensão da responsabilidade aos bens comuns é pela especial ligação a um dos cônjuges; aplicação analógica da alínea b) do n.º 2 aos rendimentos de bens próprios por maioria de razão.


Jurisprudência:

Ac. STJ de 10.02.2002, in CJ (STJ) 2002/I/32-36; Ac. STJ de 27.06.2000, in CJ (STJ), 2000/II/130-135; Ac. STJ de 10.05.1998, in RLJ 123º, pp. 366 e ss.; Acórdão da Relação do Porto de 09.06.1998, in CJ 1998/III/192-194; Acórdão da Relação de Coimbra de 09.11.1993, in CJ 1993/V/29-32.

Doutrina:

Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pp. 290-352; Antunes Varela, Direito da Família, Petrony, Lisboa, 1999, pp. 371-421; Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 365-428; Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, AAFDL, Lisboa, 2008, pp. 529-570; Salter Cid, A protecção da casa de morada de família, Almedina, 1996; Leonor Beleza, Os efeitos do casamento, in Reforma do Código Civil, Ordem dos Advogados, 1981, pp. 91-135; Rita Lobo Xavier, Reflexões sobre a posição do cônjuge meeiro em sociedades por quotas, Suplemento do BFDUC, XXXVIII, 1993, pp. 1-159; Helena Salazar, Breves notas sobre a responsabilidade pelas dívidas contraídas por um dos cônjuges no exercício da actividade comercial, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I (Direito da Família e das Sucessões), Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 351-380.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A família na política social portuguesa

Kann Wall Análise Social, vol. xxx (131-132), 1995 (2.°-3.°), 431-458
Apontamentos sobre a família na política
social portuguesa**
INTRODUÇÃO
As definições de família e das obrigações familiares, tal como se encontram
quer na legislação, quer nas práticas de política social em Portugal, têm
mudado ao longo do tempo, em resposta a diferentes contextos sociais,
económicos e políticos. Numa caracterização esquemática desses contextos
passados podem distinguir-se quatro períodos principais.
1. Até ao século xix, num contexto antecedente à legislação de política
social, a assistência social baseava-se em instituições de caridade privada
(maioritariamente ligadas à Igreja e às ordens religiosas), directa ou indirectamente
financiadas pela casa real, sendo sublinhada a não intervenção do
Estado na sua actividade.
2. No século xix e princípio do século xx emergiram novas ideias sobre
as funções do Estado, tendo a intervenção estatal começado a ser
conceptualizada como resposta necessária às limitações das instituições privadas
de protecção social. No entanto, a legislação sobre política social, para
não falar das formas efectivas de protecção social asseguradas pelo Estado,
desenvolveu-se lentamente, continuando, assim, as instituições de caridade
privadas ligadas à Igreja, as associações de ajuda mútua com base nas afinidades
ocupacionais dos trabalhadores e as redes informais de solidariedade
* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
** Este relatório sobre Portugal faz parte de um estudo comparativo europeu intitulado
Defining Family Obligations in Europe, coordenado por Jane Millar, da Universidade de Bath,
e financiado pela Rowntree Foundation. Os dados contidos neste estudo dizem respeito ao ano
de 1994.
A tradução do texto inglês foi realizada por Sofia Aboim Inglez e Pedro Vasconcelos.
Agradeço a colaboração do Dr. Paulo Ferreira e do Dr. António Martinho na elaboração do
relatório. 431
Karin Wall
a funcionar como principais bases de protecção e assistência social. Contudo,
vários fundos para pensões e reformas foram criados, quer através da iniciativa
pública, quer através da iniciativa privada, e legislação sobre segurança
social obrigatória foi introduzida pelo governo republicano em 1919. Com
base nas contribuições de patrões e trabalhadores, a nova legislação visava
proteger o conjunto da população trabalhadora, homens e mulheres, em situações
de doença, acidentes de trabalho, desemprego, invalidez e velhice. De
acordo com Maia1, este ambicioso sistema inicial de seguros sociais obrigatórios
teve fraco desenvolvimento prático, não obtendo a adesão dos empregadores,
uma vez que estes recusaram aceitar as obrigações inerentes ao
sistema. Foi mais tarde abolido pelo regime corporativista.
3. O novo regime corporativo, instituído nos anos 30 e vigente até 1974,
foi um período caracterizado pela implantação gradual de um sistema de
protecção social, protecção esta que teve, contudo, um desenvolvimento
desigual e parcial. O papel do Estado é então redefinido, passando este a
promover e a tutelar as instituições de previdência e assistência social. Alguma
legislação sobre a organização da protecção social foi publicada em 1935,
mas um crescimento efectivo da mesma só veio a registar-se em meados da
década de 40, depois da publicação de decretos que atribuíram ao Estado a
responsabilidade directa na criação de dispositivos de protecção social, tentando
assim colmatar a ausência de iniciativa por parte dos empregadores2.
O novo sistema instituído pelo Estado corporativo baseava-se no pressuposto
de que o trabalho assalariado a tempo inteiro era, e deveria ser, o
principal meio de distribuição dos rendimentos. Os principais benefícios do
sistema destinavam-se apenas a substituir parcialmente os rendimentos do
trabalho (em casos de doença, invalidez e velhice), vincando assim a linha
divisória entre situações de emprego e de não emprego. Tais subsídios deveriam
ser pagos apenas quando houvesse uma razão justificativa aceitável que
impedisse os indivíduos de trabalhar. Destinavam-se, assim, a indivíduos que
já haviam trabalhado anteriormente e apenas para trabalhadores da indústria
e dos serviços (quando, em 1950, 46,9 % da população activa pertencia ainda
ao sector agrícola). As áreas rurais tinham um sistema separado de protecção
social, mas os níveis de cobertura desse sistema eram extremamente baixos,
estimando-se que 80 % da população não era realmente abrangida por qual-
1 Cf. F. Maia, Segurança Social em Portugal, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento,
caderno 11, Lisboa, 1985.
2 Sobre os poderes conferidos ao Estado por estes decretos e as garantias inseridas nas
primeiras convenções de trabalho, v. Fátima Patriarca, «A regulamentação de trabalho nos
432 primeiros anos do regime corporativo», in Análise Social, n.° 128, 1994, pp. 801-839.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
quer forma de protecção social3. Quaisquer outras situações que não estivessem
contempladas neste esquema de protecção social não se encontravam
enquadradas por nenhum outro sistema.
As situações abrangidas não incluíam nenhuma forma de apoio a quem
estivesse a prestar cuidados a outrem. Tal como as domésticas, aqueles que
tinham a seu cargo alguém inválido deveriam apenas receber rendimentos
indirectamente, através do «chefe de família», considerado o principal ganha-
-pão do núcleo doméstico. Os «chefes de família», que se esperava serem
quase sempre homens, representavam o nível mais baixo da hierarquia
corporativa. Era considerado «chefe de família»:
a) O trabalhador casado, com família legitimamente constituída, que com
ele vivia em comunhão de mesa e habitação ou sob a sua autoridade4.
Entendia-se que as pessoas viviam a cargo do chefe de família quando,
por falta de rendimentos próprios, este provesse habitualmente ao seu
sustento, vestuário e educação;
b) O trabalhador solteiro, viúvo, divorciado ou separado de pessoas e
bens com pessoas de família nas condições da alínea anterior;
c) Uma mulher casada cujo marido se encontrasse inválido ou incapaz de
prover o sustento da família. Assim, somente quando substituía o
marido é que a mulher casada podia ser reconhecida como chefe de
família, podendo então exercer determinados direitos (o direito à autoridade
no lar, o direito a reclamar subsídios). Caso contrário, a mulher
estava sempre dependente do marido e sujeita à sua autoridade.
O direito a benefícios obtidos através do chefe de família desenvolveu-se
gradualmente. Por exemplo, o direito à assistência médica, em caso de doença,
para os membros da família de um beneficiário da protecção social foi apenas
estabelecido em 1950. O direito a benefícios obtidos através do chefe de família
estava dependente da existência de «relações legítimas» (isto é, o casamento),
sendo excluídos de qualquer direito a benefícios sociais aqueles a viver em
união de facto e os filhos ilegítimos, nascidos fora do casamento. Neste contexto,
é importante notar que a percentagem de crianças nascidas fora de laços
matrimoniais formalizados era particularmente alta em Portugal nas décadas de
40 e 50 (variando entre 12 % e 17 %5). No que respeita a pais sós, apesar de
as mães sós (e as mulheres solteiras) poderem ganhar o direito a benefícios
através do emprego num sector com protecção social, tinham salários mais
baixos do que os homens e trabalhavam frequentemente em sectores
3 Cf. Maia, op. cit.
4 Cf. Decreto-Lei n.° 32 192, de 13 de Agosto de 1942, p. 1027.
Cf. A. Nunes de Almeida, «Comportamentos demográficos e estratégias familiares», in
Estudos e Documentos, ICS, n.° 10, 1984. 433
Karin Wall
económicos sem formas estabelecidas de protecção social (isto é, serviços
domésticos e agricultura). Deste modo, nem sempre tinham acesso aos principais
benefícios ou ao abono de família, um subsídio destinado a cobrir os custos
de uma criança ou de outro membro da família a cargo do chefe de família.
É importante examinar o abono de família noutros aspectos. Criado em
1942 como benefício separado para trabalhadores assalariados da indústria e
serviços, tinha na sua base a ideia da «necessidade de minorar as dificuldades
que a carestia da vida trazia para os chefes de famílias numerosas»6. De um
ponto de vista do regime corporativo, o trabalhador individual não devia apenas
ser considerado um indivíduo isolado, mas sim uma parte integrante da família.
Sendo a missão do Estado corporativo a promoção e defesa da família, este
devia, em consequência, promover a adopção de um salário familiar, ou seja,
assegurar que o rendimento do trabalhador fosse suficiente para garantir não só
o seu próprio sustento, mas também o do seu grupo familiar. Apesar de os
pagamentos serem baixos, o tipo de unidade familiar tomado em conta para o
abono de família era a família alargada. O chefe de família podia candidatar-
-se a benefícios para os filhos legítimos ou perfilhados, bem como para os da
mulher, com menos de 14 anos (ou menores de 18 se fossem estudantes), para
os netos, ou para os da mulher, mas apenas se os responsáveis pelo sustento
destes tivessem já falecido, para os seus parentes e para os da mulher (em linha
ascendente), para quaisquer crianças ou adultos inválidos independentemente
das idades. Contudo, chefes de família que fossem solteiros ou solteiras podiam
apenas reclamar abono de família para «ascendentes», e não para descendentes.
Em síntese, o sistema de benefícios que emergiu nos anos 40 e 50 baseava-
-se no princípio de que o direito aos benefícios estava dependente da actividade
profissional (e apenas em certos sectores) e não reconhecia as situações de
união de facto ou de ilegitimidade dos nascimentos. O sistema de benefícios
baseava-se ainda na assunção de que a protecção social promovida pelo Estado
tinha um papel paliativo e uma extensão limitada. A protecção social, para
alguns trabalhadores da indústria e dos serviços, cobria as contingências resultantes
de doença, invalidez, velhice e das despesas com membros dependentes
da família. Os níveis de pagamento eram extremamente baixos, nomeadamente
no que diz respeito a pensões de velhice e abonos de família. Não havia
qualquer protecção social para a maternidade7, para sobreviventes, para situações
de desemprego, para acidentes de trabalho ou para doenças profissionais.
A contrapartida deste sistema consistia numa ideologia encorajadora de uma
ética do trabalho forte (segundo a qual as pessoas tinham de trabalhar para
6Decreto-Lei n.° 32 192, de 13 de Agosto de 1942, p. 1025. Sobre o clima social e
económico que antecedeu a publicação deste decreto, v. Fátima Patriarca, op. cit., pp. 822-823.
7 Alguns dos primeiros contratos e acordos firmados inserem, no entanto, a garantia de
uns dias de licença às mulheres por altura do parto com pagamento de pelo menos um terço
434 do salário (v. Fátima Patriarca, op. cit, p. 811).
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
resolver situações de carência) e de valores familiares, bem como de legislação,
em que a obediência ao chefe de família e a ajuda mútua entre membros da
família eram enfatizadas8. Isto significava, por exemplo, que os membros mais
novos da família tinham o dever de entregar o seu salário ao chefe de família
ou permanecer em casa, como filho ou filha solteiros, caso o pai ou a mãe
tivessem disso necessidade. O Código Civil sublinhava não só a obediência ao
«chefe de família», mas tomava também em conta um leque alargado de
relações familiares ao definir as obrigações de sustento e apoio entre os parentes.
Por exemplo, as obrigações recíprocas em termos de pensão de alimentos
diziam respeito não só ao cônjuge, aos filhos e às filhas, mas também aos pais
e sogros, tios e tias e avós de um determinado indivíduo. Fortes obrigações
morais existiam também entre padrinhos/madrinhas e seus afilhados/afilhadas.
Por outro lado, a assistência social persistia em níveis extremamente
baixos de eficiência. O primeiro «estatuto da previdência social», publicado
em 1944, definia o papel do Estado como suplementar no que diz respeito a
serviços de prestação directa de cuidados. Na prática estes serviços continuaram
a depender fortemente da iniciativa privada e informal.
Na década de 60 e inícios da década de 70 foram alargadas as garantias
de protecção social. A nova legislação tentou integrar outros sectores da
população activa no sistema de benefícios sociais (em 1969 foi criada legalmente
uma forma especial de protecção social para trabalhadores rurais, que
estendia a esta população alguns benefícios garantidos a outros sectores,
como, por exemplo, o abono de família). Foram também introduzidos novos
benefícios, nomeadamente um subsídio de maternidade (em 1962), um subsídio
por morte (em 1973) e pensões de sobrevivência (em 1970).
4. A política social no período que se seguiu à revolução de 25 de Abril
de 1974 foi marcada por um considerável alargamento de objectivos, quer
em termos do papel do Estado, quer em termos da população beneficiária,
bem como em termos de taxas de cobertura e tipos de benefícios e serviços.
A Constituição de 1976 dava uma forte ênfase ao papel do Estado, que era
suposto organizar, coordenar e subsidiar o sistema de segurança social. Dava
também vazão a duas ideias-chave: a universalidade do direito à protecção
social (todos os cidadãos têm direito à protecção social) e o princípio de que
o direito a benefícios não deve estar ligado apenas a situações de emprego.
De acordo com a Constituição de 1976, os cidadãos devem estar protegidos
não só em situações de doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, mas
8 Cf. A. Ingerson, Corporatism and Class Conciousness in Northwestern Portugal, John
Hopkins University, PhD thesis, 1984, e K. Wall, La fabrication de la vie familiale.
Changement social et dynamique familialle chez les paysans du Bas Minho, Université de
Genève, thèse de doctorat, 1994. 435
Karin Wall
também em situações de desemprego e em todas as outras situações de carência
ou redução dos meios de subsistência ou das capacidades de trabalho.
Outros fins gerais em termos de bem-estar social são definidos: por exemplo,
a promoção do bem-estar na família através da criação de uma rede nacional
de creches; ou a promoção de cuidados e apoio em âmbitos familiares e
comunitários para evitar o isolamento dos mais idosos. Finalmente, a Constituição
estabelece também dois importantes princípios alicerçadores de uma
nova «família modelo» no processo de restruturação do Código Civil em
1977: a igualdade entre homens e mulheres e a não discriminação de crianças
nascidas fora do casamento. Enfatiza também a liberdade dos cidadãos para
constituírem a sua vida familiar da forma como bem entenderem.
Entre as principais medidas tomadas para implementar o novo sistema de
benefícios durante os primeiros anos depois da revolução (entre 1974 e
1980), são de mencionar as seguintes:
a) Uma pensão social, um benefício não contributivo que depende do
nível de rendimentos do indivíduo, foi criada para todos os indivíduos
com mais de 65 anos ou pessoas inválidas que não estivessem abrangidas
pelos principais benefícios contributivos ou qualquer outra forma
de protecção social. Os candidatos a beneficiários tinham de provar que
o seu rendimento mensal estava abaixo de determinado nível9;
b) Um subsídio de desemprego foi criado10 para todos os assalariados
desempregados. Permitia uma substituição parcial dos rendimentos
(60-75 % do salário mínimo nacional por um período de 180 dias, e
mais, se a pessoa tivesse mais de 50 anos de idade). Foi também
estabelecido que os trabalhadores desempregados e suas famílias mantinham
o direito à assistência médica e ao abono de família durante o
desemprego.
É importante notar que a situação familiar dos trabalhadores assalariados
desempregados era tomada em consideração de duas maneiras:
para impedir o acesso ao subsídio de desemprego quando o grupo
doméstico a que pertencia o indivíduo possuía um rendimento superior
a 60 % do salário mínimo per capita; para determinar a percentagem do
salário mínimo a que tinha direito o indivíduo — 60 % desse salário (se
não existissem membros dependentes na família) ou 75% do mesmo
salário (se existissem membros dependentes na família). Os membros
dependentes podiam ser o cônjuge, filhos e filhas menores de idade e
ascendentes que tivessem rendimentos inferiores a 60 % do salário
mínimo;
9 1250 escudos. Despacho Normativo n.° 59/77, de 23 de Fevereiro.
10 Foi definido pelo Decreto-Lei n.° 169-D/75, de 31 de Março, e redefinido pelo Decreto-
436 -Lei n.° 183/77, de 5 de Maio.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
c) A extensão da protecção social ou de certos benefícios a trabalhadores
assalariados rurais e aos trabalhadores dos serviços domésticos;
d) A introdução de uma licença de maternidade paga (90 dias) para assalariadas11;
e) O abono de família manteve-se, mas com a introdução de várias modificações
no que respeita ao direito de requisição, de habilitação e ao
conjunto de beneficiados. Em primeiro lugar, o decreto12 estabelece que
a requisição pode ser feita por qualquer adulto beneficiário, independentemente
do sexo ou estatuto (o que significa que o conceito de chefe de
família é considerado obsoleto). Em segundo lugar, no que respeita à
habilitação, esta prestação é considerada como sendo um direito da
criança (em oposição ao direito do chefe de família). Finalmente, a
unidade de beneficiados é reduzida: de 1978 em diante13 os parentes em
linha ascendente passam a não ter direito ao abono de família, uma vez
que estes têm agora direito a uma pensão social. Contudo, os descendentes
além do 1.° grau têm direito a esta prestação não somente em caso
de falecimento dos pais, mas também quando, por qualquer razão, não
têm direito ao abono de família em função dos pais14;
f) Os valores das pensões de velhice foram aumentados.
Para interrogar a definição de família na política social, os deveres e direitos
na família e as medidas de protecção social tomadas nos anos 80 e princípio dos
anos 90, irei agora analisar cinco áreas diferentes de política social: o casamento
e a coabitação, os pais e seus filhos dependentes, o divórcio e a separação,
os filhos adultos e seus pais dependentes, os adultos em situação de invalidez
ou incapazes de se sustentarem a si próprios;
1. CASAMENTO E COABITAÇÃO
O casal («legitimamente») casado, com o marido como chefe de família
e a mulher como membro subordinado, foi o modelo a partir do qual a
protecção social corporativista foi construída nas décadas de 40 e 50. O
sistema então vigente dava também considerável importância à família
alargada e alguma atenção aos adultos solteiros.
O sistema de protecção social emergente após a revolução de 1974 foi
construído com base na ideia da igualdade entre os cônjuges15 e no direito
11 Decreto-Lei n.° 112/76, de 7 de Fevereiro.
12 Decreto-Lei n.° 197/77, de 17 de Maio.
13 Decreto-Lei n.° 180-D/78, de 15 de Julho.
14 Cf. Decreto-Lei n.° 197/77, de 17 de Maio, artigo 5.°
15 O artigo 1671.° do Código Civil estabelece a igualdade entre os cônjuges. 437
Karin Wall
ao estabelecimento de diferentes formas de laços conjugais e modos de vida.
A nova Constituição (1976) proibiu também qualquer tipo de discriminação
entre filhos nascidos dentro ou fora do casamento legalmente válido, reconhecendo
assim que a protecção social é devida a todos os cidadãos, independentemente
do enquadramento legal da sua vida familiar.
Na legislação e na política social, os direitos e deveres dos casais casados
são diferentes dos possuídos pelo casais que «vivem juntos como marido e
mulher», como pode verificar-se através da análise e comparação entre medidas
de política social e legislação respeitantes a casais casados e casais em coabitação.
O casamento é permitido apenas entre pessoas de sexos diferentes16, mas
os direitos e deveres do marido e da mulher são os mesmos: ambos têm a
obrigação de se ajudarem e apoiarem mutuamente, ambos são responsáveis
pela orientação e custo da vida familiar; ambos têm como deveres o respeito,
a fidelidade, a coabitação, a cooperação e a assistência17.
Comparativamente, as obrigações legais existentes na união de facto são
menores do que as existentes entre pessoas casadas, não havendo no primeiro
caso obrigações mútuas de sustento e apoio. O direito de requerer alimentos
é apenas considerado numa situação específica: um viúvo, ou viúva, que
viveu com outro indivíduo como marido ou mulher durante mais de dois
anos pode, em caso de morte do(a) parceiro(a) e em caso de necessidade,
requerer uma pensão de alimentos sobre a herança do(a) falecido(a).
Casais em coabitação têm também direito automático ao arrendamento da
casa em que viviam em comum em caso de morte (de um parceiro com quem
vivam há mais de cinco anos). Por sua vez, os casais legalmente casados têm
direito ao arrendamento em caso de morte de um dos cônjuges e têm também
direitos de herança sobre a casa própria do casal ou do cônjuge falecido e
direitos de usufruto sobre os bens móveis possuídos.
Os direitos de herança dos cônjuges vinculados pelo casamento, independentemente
do regime de bens, são, assim, diferentes dos reconhecidos aos
casais em coabitação sem vínculo legal. O cônjuge sobrevivo, legalmente
casado, tem direito a parte ou à totalidade da herança do cônjuge falecido,
consoante existam ou não outros herdeiros e o falecido tenha ou não disposto
validamente (através de testamento) da quota disponível. Em qualquer caso, o
cônjuge sobrevivo nunca pode ter na herança disponível do falecido uma quota
inferior a 25%. O património pertença do cônjuge falecido varia em função do
regime de bens do casamento. Assim, se o casamento for em regime de
comunhão de adquiridos18, o património considerado para o efeito é constituído
16 Artigo 1577.° do Código Civil.
17 Artigos 1671.° e 1672.° do Código Civil.
18 O casamento em regime de comunhão de bens adquiridos após o casamento é o contrato
modelo (regime supletivo) efectuado em Portugal, se não houver, por parte do casal, uma
438 proposta de contrato matrimonial diversa.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
por metade dos bens adquiridos na vigência do casamento mais os bens próprios
de que era detentor; se for em regime de comunhão geral, o património
em questão corresponde a metade dos bens do casal; se for em regime de
separação de bens, é a totalidade dos bens do falecido que é objecto de herança.
Em termos de prestações da segurança social, os indivíduos casados têm
direito a uma prestação única de subsídio de casamento e a uma licença de
onze dias. A obtenção de alguns benefícios é também possível, mesmo no
caso de o indivíduo não ser beneficiário, através de um cônjuge segurado
(beneficiário). Inclui-se aqui o abono de família, o subsídio especial para
crianças deficientes, o subsídio por assistência de terceira pessoa para uma
criança deficiente (esta prestação foi criada em 198919 e pode ser acumulada
com o subsídio para pessoas deficientes). O cônjuge de uma pessoa
beneficiária falecida tem direito a um subsídio por morte, ao subsídio de
funeral, à pensão de sobrevivência (independentemente dos rendimentos próprios
de trabalho). Por outro lado, os direitos obtidos através de coabitação
abrangem o subsídio de funeral e, muito recentemente (o decreto foi publicado
em 199020, mas apenas regulamentado em Janeiro de 199421), a pensão
de sobrevivência, o subsídio por morte e um subsídio por assistência de
terceira pessoa (os indivíduos beneficiários de uma pensão de sobrevivência
e necessitando de assistência de uma terceira pessoa têm direito a candidatar-
-se a este tipo de benefícios). Os pensionistas têm de provar ter vivido em
comum com o parceiro falecido pelo menos durante dois anos. Quer isto
dizer que os benefícios têm vindo a abranger pontualmente os casais
coabitantes. Por outro lado, esta é uma questão que tem vindo a ser discutida
no parlamento. Em 1988 o Partido Comunista Português (PCP) apresentou
um primeiro projecto regulamentador do acesso a benefícios pela morte de
um parceiro coabitante, projecto esse rejeitado pela maioria parlamentar. Esta
questão é retomada num novo projecto (projecto de lei n.° 457/VI, 1994) com
o objectivo de simplificar os regulamentos definidos em 1994, considerados
complicados e limitativos.
Parceiros casados ou coabitantes são diferentemente tratados pelo sistema
fiscal. Uma das questões discutidas na década de 80 foi o problema das
contribuições fiscais familiares. Portugal decidiu não aplicar um sistema de
contribuições individuais, adoptando antes um sistema de impostos sobre o
rendimento familiar.
Quando um dos cônjuges ganha 95 % ou mais do rendimento familiar (um
ganha-pão principal), é aplicado um coeficiente (1,9 em 1994) baseado no casal
e não no número de membros da família. O tamanho da família é tomado em
consideração, mas os efeitos no montante do rendimento familiar isento de
19 Decreto-Lei n.° 29/89, de 23 de Janeiro.
20 Decreto-Lei n.° 322/90, de 18 de Outubro.
21 Decreto-Lei n.° 1/94, de 18 de Janeiro. 439
Karin Wall
impostos são negligenciáveis. As pessoas solteiras têm direito a uma dedução
de 30 100 escudos, os indivíduos casados têm direito a uma dedução de 22 800
escudos e, finalmente, cada criança dá direito a uma dedução de 16 500 escudos
(em 1994). Estes montantes são aumentados em 60 % quando o contribuinte,
ou um membro dependente da sua família, é deficiente. É também possível
deduzir despesas com cuidados de saúde, despesas escolares, despesas com
cuidados de pessoas idosas que estejam internadas num lar ou residência e
despesas com seguros, até um montante máximo de 145 500 escudos para
celibatários e 291 000 escudos para pessoas casadas. Os casais coabitantes são
considerados, para este efeito, como dois celibatários.
Finalmente, os direitos e deveres dos pais coabitantes, face a filhos e
filhas, são os mesmos dos casais legalmente casados. O Código Civil estabelece
ainda as obrigações de um pai solteiro em relação à mãe de uma
criança por aquele reconhecida legalmente como sua filha. É, assim, obrigado
a dar à mãe da criança uma pensão de alimentos durante a gravidez e durante
o primeiro ano de vida da criança.
Em síntese, o casamento é, em Portugal, a instituição nuclear criadora de
obrigações e responsabilidades entre os cônjuges. É também dentro do casamento
que os cônjuges se encontram mais protegidos face a qualquer contingência.
Os direitos e deveres, bem como a protecção de parceiros coabitantes,
têm vindo a ser alargados em comparação com o sistema de protecção social
corporativista, mas uma comparação da situação actual dos casais casados
versus casais coabitantes mostra que estes últimos são considerados uma
instituição de dois indivíduos distintos.
A questão dos casais homossexuais não tem sido discutida na legislação
e na prática da política social.
2. PAIS E FILHOS DEPENDENTES
Os pais têm o dever legal de manter e sustentar os filhos, independentemente
do facto de serem, ou terem sido, casados. A este respeito, o Código Civil
revisto (1977) introduz mudanças significativas a nível dos princípios gerais e
modifica também as definições de obrigações mútuas22. Acima de tudo, as
mudanças apontam no sentido de ser prestada uma maior atenção à criança.
Em 1966 a lei consagrava o dever dos filhos em «honrar e respeitar seus
pais»23. Em 1977 é referido que «pais e filhos devem-se mutuamente respeito,
auxílio e assistência»24.
22 Cf. P. Guibentif et al., La production du droit de la filiation au Portugal, relatório
apresentado ao Réseau de recherche sur le droit de la famille en Europe (Paris, CEVIPOF),
Lisboa, 1992.
23 Artigo 1876.°
440 24 Artigo 1874.°
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
Entre as principais alterações introduzidas é de notar a extensão da
obrigatoriedade da prestação, pelos pais, de pensão de alimentos aos filhos
para além da maioridade ou da emancipação, no caso de estes não terem
completado a sua formação profissional25. Por outro lado, os direitos de
usufruto dos pais sobre os bens dos filhos menores26 são abolidos, e abolida
é também a referência, ainda explícita no Código Civil de 1966, relativa ao
poder de punição dos pais sobre os filhos.
O Código Civil de 1966 dava o poder paternal aos dois cônjuges, mas
distinguindo o poder do pai do poder da mãe, pois o primeiro estava investido
de «poderes especiais do pai»27, na sua qualidade de «chefe da família».
O poder do pai em emancipar os filhos sem o consentimento da mãe era
também sintomático da desigualdade entre marido e mulher. O Código Civil
de 1977 revê esta questão e consagra, finalmente, na lei a igualdade de ambos
os cônjuges em matéria de poder paternal. Estabelece ainda que o poder
paternal deve ser retirado aos pais sempre que a segurança, saúde ou educação
moral da criança estejam em perigo, ao passo que no Código de 1966 a
autoridade paternal só era retirada no caso de os pais serem condenados por
crimes, serem dados como incapazes devido a anomalias mentais, estarem
ausentes ou serem menores não emancipados.
A maioridade é aos 18 anos e dá ao indivíduo o direito de votar, de tirar
a carta de condução ou adquirir independência fiscal (neste último caso o
indivíduo deixa de ser considerado dependente dos pais se tiver um rendimento
superior ao ordenado mínimo nacional, mesmo sendo ainda estudante).
Os jovens só podem, hoje em dia, trabalhar aos 16 anos. Quanto à idade
limite para se poder receber o abono de família, varia consoante a actividade
do jovem. Os descendentes têm, assim, direito a esta prestação até à idade de
15 anos; até aos 18 anos, se estiverem a completar a escolaridade obrigatória
(nove anos); até aos 22 anos, se estiverem matriculados no ensino secundário;
até à idade de 25 anos, se estiverem no ensino superior (licenciatura ou pós-
-graduação) ou a realizar outro tipo de formação profissional. Por outro lado,
como já foi referido, os pais têm agora a obrigação de providenciar o sustento
dos filhos para além do limite da maioridade sempre que estes estejam em
formação.
Estas questões levantam o problema de saber quem paga os custos inerentes
aos filhos, em que medida estes custos recaem sobre os pais e em que
medida são também partilhados pelo Estado. São os seguintes os benefícios
prestados pela segurança social, já mencionados:
a) O abono de família, uma prestação que pode ser requerida para cada
um dos filhos. Contudo, os pagamentos mensais são baixos (2450
'Artigo 1880.°
27 Artigo 1881.° do Código Civil de 1966. 441
26 Artigo 1893.° do Código Civil de 1966.
Karin Wall
escudos pagam mais ou menos 20 litros de leite, a preços de Dezembro
de 1994), sendo que um pagamento adicional (1230 escudos) só
é disponibilizado a partir do terceiro filho (e apenas atribuído abaixo
de um certo nível de rendimento da família);
b) O subsídio especial para crianças deficientes com menos de 24 anos;
c) O subsídio por frequência de estabelecimentos de educação especial
para crianças e jovens com menos de 24 anos. O montante do subsídio
varia de acordo com os custos da educação especializada e de acordo
com o rendimento familiar;
d) O subsídio de nascimento, uma prestação paga por cada filho nascido,
independentemente do rendimento dos pais;
e) O subsídio de aleitação, uma prestação paga às mães durante os primeiros
dez meses de vida das crianças, independentemente do rendimento
dos pais;
f) O subsídio por assistência de terceira pessoa, uma prestação a que têm
direito as crianças e jovens que recebem o subsídio especial para
crianças deficientes ou o subsídio de educação especial e que não
possam dispensar os cuidados permanentes de uma terceira pessoa;
g) A licença de parto (90 dias em 1994). Pode ser concedida uma licença
ao pai pelo período de 30 ou 60 dias, mas apenas em caso de incapacidade
mental ou física da mãe. O aumento da licença de parto, bem
como o direito do pai a uma licença, tem sido objecto de discussão
parlamentar, e uma proposta de lei aumentando a licença de parto para
14 semanas foi apresentada no parlamento em Dezembro de 199428.
Em caso de adopção, a licença concedida é de 60 dias.
O sistema de segurança social não contempla benefícios suplementares
para famílias de pais sozinhos.
Além de conceder benefícios, o Estado pretende ainda fornecer, regular
e subsidiar serviços de prestação de cuidados e apoio à infância. No caso
de crianças em idade pré-escolar, a prestação destes serviços acaba aos 6
anos (uma vez que o ensino básico obrigatório tem início nesta idade). Os
serviços oficiais são prestados e tutelados pelo Ministério da Educação
(ME) e pelo Ministério do Emprego e da Segurança Social (MESS). Recentemente,
o Ministério da Educação assinou acordos com as autoridades locais,
ficando estabelecido ser da responsabilidade das últimas o fornecimento
de alojamentos e equipamentos e da responsabilidade do Ministério o
28 Um projecto (proposta de lei n.° 114/VI) com proposta de alterações à lei de protecção
da maternidade existente foi apresentado no parlamento pelo partido do governo em Dezembro
de 1994. Assim, a licença de parto paga passa a ser de 14 semanas e foi também introduzida
442 a licença paternal de dois dias. Esta lei foi aprovada em 1995.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
fornecimento dos professores. Daqui resulta a existência ou o desenvolvimento
de diferentes serviços formais de cuidados à infância.
a) O MESS administra directamente creches e minicreches (pequenos
infantários diurnos), amas e creches familiares (consistindo este último
em pequenas redes locais de amas organizadas em torno de uma creche),
jardins-de-infância (para crianças entre os 3 e os 6 anos) e centros
de actividades de tempos livres (visando sobretudo crianças de idades
compreendidas entre os 6 e os 11 anos com o objectivo de preencher
os tempos livres, dado que o horário escolar apenas ocupa as crianças
durante uma parte do dia). O MESS tutela e subsidia ainda instituições
particulares de solidariedade social sem fins lucrativos, que têm creches,
jardins-de-infância e centros de actividades de tempos livres. Os
números relativos aos estabelecimentos e utentes em 1992 (v. quadros
em anexo) mostram que o número de estabelecimentos directamente
administrados pelo MESS (8 creches e minicreches, 16 jardins-de-
-infância, 41 creches com jardins-de-infância, 31 centros de actividades
de tempos livres, 501 amas e 40 creches familiares) é muito baixo e
tem vindo a decrescer desde 1987, com a única excepção das amas e
creches familiares, que aumentaram para mais do dobro, apesar de
abrangerem somente 3395 utentes em 1992. O sistema de amas surgiu
em 198429 a fim de «criar soluções alternativas aos estabelecimentos
clássicos, sem prejudicar a necessária intensificação de uma rede de
estruturas sócio-educacionais». Por seu lado, o número de instituições
privadas não lucrativas tuteladas e subsidiadas pelo MESS representa
a maioria dos serviços de cuidados à infância oferecidos em 1992 e
denota um crescimento de todos os tipos de estabelecimentos desde
1987. Finalmente, é necessário fazer um pequeno comentário sobre o
tipo de serviços oferecidos ou regulados pelo MESS neste contexto. O
modelo de serviços presente nestes estabelecimentos baseia-se na ideia
de assistência social, o que quer dizer que funcionam a tempo inteiro
(10-12 horas), com cantinas e outros serviços, que o pagamento é
calculado com base no rendimento das famílias, que crianças filhas de
pais trabalhadores (nomeadamente pais trabalhadores sós) e crianças
«em risco» têm preferência, que os fins e as práticas educacionais não
são uma prioridade30. Estes estabelecimentos têm dificuldades em
satisfazer a procura e têm longas listas de espera.
29 Decreto-Lei n.° 158/84, de 17 de Maio.
30 Cf. J. Bairrão et al., «Care and education for children under 6 in Portugal», in P.
Olmsted e D. Weikart, How Nations Serve Young Children: Profiles of Child Care and
Education in 14 Countries, High Scope Press, Ypsilanti, Michigan, 1989. 443
Karin Wall
b) O ME faculta um tipo principal de serviços; jardins-de-infância (dos
3 aos 6 anos de idade). É também responsável pela tutela de estabelecimentos
de ensino privados e cooperativos. O número de estabelecimentos
de cuidados à infância fornecidos directamente pelo ME é
igualmente baixo (2853 jardins-de-infância em 1990-1991, com 68 382
utentes), mas tem vindo a aumentar desde 1985-1986, em que os montantes
eram de 2141 escolas, com 49 820 utentes31. O modelo de serviços
e o funcionamento destes estabelecimentos são diferentes dos
subsidiados e tutelados pelo MESS. Os objectivos educacionais são
mais importantes; não há nenhuma propina; as crianças mais velhas têm
prioridade sobre as mais novas; a escola abre apenas cinco horas por
dia, fechando por duas horas durante o intervalo para almoço. Como
resultado, os pais trabalhadores têm dificuldades em colocar os filhos
e filhas nestes estabelecimentos, procurando, assim, soluções alternativas.
Esta parece ser a razão principal que explica o porquê de não
serem preenchidas todas as vagas neste tipo de jardins-de-infância32.
Por outro lado, estabelecimentos lucrativos privados e cooperativos mantêm-
se, geralmente, abertos por um período maior (10 a 12 horas) e providenciam
outros serviços (cantinas ou acomodações para crianças que levam
o seu próprio almoço, etc).
Os dados sobre serviços e estabelecimentos para crianças em idade pré-
-escolar mostram que as taxas de cobertura têm vindo a aumentar, sendo, no
entanto, ainda baixas, de facto das mais baixas da Europa. Se levarmos em
consideração o grupo etário dos 3 aos 6 anos de idade, a respeito do qual o
governo declarou vir a obter uma taxa de cobertura de 90 % para as crianças
de 5 anos de idade em 1993, os números oficiais mostram que os estabelecimentos
tutelados ou directamente providenciados pelo ME e pelo MESS
cobriam 53 % das crianças desse grupo etário em 1991-1992 (21 % através
de escolas pertencentes à rede oficial do ME, 8 % através de escolas tuteladas
pelo ME, 1 % através de escolas pertencentes à rede oficial do MESS e 23 %
através de escolas privadas não lucrativas tuteladas pelo MESS)33. Contudo,
o relatório sobre educação pré-escolar do Conselho Nacional de Educação34
sugere que estes números sobrestimam as taxas de cobertura, nomeadamente
porque levam em consideração as taxas de capacidade estimada (isto é, o
número de crianças que «poderiam» caber nos jardins-de-infância públicos
31 Cf. DEPGEF — Departamento de Programação e Gestão Financeira, Ministério da
Educação, Sistema Educativo Português — Situação e Tendências 1991, Lisboa, 1994.
32 Cf. J. Formosinho, A Educação Pré-Escolar em Portugal — Projecto de Parecer, Conselho
Nacional de Educação, Lisboa, 1994.
33 Id., ibid.
444 34 Id., ibid.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
do ME), e não taxas de cobertura reais. O relatório sugere ainda que as taxas
de cobertura devem encontrar-se algures entre as taxas oficiais e o número
(32 %) indicado por um inquérito internacional sobre serviços formais e informais
de cuidados à infância, baseado numa amostra nacional35.
A lacuna nos serviços de cuidados à infância em Portugal mostra claramente
que o acompanhamento informal das crianças, levado a cabo na família
ou por amas particulares, é de extrema importância. Também mostra que
se parte de certos princípios: primeiro, que serão as famílias os principais
fornecedores de cuidados e acompanhamento para crianças com menos de 6
anos de idade; segundo, que o Estado avançará quer para providenciar estabelecimentos
largamente baseados num modelo de assistência social para
pais que não consigam comportar os custos, quer para providenciar escolas
cujo funcionamento se baseia na suposição de que alguém se encontra em
casa durante o dia para ir buscar a criança, dar-lhe almoço e devolvê-la à
escola, etc. Este tipo de suposições parece não coincidir com as aspirações
e necessidades familiares. Por exemplo, num inquérito realizado em 1993
pela Direcção-Geral da Família 91 % das famílias declararam que gostariam
que o Estado promovesse o bem-estar familiar através de medidas que ajudassem
os pais nos cuidados e acompanhamento das crianças pequenas36.
Finalmente, se se tentar ver quem, na família, providencia o acompanhamento
das crianças, um inquérito levado a cabo sobre uma amostra representativa de
mães com filhos entre 3 e 11 meses no distrito de Coimbra em 199337 mostra
que 35,9 % dessas crianças ficavam com a mãe (44 % destas mães saíram do
emprego para cuidarem dos seus bebés), 26,9 % eram acompanhadas por
outro membro da família (geralmente a avó), 19,7 % eram acompanhadas por
uma ama (particular ou pertencendo à rede pública), 2,7 % por uma empregada
doméstica, e apenas 14,8 % das crianças se encontravam numa creche.
Este estudo mostra também que as redes informais de serviços à infância se
apoiam, em larga medida, nas mulheres, particularmente na mãe e nas irmãs
da nova mãe.
A questão da educação pré-primária tem sido levantada ultimamente não
só pelo Conselho Nacional de Educação, mas também por alguns partidos
políticos, nomeadamente o Partido Socialista (PS), que incluiu a educação
pré-escolar como tópico central do seu programa de política educativa.
Os custos, para as famílias, da educação escolar obrigatória, da educação
escolar não obrigatória e do ensino superior são também uma questão que
tem sido recentemente debatida. A educação primária e secundária em esta-
35 Cf. J. Bairrão et al., op. cit.
36 Cf. M. Nazareth (coord.), Relatório Situação Actual da Família Portuguesa, Lisboa,
Direcção-Geral da Família, 1993.
37 Cf. s. Portugal, «Famílias e bebés: redes informais de apoio à maternidade», comunicação
apresentada ao III Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, 1994. 445
Karin Wall
belecimentos públicos é gratuita, mas, mesmo assim, de custos elevados para
muitas famílias que ao longo dos anos 80 e 90 têm tido dificuldade em
manter os filhos na escola ou em dar-lhes o apoio necessário devido aos
elevados preços dos livros e material escolar, ao custo da alimentação e
vestuário, a altos níveis de insucesso escolar e aos horários escolares que
mantêm as crianças ocupadas apenas durante parte do dia. O Ministério da
Educação contribuiu para a minimização dos custos da educação através da
distribuição gratuita de leite às crianças a frequentar qualquer nível do ensino
escolar obrigatório e através do financiamento e tutela de cantinas (onde o
custo da refeição para os alunos e para outros membros da comunidade
escolar é tabelado pelo próprio ME)38. Apesar de o número de refeições
servidas e de cantinas subsidiadas ter aumentado (de 22 em 1985 para 47 em
1991), havia apenas 1135 cantinas a funcionar em 1991-1992 (quando nesse
mesmo ano havia 9258 escolas a funcionar só ao nível do ensino primário)39.
O ME e as autoridades locais (para crianças a frequentar a escola primária)
também subsidiam os custos das refeições ou oferecem refeições ligeiras a
crianças provenientes de famílias com níveis de rendimentos muito baixos
(12 034 crianças tiveram direito a este benefício em 1991-1992, ao passo que
em 1985-1986 apenas 6010 crianças foram beneficiadas), subsidiando ainda
os livros escolares (6412 crianças tiveram direito a este subsídio em 1991-
-1992 relativamente às 3993 de 1985-1986)40.
O debate sobre os custos da educação para as famílias foi desencadeado
em 1993 pelo estabelecimento de um novo regime de propinas a pagar pelos
estudantes do ensino superior. Até esta altura a propina paga pelos estudantes
do ensino superior era meramente simbólica. A nova propina (a propina
máxima anual é quase o dobro do salário médio mensal) representa um custo
mais elevado e pesado para as famílias. O objectivo das propinas, segundo
o ME, seria o de distribuir socialmente os custos da educação superior de
acordo com o rendimento familiar dos alunos. Nas universidades públicas os
estudantes beneficiários de uma bolsa de estudos estão isentos do pagamento
de propinas e os estudantes provenientes de famílias com baixos rendimentos
podem ser parcialmente isentados do pagamento. Mas é necessário ter em
conta que apenas 9,2% (9,8 % em 1986) da população estudantil (10 919
beneficiários relativamente aos 8385 de 1986) recebe uma bolsa de estudos
(segundo o nível de rendimentos da família e dependente do sucesso
académico), estando esta bolsa muito abaixo do nível de subsistência (cerca
de metade do salário mínimo nacional). Mais ainda, os alojamentos estudantis
aumentaram ligeiramente, mas cobriam apenas 4090 estudantes em 1991-
38 V., a este respeito, o despacho conjunto 67/SERE/SEED/94, de 30 de Agosto de 1994.
39 Cf. DEPGEF, op. cit.
446 40Ibid.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
-1992 (quando nesse mesmo ano lectivo havia 210 176 estudantes a frequentar
o ensino superior, quer público, quer privado)41. Por último, o número de
estudantes no ensino superior público representa apenas metade do número
total de estudantes a frequentar o ensino superior, estando a outra metade a
frequentar o ensino superior privado, onde os estudantes pagam propinas
muito mais altas e não têm ainda direito a quaisquer benefícios sociais. Neste
contexto, isto significa que a maior parte dos estudantes têm de pagar os
alojamentos do seu bolso, no caso de estarem a estudar fora do seu local de
residência, e que todos os estudantes, mesmo os que recebem bolsas e têm
direito a alojamento, estão parcialmente a cargo das suas famílias, pois são
estas que pagam grande parte dos custos da sua educação superior. Em
consequência, a introdução de propinas mais elevadas criou reacções de
grande descontentamento não somente por parte dos estudantes, mas também
em diferentes sectores da sociedade, e continua a ser uma questão em debate
no campo da política educacional.
3. DIVÓRCIO E SEPARAÇÃO
O divórcio42 pode ser levado a cabo por mútuo consentimento, se o casal
estiver casado há pelo menos três anos. No divórcio por mútuo consentimento,
o casal tem de estar de acordo no que diz respeito ao estabelecimento do poder
paternal e à custódia das crianças (quem fica com a guarda dos filhos ou filhas,
como são organizadas as visitas e contactos com o outro progenitor, quais as
obrigações financeiras deste para com os filhos ou filhas menores). Tem
também de acordar no que se refere à obrigação de pensão de alimentos entre
ambos os cônjuges, mas apenas no caso de um dos cônjuges dela necessitar
absolutamente. Por último, deve alcançar também uma decisão acordada a
respeito da casa familiar. Por outro lado, os tribunais têm o direito de recusar
os acordos alcançados entre as partes e modificar a decisão se considerarem
que os interesses de uma das partes, em particular os interesses dos filhos ou
filhas, estão ou podem vir a ser lesados. Finalmente, é de mencionar que os
aspectos processuais respeitantes ao divórcio por mútuo consentimento podem
vir a ser consideravelmente simplificados num futuro próximo. Uma nova lei,
proposta pelo Ministério da Justiça, permite que casais sem filhos ou filhas (ou
casais que acordaram prévia e judicialmente a regulação do poder paternal)
levem a cabo procedimentos de divórcio por mútuo consentimento através dos
registos civis, sem interferência de instâncias judiciais.
41 Ibid.42 Os casamentos civis foram introduzidos em Portugal em 1867. O divórcio foi-o apenas
em 1910 com a 1.' República. Contudo, entre 1940 e 1974 o estabelecimento de um acordo (a
Concordata) entre o Estado português e o Vaticano proibiu o divórcio para casais católicos
casados pela Igreja. Esta situação foi alterada com a revolução de 25 de Abril de 1974. 447
Karin Wall
O divórcio litigioso pode ser aplicado com base em duas ordens de razões:
a violação das obrigações e deveres conjugais; a ruptura da vida matrimonial.
No divórcio litigioso são os tribunais que decidem sobre o poder
paternal respeitante a filhos ou filhas menores, sobre os direitos à casa familiar,
as compensações por danos morais causados pelo processo de divórcio,
o direito a pensão de alimentos e montantes envolvidos e, finalmente, sobre
a distribuição da propriedade do casal. A custódia de filhos ou filhas dependentes
pode ser entregue quer à mãe, quer ao pai, embora na prática seja a
mãe, em regra, a guardiã designada. Não existem normas legais referentes ao
nível das obrigações de alimentos, de modo que, em última análise, a decisão
cabe ao juiz. Este é obrigado a ter em consideração não só a capacidade
financeira do indivíduo (que não pode perder mais de um terço do seu salário),
como também as necessidades dos respectivos filhos ou filhas. Se o
progenitor com obrigações de alimentos não cumprir com essas obrigações,
o Estado não garante o pagamento. O guardião das crianças vê-se, assim, na
necessidade de levar a questão para tribunal, tribunal esse que ordenará a
dedução directa dos pagamentos em falta do salário ou dos bens do devedor.
A responsabilidade paternal é uma questão de momento em debate, parecendo
provável que a custódia paternal conjunta, posterior à separação, seja
um dos pontos de discussão num futuro próximo43.
Como foi mencionado na secção 2, todos os pais, casados ou não casados,
têm obrigações permanentes de sustento dos filhos e filhas. Contudo, após a
separação, estas obrigações são definidas e/ou ratificadas pelos tribunais no
caso de pais anteriormente casados. A situação de casais não casados é ligeiramente
diferente, pois o poder paternal é exercido conjuntamente se os pais
declararem assim quererem fazer, ou então, se não é essa a sua intenção e
vontade declarada, o poder paternal é presumido em favor da mãe. Após a
separação de casais coabitantes, se o poder paternal conjunto não for declarado,
as obrigações financeiras em relação aos filhos e filhas decididas por
ambos os membros do casal não necessitam de ratificação pelos tribunais.
Quer isto dizer que nenhuma análise da defesa dos interesses das partes
envolvidas será feita por terceiros. Contudo, qualquer um dos progenitores
pode pedir aos tribunais a regulação do poder paternal e das obrigações de
alimentos e sustento.
As consequências advindas de uma separação são também diferentes, em
termos de benefícios sociais, para parceiros casados e não casados. Por
exemplo, um cônjuge legalmente divorciado tem direito a uma pensão de
sobrevivência se, à altura da morte de anterior cônjuge, recebia alimentos
desse ex-cônjuge. Parceiros coabitantes têm direito a pensões de sobrevivên-
43 Em 1995 a Lei n.° 84/95 veio alterar o Código Civil, permitindo a opção dos pais pelo
448 exercício comum do poder paternal.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
cia se estiverem a viver maritalmente entre si à altura da morte de um deles.
Após separação perdem direito a apoio financeiro um do outro; consequentemente,
estas situações não são nem reguladas nem ratificadas pelos tribunais.
4. FILHOS ADULTOS E PAIS DEPENDENTES
As relações entre filhos ou filhas e seus pais idosos deram tradicionalmente
origem, em Portugal, quer a obrigações legais, quer a responsabilidades
morais dos filhos para com os pais. No sistema de previdência e no
Código Civil corporativista estas obrigações eram levadas em consideração.
Por exemplo, obrigações de alimentos e sustento eram não só devidas entre
cônjuges e entre estes e seus filhos e filhas, mas, em caso de necessidade,
eram também devidas (ou o seu contrário — deviam estes) a «ascendentes»
(isto é, pais idosos ou avós), irmãos e irmãs, tios e tias, padrastos e madrastas
(estes últimos em relação a filhos pequenos que estivessem à guarda do
cônjuge por altura da morte deste último). Por outro lado, foi já visto que o
direito a beneficiar, por exemplo, do abono de família, através do chefe de
família, incluía ascendentes vivendo com o beneficiário e dependentes dele.
Nos últimos vinte anos foram introduzidas algumas modificações, mas a
legislação e certos benefícios ainda levam estas relações em consideração. Em
primeiro lugar, as obrigações de alimentos acima referidas não foram alteradas
com a reestruturação do Código Civil. A contrapartida destas obrigações é que
os direitos de herança incluem diferentes parentes, pela seguinte ordem: cônjuges
e filhos(as), cônjuges e seus ascendentes, irmãos e irmãs e seus descendentes
(isto é, sobrinhos e sobrinhas), colaterais até ao 4.° grau de parentesco
(isto é, tias e tios e primos directos). Aqueles que não cumprem com as suas
eventuais obrigações de alimentos44 podem, por esta razão, ser excluídos de
eventuais heranças. Em segundo lugar, embora os «ascendentes» tenham sido
excluídos do conjunto de beneficiários no que diz respeito ao abono de família,
outros benefícios, tais como a pensão de sobrevivência, levam em consideração
os parentes idosos. Estes têm direito a essa pensão se tiverem sido anteriormente
economicamente dependentes do indivíduo falecido e na condição de que
nenhum cônjuge ou descendente tenha direito ao mesmo benefício.
A provisão financeira para idosos pelo Estado tem sido organizada segundo
duas traves-mestras desde 1974: o esquema de pensões de terceira idade da
segurança social, facultadas mensalmente a beneficiários com mais de 65 anos,
e o sistema não contributivo de pensões de terceira idade, facultando uma
44 A noção de alimentos é definida no Código Civil (artigo 2003.°) da seguinte maneira:
«1. Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.»,
mais ainda, «2. Alimentos compreende também a instrução e educação do alimentado no caso
de este ser menor.» 449
Karín Wall
«pensão social» a indivíduos com mais de 65 anos, com baixos rendimentos
(menos de 30 % do salário mínimo nacional) e que não são elegíveis para
pensões dentro do sistema contributivo. Os níveis de pagamento são baixos,
abaixo do nível de subsistência da grande maioria de pensionistas. Segundo
Perista45, a pensão de terceira idade média representava apenas 57,8 % do
salário mínimo nacional em 1992, descendo este valor para um terço desse
salário no caso da pensão social. Por outro lado, estudos sobre o nível de vida
dos pensionistas mostram que o valor real das pensões desceu durante a década
de 80 e que a grande maioria dos pensionistas são vulneráveis à pobreza46.
Pensionistas de terceira idade, pensionistas de sobrevivência e pensionistas
inválidos têm direito a um pequeno benefício suplementar: o subsídio por
assistência de terceiros, para aqueles que sofrem de incapacidade total e
necessitam de constante assistência por um terceiro. O subsídio para um
cônjuge dependente (um benefício que depende do nível de rendimentos da
família) pode também ser concedido a pensionistas de terceira idade e a
pensionistas inválidos.
A provisão e regulamentação para o cuidado de idosos por terceiros é
confiada ao Ministério do Emprego e da Segurança Social (MESS). Serviços
e estabelecimentos caem debaixo da alçada dos centros regionais de segurança
social (CRSS), que operam numa base distrital. Podem ser levados a cabo
directamente por estabelecimentos oficiais dependentes dos centros ou por
outras entidades públicas ou privadas com acordos firmados com os CRSS.
Entre estas últimas é importante mencionar as instituições privadas de solidariedade
social (de carácter não lucrativo), já mencionadas a propósito dos
serviços de cuidados à infância. A maioria destas instituições estão ligadas à
Igreja, enquanto outras vão buscar as suas raízes a movimentos de base
animados pelo objectivo de aumentarem a oferta de serviços de base local.
Três tipos principais de serviços estão disponíveis: cuidados residenciais em
lares (alojamentos colectivos que providenciam serviços permanentes); acompanhamento
quotidiano em centros de dia que recebem idosos durante o dia;
acompanhamento domiciliário, através do qual alimentação e ajuda para as
tarefas domésticas é levada até às casas dos idosos. As estatísticas47 mostram
que 95 % dos lares apoiados ou directamente administrados pelo MESS eram,
em 1992, fornecidos por entidades que têm acordos com os centros de segurança
social e que este sector de oferta tem vindo a aumentar desde 1987. No
entanto, as taxas de cobertura no que diz respeito a todos os tipos de lares são
ainda vincadamente baixas — 18,6 % em 1990, se tomarmos o número de
45 Cf. H. Perista, Older People in Europe, National Report on Portugal, EC Observatory
on Ageing and Older People, 1993.
46 Cf. J. Pereirinha, European Community Observatory on National Policies to Combat
Social Exclusion — Portugal, Consolidated Report 1990-1991 e 1992, e A. Bruto da Costa,
The Paradox of Poverty - Portugal 1980-1989, phD thesis, University of Bath, 1992.
450 47 V. quadros em anexo sobre estabelecimentos e utentes.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
pessoas com mais de 65 anos como base de cálculo48 — e as longas listas de
espera são uma característica permanente. Os níveis de pagamento em estabelecimentos
apoiados pelo MESS variam consoante o rendimento do utente (em
alguns casos os bens do utente são também entregues como contribuição para
o pagamento) e, embora o objectivo seja dar preferência a idosos mais necessitados,
as dificuldades financeiras dos estabelecimentos levam, em certos
casos, a que o critério utilizado para a selecção seja o rendimento ser mais
elevado. O sector lucrativo privado (em 1992 existiam 75 estabelecimentos
privados) preenche apenas uma pequena parte da lacuna. As vagas são difíceis
de conseguir e os níveis de pagamento são altos, acima do salário mínimo
nacional por uma vaga num lar onde estão cinco idosos por quarto. Como, em
regra, os pensionistas de terceira idade se encontram abaixo deste nível, isto
significa geralmente que é a família a contribuir substancialmente para o custo.
Os centros de dia e a ajuda domiciliária são características mais recentes
dos cuidados fornecidos à terceira idade. Os centros de dia têm vindo a
aumentar desde 1987, de 13 338 utentes em 1987 até 34 055 em 1992, e
cumprem um importante papel de manutenção dos idosos no seio das suas
comunidades. Os idosos podem passar o dia nestes estabelecimentos, mas
podem também deslocar-se lá para irem buscar comida e levá-la para casa,
tomar banhos, etc. A ajuda domiciliária em 1987 abrangia apenas 4545
utentes, tendo este número subido para 20 568 utentes em 1992. A taxa de
cobertura em ambos os casos é ainda baixa e existem dificuldades em satisfazer
a procura. As lacunas são preenchidas de formas variadas: através de redes
informais baseadas na família e nos vizinhos (um idoso é algumas vezes
acolhido durante o dia noutra unidade doméstica; pais fisicamente dependentes
são muitas vezes acolhidos por um ou, à vez, por vários dos seus filhos ou
filhas), como também através de grupos de ajuda organizados pelas paróquias,
outros grupos religiosos ou as autoridades locais. A alimentação e o vestuário
são permanentemente distribuídos por estas vias e certas práticas ligadas às
tradições caritativas, tais como a recolha de fundos na comunidade para ajudar
uma família necessitada, ir à vez levar refeições a um vizinho acamado e fazer
listas dos «indigentes», são operativas nalguns contextos locais49.
5. ADULTOS EM SITUAÇÃO DE DEPENDÊNCIA
A protecção social do sistema corporativo esperava que os adultos incapazes
de se sustentarem a si próprios se tornassem dependentes das suas
48 Cf. Perista, op. cit.
49 Cf. M. F. Ferros Hespanha, «Para além do Estado: a saúde e a velhice na sociedade-
-providência», in B. de Sousa Santos, Portugal — um Retrato Singular, Porto, Afrontamento,
1993, e Karin Wall, op. cit. 451
Karin Wall
famílias e da caridade local (nas áreas rurais), ou recebessem uma pensão, se
tivessem trabalhado como assalariados na indústria ou nos serviços, em caso
de invalidez, doença ou velhice.
Os objectivos e práticas de previdência social depois da revolução de
1974 foram alargados com o intuito de incluir toda a população trabalhadora
e de providenciar apoio estatal não só às situações acima mencionadas, mas
também a situações de desemprego, de incapacidade permanente ou temporária
devido a doenças profissionais ou acidentes de trabalho e em situações de
não contribuição (pensões de sobrevivência para a terceira idade, pensões de
viuvez, pensões de orfandade). Certos benefícios que existem em Estados-
-providência mais avançados, como, por exemplo, o apoio a indivíduos ou
famílias com baixos ou nenhuns rendimentos (com o fim de proporcionar um
rendimento mínimo), nunca foram introduzidos50. Por outro lado, viu-se que
os benefícios existentes têm valores muito baixos e que os valores reais não
aumentaram durante a década de 80. Viu-se também que benefícios em géneros
directamente administrados pelo Estado têm taxas de cobertura extremamente
baixas e que em sectores como os serviços de cuidados à infância
e de apoio domiciliário não foram atingidos os objectivos iniciais delineados
nos anos pós-1974 ou os anunciados nos últimos anos. Neste contexto, um
indivíduo em situação de necessidade, como invalidez ou pobreza na velhice,
vira-se simultaneamente para o Estado e para outras redes sociais de apoio.
Ou seja, os benefícios sociais, em dinheiro ou em género, têm a função de
mitigar as consequências decorrentes deste tipo de situações.
Vejamos agora algumas situações concretas. O indivíduo adulto desempregado
que tenha atingido um período de 540 dias de trabalho e contribuído nos
últimos 12 meses tem direito, desde que uma nova lei foi aprovada em 198951,
a um subsídio de desemprego que representa 65 % do seu anterior salário
médio; o subsídio de desemprego é pago durante 10 ou mais meses (até um
máximo de 30 meses) de acordo com a idade do indivíduo desempregado (10
meses, se o indivíduo tem menos de 25 anos; 12 meses, se o indivíduo tem
entre 25 e 30 anos; 15 meses, se o indivíduo tem entre 30 e 35 anos; 18 meses,
se o indivíduo tem entre 35 e 40 anos; 21 meses, se o indivíduo tem entre 40
e 45 anos; 24 meses, se o indivíduo tem entre 45 e 50 anos; 27 meses, se o
indivíduo tem entre 50 e 55 anos; 30 meses, se o indivíduo tem 55 ou mais
anos). Os adultos desempregados que não preencham as condições para rece-
50 Uma lei sobre rendimento mínimo garantido proposta pelo Partido Comunista Português
(PCP) foi rejeitada parlamentarmente. Entretanto, também uma lei com a proposta de um
rendimento mínimo garantido foi introduzida pelo Partido Socialista (PS) e igualmente rejeitada.
Esta proposta tomava o valor da pensão de sobrevivência (16 600 escudos) como base
e estabelecia que esse montante fosse pago tendo em conta o número de membros do agregado
familiar.
452 51 Decreto-Lei n.° 79-A/89, de 13 de Março, e Decreto-Lei n.° 418/93, de 24 de Dezembro.
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
ber este subsídio, ou que já o receberam anteriormente, podem eventualmente
receber assistência própria à situação em que se encontram. Esta prestação,
intitulada subsídio social de desemprego, só é atribuída se o rendimento da
família estiver abaixo de um certo nível: o rendimento mensal médio per
capita da unidade familiar não pode exceder 80 % do salário mínimo nacional.
O nível do pagamento efectuado toma também em consideração a situação
familiar do desempregado: ele/ela recebe 70 % a 100 % do salário mínimo
nacional de acordo com o número de membros dependentes na família52
(100 %, se existirem quatro ou mais membros dependentes; 90 %, se existirem
menos de quatro; 70 %, para adultos sós). Este benefício é concedido durante
um período igual ao do subsídio de desemprego, à excepção de casos em que
o indivíduo se candidate a esta prestação logo após ter recebido o subsídio de
desemprego; neste caso, o tempo de pagamento é reduzido para metade. Em
síntese, o direito ao subsídio de desemprego é individual, enquanto a habilitação
ao subsídio social de desemprego é feita considerando o agregado
familiar do indivíduo. Esgotado o direito a estes benefícios, o indivíduo
desempregado não tem direito a nenhum outro benefício e terá de procurar
apoio através da família ou de redes informais.
Os adultos com doenças de curta duração têm direito a 65 % do seu vencimento
médio (tomando como base os últimos seis meses de trabalho) e a 70 %
desse vencimento depois de um período de 365 dias de doença. Esta prestação
é assegurada por um período máximo de 1095 dias. Os adultos que se tenham
tornado inválidos antes de atingirem a idade da reforma têm direito a receber
uma pensão de invalidez. O nível de pagamento é de 80 % do salário do
indivíduo inválido, tendo em conta os dez melhores salários recebidos durante
os seus últimos quinze anos de trabalho, mas um nível mínimo é estabelecido
anualmente pelo governo. Os pensionistas inválidos têm também direito a um
pequeno subsídio mensal no caso de terem um cônjuge dependente (3832
escudos) e a um subsídio por assistência de terceira pessoa se porventura
necessitarem dos cuidados permanentes de terceiros (8800 escudos). Em termos
dos serviços de cuidados e apoio prestados, nenhum serviço ao domicílio
está disponível para além do apoio domiciliário já mencionado na secção sobre
pessoas idosas. Em resultado, nos casos de grande incapacidade, este grupo de
pessoas ou conta com os cuidados e apoio da família ou é internado num lar
para idosos. Apoio especializado, como, por exemplo, serviços de enfermagem,
só está disponível mediante pagamento do interessado. Além do subsídio por
assistência de terceiros a que têm direito os grandes inválidos, não existe
benefício ou apoio específico para os indivíduos que prestam cuidados informalmente
a doentes ou inválidos.
52 A categoria de membros dependentes da família inclui o cônjuge, os descendentes e os
ascendentes que vivem com o(a) beneficiário(a) e são economicamente dependentes dele/dela.
O rendimento dos membros dependentes da família não pode exceder o valor da pensão social. 453
Karin Wall
COMENTÁRIOS FINAIS
As definições de família e das obrigações familiares, tal como se encontram
na legislação e nas práticas de política social em Portugal, têm sofrido
várias transformações desde o sistema corporativo de protecção social até ao
momento presente. No sistema corporativo apenas o emprego em certos sectores,
os laços familiares legítimos e a dependência do «chefe de família»
criavam o direito de habilitação aos benefícios sociais. Apesar de esse direito
continuar a estar predominantemente ligado à situação de emprego, são desde
os anos 70 tidas em conta algumas situações fora do emprego, nomeadamente
o desemprego e as situações não contributivas.
A definição de família que subjaz ao sistema de benefícios mudou: inclui
ainda a noção de família alargada, ao estabelecer as relações e as obrigações
familiares, mas assenta agora numa concepção igualitária das relações entre
cônjuges e entre pais e filhos. Por outro lado, se os benefícios forem considerados
por relação às unidades indivíduo, casal, família nuclear e família
alargada a eles subjacentes, pode observar-se que as quatro categorias estão
presentes no actual sistema de benefícios em Portugal e que o sistema é
diversificado em termos das quatro categorias mencionadas. Foram
estabelecidas algumas prestações claramente individualizadas (por exemplo, o
subsídio de desemprego), mas também há benefícios definidos com base no
casal (por exemplo, o subsídio de casamento ou o suplemento para um cônjuge
dependente), na família nuclear composta de pais com filhos (por exemplo, o
abono de família) e na família alargada, sendo nesta última considerados os
parentes em linha ascendente e descendente e, na ausência destes, outros
parentes colaterais até ao 3.° grau de parentesco (por exemplo, nas pensões de
sobrevivência). Esta diversidade realça determinados traços característicos da
cultura e sociedade portuguesas (onde obrigações de apoio entre as várias
gerações são fortes e se espera que os membros da família conjuguem esforços
e recursos em situações de necessidade) e indica igualmente que o sistema de
benefícios se tem em certa medida adaptado para ter em conta direitos diferentes
(individuais, paternais, matrimoniais, geracionais), bem como diversos tipos
de convivência doméstica.
Quanto ao presente sistema de protecção social, poder-se-ão referir algumas
características que ressaltam da análise efectuada:
a) Os níveis de protecção social são baixos, tanto em termos de benefícios
financeiros, que têm baixos níveis de pagamento, como em
termos de benefícios em géneros e daqueles mais virados para a assistência
social. Os serviços de cuidados e apoio aos diversos grupos
necessitados ainda não se tinham desenvolvido nos anos 80 quando o
454 Estado começou a tentar reduzir os custos públicos e a incentivar o
Apontamentos sobre a família na política social portuguesa
desenvolvimento de serviços essencialmente através do sector privado
não lucrativo. As lacunas nestes serviços são particularmente óbvias
quando observadas numa perspectiva comparativa europeia, nomeadamente
no que respeita às áreas de serviços de cuidados à infância e à
terceira idade;
b) As lacunas existentes entre a previdência formal e as necessidades
reais são preenchidas pela família (incluindo-se aqui a família
alargada, como as avós que cuidam dos netos) e por redes informais
de solidariedade;
c) O casamento é a principal instituição onde os cônjuges têm obrigações
continuadas de alimentos. Tais responsabilidades não existem no caso
dos casais coabitantes. Certos benefícios, como, por exemplo, as pensões
de sobrevivência, têm sido alargados aos indivíduos nesta situação;
d) Os benefícios mais dirigidos às famílias, tal como o abono de família
e o subsídio de nascimento, estão baseados na ideia da universalidade
do direito à protecção social, e não na ideia do apoio selectivo às
famílias mais necessitadas.


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