quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Apontamentos das aulas de Direito da Família, 2009/2010

APONTAMENTOS


Aulas de Direito da Família, 2009/2010
















AUTOR

PROF. MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA











“A minha família é o povo do mundo”

Adelaide Teles, que foi autarca da Graciosa





















Apresentação do Programa.
Ao iniciar o Curso de Direito da Família parece-me fundamental, não só apresentar o objecto do seu Programa, mas ainda a justificação do mesmo.
O objecto do Direito da Família não é difícil de identificar nesta fase em que os alunos se encontram, nos últimos anos da licenciatura.
É uma disciplina que versa a realidade das instituições que a ordem jurídica e social contempla, no seio das quais as pessoas nascem, desenvolvem-se como seres humanos e exprimem afectos essenciais, bem como outros aspectos da personalidade. É o direito da esfera íntima.
É também o direito que estrutura modos de constituição ou incursão numa tal esfera, quando isso não pode ser contemplado pelas vicissitudes: morte dos pais ou parentes próximos, incapacidades dos mesmos…
Afirmei antes, quando tive ocasião de dar Aulas de Direito da Família ao 4º Ano, que inserido naquela fase, o Curso só teria sentido como uma disciplina de cúpula e de reflexão.
Terei admitido implicitamente que fosse possível um outro entendimento, menos crítico, da matéria. Terei sobretudo feito apelo à minha própria experiência, de quartanista desta Casa quando o enfrentei, à conclusão que então me pareceu evidente, de que a maturidade filosófica, social, jurídica, era incompatível com um estudo anterior.
Mas, menos de um ano passado sobre esse episódio não partilho tal opinião. Afinal, iniciamos a Filosofia do Direito nos tempos do 1º Ano e só ganhamos com a experiência formativa. A reflexão sobre os institutos sociais e os seus fundamentos, que o Direito da Família propicia, requer, sem dúvida, espírito crítico, capacidade de compreensão dos fenómenos sociais, políticos, capacidade de abstracção, maturidade para o ensaio inevitável de caminhos alternativos, sempre que uma solução mostra não satisfazer as solicitações cidadãs. Mas tal acontece em todo o Direito.
Onde está então a diferença?

O Tema do Direito Civil mais dinâmico nestes séculos
Diria que no modo como aqui somos interpelados. Pois em Direito da Família não é um instituto ou um acervo delimitado dos mesmos que se encontra sob a espada de Dâmocles da mudança. São todos, ou quase todos.
Dieter Schwab é um Autor alemão, um grande civilista, um nome maior do jusfamiliarismo. Quando confrontado com a missão de introduzir a este ramo escreveu que em nenhum outro lugar encontrava o Direito Civil tanta alteração ao longo do último século, em nenhum outro ramo fora tão favorável, também, à aceitação de tal mudança.

Da sociedade industrial aos novos direitos e às realidades ainda mais recentes.
Pois a Família de hoje não é a da sociedade rural, nem a da primeira sociedade industrial, sustenta. E, mais do que isso, evoluiu ao longo de décadas, mercê das Guerras, da nova consciência da dignidade das pessoas, da luta subreptícia umas vezes, frontal outras tantas, dos dois sexos pela igualdade na polis, na identidade dentro do agregado familiar. Evoluiu, enfim, na era dos novos direitos, mercê de reconhecimentos outros de direitos: dos homossexuais; dos embriões, com o desenvolvimento de tecnologias sofisticadas. Evoluiu com a diversidade dos papéis que desempenhamos durante o tempo e são desiguais mas promanam de uma experiência de vida que os tornam singulares: os idosos, os viúvos, os que recompuseram múltiplas vezes o seu modo de vida afectiva.
Sugiro que leiam Schwab, mas reconheço que bem podemos acompanhar as linhas mestras do seu pensamento de antemão.
O Direito da Família cura de uma realidade institucional que tem sofrido enormes mutações. Não é mais a Família em sentido biológico apenas, embora essa componente biológica seja essencial. Não preciso de recordar as consequências sociais negativas que resultam do abandono, do repúdio de um filho, de um parente próximo. Inscrita no código de valores que sufragamos desde logo em sede constitucional há uma axiologia que tem por base a realidade familiar próxima. E, subjacente à mesma, não está apenas (embora o esteja de algum modo) a solidariedade, o espírito de entreajuda, que invectiva a não abandonar um pobre, um indefeso. Há mais do que isso, ainda que se afigure difícil determinar o quê, qualificar o fundamento deste dever para com a Família.

A atitude: o “direito dos afectos”
Nos tempos mais recentes fala-se e escreve-se dobre a importância dos afectos no Direito. Estes afectos seriam o alicerce a partir do qual se pode erguer a rede de obrigações de ajuda entre pais e filhos, netos e avós, e muitas outras relações de verdadeira proximidade vivencial.
Mas a delimitação dos contornos dos afectos é um Sísifo. Em que consiste? É verdade que já Aristóteles sustentava uma ética de responsabilidade pelas emoções e pelo modo como as exprimimos em termos sociais.
Em todo o caso, a ideia releva de uma outra ideia anterior, que ganhou foros na doutrina anglo-americana e também europeia a partir dos anos 60. Trata-se da ideia da concepção do homem como ser cultural, social, em grande medida produto do meio que o recebe e do qual partem os influxos essenciais na construção da sua personalidade.
Esta ideia tem repercussões imensas na visão que se tenha da função educativa da Família (aqui muito diferenciada das teses tradicionais da construção da personalidade pelo arbítrio) e sobretudo, abre as portas a uma concepção familiar que muda. Pois não só a identificação de cada ser humano, mas por igual a do par humano ou de outra forma de agregado pela qual opte cada um, dependem de uma escolha social que nada, a não ser a opção de cada ser humano, condiciona. É este afinal o caminho que conduz à persistente tentativa de opção por formas institucionais moldáveis, extensíveis no seu campo de aplicação a outras situações. Quando se fala no matrimónio homossexual, na adopção por esse modelo de par, está-se neste ponto: clamando pela integração de um outro modelo de par na instituição matrimonial.
Mas será só isso que acontece? Ou, admitindo-o, é antes o Casamento que se altera, no sentido inicial com que se edificou sobretudo a partir do cristianismo, de união de carne e leito, de projecto de vida que comporta, senão a vivência no seio de um figurino sexual determinado, pelo menos um ritual de vida que o tem como referente e do que, afinal, apenas um pouco se afasta, quando assumidamente se afasta?
Chegam-nos neste tempo novas edições os Direitos das Famílias. Em Portugal, esteve em Abril a jurista Maria Berenice Dias, que escreve sobre o Direito das Famílias. Porquê? Porque quer acentuar a diferença, a pluralidade de perspectivas.

Os anos sessenta e as grandes mudanças
Creio que é claro para a Autora que é correcto, possível admitir perspectivas várias sobre o género, sobre as possibilidades de modelos de matrimónio e instituições afectivas abrangíveis por essa casa comum que seria a Família.
Não tenho, porém, a opinião de que a Constituição da República Portuguesa opte por tal caminho, vá por aí. Creio que a ideia de Casamento está entre nós cunhada pela separação firme entre os dois sexos, sem prejuízo de uma total falta de legitimidade para imputarmos ao legislador constituinte preconceitos impeditivos de outras construções jurídicas para situações diferentes. Justiça distributiva, sim, porque se entende que são diferentes os sexos.
E justiça distributiva que requer o estudo e conseguinte conhecimento das diferenças aí onde estas se evidenciam. Ora, como veremos adiante, há uma pluralidade de formas de modelação jurídica da realidade familiar entre nós: o Casamento, a União de Facto, outras formas de Relação Parafamiliar.
É verdade que uma é dominante e as outras se ofuscam pela parcimónia. Será este aspecto critério de justificação para um seu estudo esmorecido também?

Estratégias de estudo: tornar proeminente o que mais se evidencia e ocultar a outra realidade jurídica?
Não creio. Lembro Foucault, a ocultação dos temas que a sua supressão científica, ou minoração dogmática, vem provocar.
Ex: Imaginemos que se desencadeia uma onda de silêncio na doutrina em torno das matérias da Família; poderá suster-se o debate? É certo que não, pois este não se desenvolve apenas nos meios universitários.
Mais eficaz será a tendencial desvalorização científica. Mas, diferentemente do que ocorreu já, esta não se desenvolve apenas em sedes institucionais. E, sobretudo, os centros universitários, que proliferam, não dimanam o mesmo tipo de opiniões. É muito difícil a transposição prática da regra enunciada por Foucault, neste âmbito.

É certo que o casamento é o modo de Família mais expressivo e que as outras formais se subalternizam em dimensão. Mas não creio que seja igualmente certo que exista hoje uma simetria entre o carácter mitigado na experiência social das outras uniões para além do Casamento, e a importância que vem registando como tema de politologia, política legislativa também. Enfim: como tema que provoca a discussão acesa acerca do entendimento constitucional e se mostra susceptível de trazer para a agenda da opinião pública muito mais do que os temas “partidariamente correctos”, aqueles que um regime partidocrático impõe e para os quais, por regra, não se encontra na ordem social surto de resposta autónoma.
Assim, penso que a Família como tema de reflexão, a inclusão dos elementos do seu objecto, são determinantes. E por aí se começará, portanto.
Estamos em plena Dogmática Geral, portanto. Preferi dar ao primeiro Capítulo um outro título, Introdução às bases do Direito da Família. É que me pergunto se, afinal, teremos condições para neste modesto tempo que nos é destinado penetrar verdadeiramente em temas de dogmática especial com o apuro que esta requer. E, nesta fase primeira, afora o panorama da Família legal contemporânea, são as questões tradicionais que os ramos do Direito convocam que nos ocupam.

O inevitável influxo interdisciplinar
Assim: a Família na Ciência Jurídica, as ligações ao direito privado e a crescente ligação ao direito público, Constitucional e Penal. Hoje, estas relações são absorventes, muitas vezes esgotantes. Assim acontece, como veremos, com os temas de Direito Internacional, com as Convenções Internacionais que proliferam, relativas a Mulheres em risco (Tráfico, Escravatura) e a Menores, também aos Idosos. Não esquecendo a ligação ancestral do Direito da Família português ao da Santa Sé, que se modificou de modo importante com a Concordata 2004.
Mas as ligações ao direito privado permanecem. Não sei dizer em que medida proliferam, se proliferam. Os regimes de bens são múltiplos, a lei é permissiva, como veremos, de uma grande amplitude nesse domínio. Mas será, na prática, tão importante assim o regime de bens num Casamento que tende para a fragilidade, que surge no horizonte legal, vivencial dos nubentes com medidas de dissolução ágeis e que parece vocacionado para a precariedade? Não estou emitindo um juízo de valor sobre a opção legislativa. Mas olho as novas normas no diálogo que impõem com o direito anterior e pergunto-me acerca do carácter em parte semântico que este vem, em alguns aspectos, assumindo.
Claro que a Lei do Divórcio, entrada em vigor há menos de um ano, desempenhou aqui papel fundamental. Estudá-la-emos a seu tempo.
Ainda no âmbito privado, surge a ligação ao direito sucessório. Tão importante para alguns autores que se criou, designadamente na nossa Faculdade, uma disciplina de Direito da Família e das Sucessões.
Este Direito não mudava o conteúdo das normas vigentes, mas procurava centrar o núcleo de cada um dos Direitos em conexão com o núcleo do outro. Obnubilando os elementos que, tanto no Direito da Família, como no das Sucessões, relevavam dos contributos dos momentos liberais e de vanguarda da legislação, acentuava o seu carácter institucional. Por este modo, centravam os estudantes a atenção nos elementos em que a vontade dos progenitores, titulares de bens, se fazia incidir sobre o proveito dos membros do seu agregado. Membros face aos quais todos os demais adquirentes mortis causa de bens eram figuras alheias, de móbil concorrencial e compreendidas numa lógica hereditária que sublinhava a sua distância face ao fenómeno sucessório em questão.

Os problemas da sequência da matéria
A seu tempo veremos das consequências de uma tal compreensão.
Enfim, analisaremos as fontes essenciais do Direito da Família, a Constituição e o Código Civil. Se estivessem na Alemanha (suponham que haviam tido a dita de serem alunos de Schwab!...) encontravam com muita probabilidade já um Capítulo intitulado Enquadramento Constitucional, que inaugurava as fontes do Direito da Família. Hesito em ir por aí. Reconheço a supremacia dos princípios constitucionais, mas tenho também presente que a interpretação da Constituição se completa, nesta matéria, com um a plêiade de conceitos oriundos do direito civil O Código Civil fornece a primeira pista, logo no princípio do Livro IV, ao enunciar as fontes das relações jurídicas familiares. Estudar-se-á aqui, pois, o parentesco, o casamento, a afinidade, a adopção. Diria: numa primeira fase, o parentesco, o Casamento. São os conceitos que referenciam situações e instituições determinantes na compreensão da Constituição, de todo o Direito da Família.
Mas sob que perspectivas?
Vejamos em traços muito gerais o objecto das leis a trabalhar, os regimes jurídicos que nos vão ocupar e tentaremos surpreender a partir daqui um fio condutor.
Inicialmente, quando se estudava Direito da Família nas Faculdades de Direito, pegava-se no Código Penal (de Seabra, depois no Código Civil de 1967) e no caso deste último, abria-se logo o Livro IV. É verdade que nessa altura já se tinha aprendido o objecto do Livro da Família, como subramo do Direito Civil, ou mesmo tomado contacto com os conceitos de casamento, a propósito dos negócios jurídicos, e das relações familiares bem como da condição de menor, do poder paternal, estudando tantíssimos institutos nas cadeiras de introdução ao direito privado.

Mudanças nas fontes
Mas aqui o ângulo de observação é outro.
Exemplificando. Claro que quem contrai casamento cria laços familiares, constitui uma família. Mas que características tem esta?
Até aqui, referimos a pluralidade da Família na perspectiva de um possível desdobramento de formas de manifestação. Agora, porém, o foco da análise é diferente. Trata-se de ver a família não através da descrição dos seus factores constitutivos, mas sim do desempenho social que exibe, independentemente do modelo sexual. Ou melhor: atendendo a que, na sociedade dos nossos tempos, este outro problema coloca-se essencialmente em relação às famílias tradicionais. A elas afinal nos devemos dirigir, por uma questão de realismo.
É uma família autocrática, exprime a autoridade de um dos seus membros, aquele que tem mais poder intelectual, financeiro, mediático? Faz sentido dizer que estas pessoas contrataram, como afirma o Código, ou o acordo que celebram tem outro sentido?
E se duas pessoas decidirem viver juntas e não casar? Há vínculos jurídicos reconhecidos pela lei apesar desta situação, que há décadas se denominaria de ignomínia (“um escândalo”, na picardia de Eça de Queirós, mas sem prejuízo de recordarmos que o actual Código Civil ainda não abriu mão, como veremos, da expressão concubinato), um concubinato, uma imoralidade com algum reflexo jurídico?
Vemos então que o anátema social existe, quer em razão do modelo de vida sexual, quer das formas de organização interna. Uns aceitam a igualdade plena dos cônjuges, dos unidos de facto, outros rejeitam-na e persistem em quadros familiares que exibem paradigmas anteriores. A autoridade do marido/homem paterfamilias é uma relíquia que perdura em vastos meios.
Claro que não pode ser assim, pois há uma lei sobre uniões de facto, o que mostra que colhem a respeitabilidade do legislador, reflexo seguro do respeito social. Mas as reticências mantêm-se. Há quem considere a lei um erro. Independentemente de formular agora juízos sobre ela, uma coisa parece certa: há hoje mais lei entre o céu e a terra do que o Livro IV do Código Civil. Ora, deve esta matéria albergar-se na nossa disciplina? Se provarmos que se deixa cobrir por um denominador comum, a resposta será afirmativa. Mas não basta ser legalista e argumentar com a existência de uma lei. O legislador pode ter criado um regime obsoleto, ou terminologicamente indutor em erro. E que fazer nesse caso? Só se detivermos uma matriz dogmática segura poderemos opinar. Ora isso implica um conceito material de Família para efeitos de Direito.

Um outro regime legal de Família?
E o parentesco, que importância tem para além das relações mais estreitas que marcam o núcleo familiar nos nossos dias? Faz sentido conferir o poder paternal a um tio que vive noutra cidade ou mesmo noutro país e mal conhece o sobrinho? Não seria mais realista recorrer de imediato, em tais casos, a instâncias da comunidade, experientes, pedagogicamente apetrechadas para ajudar uma criança, um jovem, disponíveis para acompanhar os seus conflitos? Ou antes dá-lo de adopção a pais de vocação que o desejem? Ou explorar as potencialidades que a nova Lei do Apadrinhamento Familiar desde ontem nos oferece? *
Mas olhando o próprio casamento, à primeira vista, o reduto da estabilidade dogmática da nossa matéria. Deverá ele continuar sendo o casamento de pessoas de sexo diferente ou abre-se a constituição, a sociedade portuguesa, a uma inflexão neste domínio? E onde encontrar a sede da resposta: na Constituição, num sentimento social evidente, ou aceitar que subsistem dúvidas, cabendo saber de que grau: grande, poucas…?
E será que anda bem o legislador em aceitar que se dissolvam com facilidade as sociedades conjugais, ao fim de um ano, como admite o Decreto que a Assembleia da República, após o veto presidencial, e não obstante o mesmo, tendo vindo a converter-se em Lei por decisão da Assembleia da República (Lei do Divórcio) Decerto que este veto, político, exprimiu a posição do Presidente e mais do que a sua própria, a posição de um espectro de que se entende representativo, o que aponta na direcção de que a nova Lei irá, a entrar em vigor, quebrar nexos importantes na sociedade portuguesa.

Actual conceito de Família
Quem é esta Família que a um tempo se alarga e o retrata na lei, que se demite da vocação à perpetuidade e o quer retratar mais incisivamente na lei, que legisla em nome e no interesse dos menores e tantas dúvidas tem por resolver a propósito das decisões que toma?
É a personagem central da nossa cadeira. Interpelada por nós, estudantes, docentes, e interpeladora, já que requer opinião para os seus contornos que vêm mudando em crescendo. Recorde-se que a Lei das Uniões de Facto mudou, mas mantém-se agora inalterada desde 2001. Não obstante, verificou-se tentativa recente no sentido do seu alargamento. E, apesar de não ir por aí o sentido imediato do caminho legislativo, far-se-á uma referência. Pois, afinal, é o sentido pulsante de um espectro social que aí se exprime e sendo-o, convém proceder à sua ponderação. Os temas centrais são os que referimos. Vendo bem, é todo o Direito da Família que eles convocam, pois não é possível trabalhar isoladamente os vários institutos.








II

Características contemporâneas do Direito da Família
Direi pois que duas características marcam o recente Direito da Família, instabilidade e mudança legislativa efectiva, arrisco creditar que tantas vezes algo precipitada.
Mas tomaremos um ponto de referência, já que o nosso âmbito é dogmático, e a história vem a propósito na medida em que prove o problema, a reacção ao problema.
O ponto vai ser a Reforma de 77. Com ela não nasce o Código Civil, mas renasce o mundo do Direito da Família adequado à Constituição de 76.

A história recente
Vejamos o que acontece.
Entrara em vigor a Constituição de 76. Com ela, surgia, entre os Direitos Fundamentais, o direito à igualdade perante a lei, o direito a constituir família, dentro e fora do casamento e o direito a contar com um regime igualitário dessa mesma relação matrimonial, ainda que o sistema formal adoptado para contrair casamento não tivesse sido o mesmo, o que acontecia, no caso dos casamentos católicos, que a Constituição reconhece, agora de novo, após a revisão da Concordata com a Santa Sé.
Quando olhamos esta Reforma recordamos nomes muito importantes da Faculdade de Direito de Lisboa, e desde logo, o da Senhora Profª. Isabel de Magalhães Collaço, que presidiu, o da Senhora Doutora Maria de Nazareth Lobato Guimarães e o da Dra. Leonor Beleza, então assistente de Direito da Família e especialista da matéria junto da Comissão da Condição Feminina.
Lendo o preâmbulo da Reforma na Parte que respeita ao Direito da Família, que é aliás uma leitura essencial nesta fase primeira do Semestre, verificamos que os temas que marcam a Reforma são o tema da igualdade e seus reflexos na Família, bem como a proibição de discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento, tal como, ainda, a questão do divórcio e as novas modalidades e pressupostos da sua concretização.
Escrevia-se no texto do preâmbulo: “Deve, de resto, notar-se que na última década se tem assistido em quase todos os países europeus a profundas alterações do direito da família, determinadas pelo triunfo do princípio da igualdade entre os cônjuges e pela revisão de muitas das soluções tradicionais em matéria de filiação.
As soluções agora adoptadas puderam assim basear-se em larga e recente experiência de sistemas jurídicos próximos do nosso”.
Mas a afirmação continha muitos laivos de modéstia, pois que esta Reforma de 77 exprimia, diferentemente do movimento que percorria muitos outros Direitos em sede de Família, a necessidade de ultrapassar soluções inconstitucionais e implantar na ordem positiva o Estado de Direito. Foi por isso uma Reforma funda, comparada com as suas congéneres de outros países.
Desde logo, o princípio da igualdade entre os homens e as mulheres vem determinar a sua não discriminação na sociedade conjugal. Marido e mulher lideram esta sociedade conjuntamente, o que vale por dizer que será inconstitucional uma norma (contida, por exemplo, em Convenção Antenupcial, em acordo celebrado antes do Casamento, que estudaremos adiante) de acordo com o qual o marido delegue na mulher, ou o contrário (seria este contrário, presumo, o mais previsível, já que era a realidade correspondente à experiência anterior) a orientação dos assuntos da família, o modo de educar os filhos, os princípios de vida a que deveriam respeito, como por exemplo a escolha da casa de morada…A lei retoma o filão constitucional, ao estipular que ambos os cônjuges irão reger a vida comum. Por outro lado, o papel de ambos é tido em igual dignidade, mesmo na sua expressão financeira. A lei desinteressa-se de saber se os rendimentos obtidos provêm do trabalho de um ou de ambos, para efeitos sucessórios. Aí, também o cônjuge sucessivo que não tenha trabalhado fora de casa e não tenha sequer participado no montante hereditário através de bens próprios, adquiridos por qualquer via (doação, herança…) estará na primeira classe dos sucessíveis, ao lado dos filhos e mesmo em situação de vantagem face a estes, já que é titular do estatuto de herdeiro legitimário ou forçado e detém pelo menos um quarto dos bens que correspondem à massa desta fatia hereditária.
Por outro lado, valerá, como fundamento de invalidade do casamento, o erro sobre a pessoa do outro cônjuge, desde que corresponda a qualidades suas essenciais e além disso, o divórcio passa a ser possível, não apenas nos casos de incumprimento dos deveres conjugais, como ainda se porventura um dos cônjuges não assentir em assentir num mútuo consentimento, desde que a separação se verifique há pelo menos seis anos. Atentando a que o Código de Seabra apunha aqui um prazo de dez anos, a diferença é decisiva, direi que socialmente algo “labónica” ainda, mas favorecedora de possibilidades e indicativa de que a lei não persiste em impor a solução do “casamento para a vida” a quem não comungue desse projecto ou não parta de ideias em tal sentido.
Ora pegámos na Reforma de 77. Certamente porque foi a mais importante que ocorreu a marcar o essencial do Direito que ainda vigora.
Mas também porque não só por acção, como por omissão, ela marca a agenda dos primeiros temas contemporâneos do Direito da Família.

Um Debate na Faculdade de Direito e uma Reforma jusfamiliar
Quando penso na Reforma de 77, recordo um texto, um livro, que foi publicado poucos anos antes da entrada em vigor daquela. Um livro que li na adolescência e (permitam a nota pessoal) ainda hoje acredito que foi um grande responsável pela opção que depois fiz: Direito.
Trata-se da publicação do primeiro grande debate sobre estes temas a que a Faculdade de Direito abriu as suas portas em 1968 e no qual participaram figuras de vários domínios, mas entre eles, juristas empenhados na Reforma, naquele tempo.
O livro é “A mulher na Sociedade Contemporânea”, uma publicação da Associação Académica de Direito de 1969.
Se (como espero) o percorrerem, verificarão que os grandes temas jurídicos então eleitos são relativos ao estatuto da Mulher, como cônjuge, como mãe. Eu assinalo aqui os de Elina Guimarães, que faria uma análise histórica sobre o estatuto da mulher dentro do casamento, perante o marido e os filhos. Elina Guimarães chama a atenção para que sendo, “dentro da sua época”, o Código Do Visconde de Seabra (1867) uma legislação “aberta”, persistia, em sede de situação jurídica das mulheres, em manter duas grandes ordens de fundamentos de incapacidades discriminatórias das mulheres. Por um lado, as que provinham logo do próprio sexo; por outro lado as incapacidades em razão da família, como as que diziam respeito à mulher casada e à mãe. Sobre estas últimas, focava a perda da nacionalidade que o casamento com estrangeiro provocava (e que só verificada uma situação de perda absoluta de qualquer nacionalidade podia ser repristinada, mediante um processo de todo o modo complexo); o dever de obediência ao marido, chefe da família, o dever de o acompanhar para todo o lado, podendo até dar-se o caso de ser obrigada a regressar pela força ao domicílio conjugal. A administração dos bens competia ao marido, mesmo a respeitante aos seus próprios bens. E, recordando a Lei do Divórcio, segundo a qual os fundamentos para a separação de facto eram iguais para ambos os sexos, nem por isso deixou de apontar o dedo ao novel então Código Civil de 1967, dizendo então: “…peço vénia …para declarar que o art.º 1674º do novo Código, fulcro da situação conjugal, é detestável: ‘o marido é o chefe de família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum’”.
Era, suponho, constrangedor já naquele tempo, reconhecer aqui, e ouvir de uma das mais antigas e prestigiadas ex-alunas da Faculdade, que estava em vigor a norma segundo a qual o marido podia requerer a entrega civil da mulher no lar conjugal, caso esta o abandonasse sem “fundamentação justa”.
A Dra. Maria da Conceição Homem de Gouveia voltou ao tema do estatuto jurídico da mãe para advertir que “o poder paternal regulado pelo novo código Civil [de 1967] deverá ser interpretado extensivamente, para poder adaptar-se às realidades sociológicas”. Ou seja: não era, no entendimento da Autora, inequívoca a interpretação da lei segundo a qual o estatuto da mulher mãe ombreasse com o do marido em matéria de exercício do poder paternal.
Mas do meu ponto de vista, o texto verdadeiramente premonitório que o livro que venho citando contém é de uma escritora, Sophia de Mello Breyner Anresen. Sophia intitulou a intervenção de “A Mulher na Cidade do Homem” e começou por dizer que não vinha falar de direitos mas de vocação feminina, se é que “existe uma vocação”.
A verdade, porém, é que falou de direitos da maneira mais incisiva. Recordou o Evangelho, onde entre Marta, a fazedora de coisas materiais e Maria, a teórica, a contemplativa, fora Maria a que “tivera a melhor parte, pois foi ela que “ascendeu à contemplação do divino”. No entanto, continuava Sophia, “as sociedades vêm tratando a mulher como se fundamentalmente ela fosse Marta”.
Sophia terminava recordando que “a maternidade é missão e responsabilidade”. E que por isso, através dos filhos que tem, conclui-se que a história da mulher não é a sua história: “pois não existe o problema da mulher, mas sim o problema da humanidade. E é por isso que o Feminismo é um caminho errado e ultrapassado. Aliás sempre à roda das mulheres se criaram falsos problemas”. E acrescentava também: “Assim muitas vezes se tem oposto vocação maternal e vocação criadora. Mas a maternidade é plenitude e não mutilação, é maioridade e não menoridade. E a maternidade que é escolha e vocação é também escolha e responsabilidade”.
Eu admiro o carácter premonitório destas palavras, porque creio que elas contêm a universalidade que os Direitos Humanos projectam. Ora a dignidade das mulheres, a igualdade, surgem pouco depois na Constituição de 76. Menos de uma década.

O ensino do Direito da Família
E na Faculdade de Direito?
O Direito da Família ficou, naqueles anos que se seguiram à entrada em vigor da Reforma, entregue à Srª Drª Leonor Beleza, incumbida da regência de vários anos.
Houve, porém, uma fase em que o Professor Castro Mendes assumiu esta incumbência, com a colaboração de Miguel Teixeira de Sousa. Deve-se-lhes um fôlego decisivo na cadeira e sua evolução científica.
Só anos mais tarde a disciplina seria entregue aos primeiros doutores na área, depois da Reforma que a Faculdade sofreu mercê do trabalho de uma Comissão Revisora. Carlos Pamplona Corte-Real e, posteriormente, Jorge Duarte Pinheiro.

O maior ganho da Reforma: estatuto das mulheres, estatuto dos jovens.
Por aqui nasceu a Reforma. Ou seja, pelos temas matriciais do Direito da Família, pelo estatuto do pai de família, que aqui sai de primeiro plano no palco e assiste á entrada de outro personagem. Que pela primeira vez não é o único protagonista.
E os filhos?
Os filhos são, aqui, os menores ou os incapazes, aqueles que se submetem ao poder paternal. Indo mais longe, poderíamos falar dos adoptados.
Reflictamos rapidamente sobre o contexto em que a sua situação se modifica.
Claro que todos os seres humanos são ganhadores quando os direitos fundamentais se impõem. Seria dislate afirmar que não têm eles um papel relevante nesta nova geração jurídico-familiar. Têm-na, o que a igualdade entre todos, independentemente do nascimento, dentro ou fora do casamento, logo reflecte. Com a Constituição de 76 termina a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos Têm-na ainda, quando se implementa o seu interesse na determinação de aspectos fundamentais da sua vida. Porém, não são eles, os menores, os destinatários de um acervo legislativo imediato, ou com o impacto fundamental.
Em parte por esse motivo, o descontentamento e a inquietação neste nosso Direito continuam. Recordo que faço prova da disciplina num tempo (anos 80) em que se procurava já ver o texto de 77 com um olhar avaliador. “É uma Reforma demolidora, desagrega um projecto, muito mais do que constrói outro”, lembro-me de que sustentei na altura.
Mas a esta distância não penso assim, redimo-me da análise injusta que fiz então. A Reforma de 77 não é vocacionalmente demolidora de um edifício legislativo.
Por isso, antes de falar dos filhos, insisto ainda neste ponto do estatuto da mulher, afinal, no estatuto de um dos titulares do poder paternal.
Edificou um Projecto, permitiu traduzir com mais autenticidade, no Direito, as opções da vida e da experiência familiar que existiam, ou pretendiam muitos, em Portugal. Pretendia-se igualdade entre todos os membros, reflexo em cada solução jurídica do princípio da dignidade. Pretendia-se maior abertura à possibilidade de exprimir o projecto de vida que o casamento reflectia, ao invés da obrigatoriedade de uma retórica, absurda, imposição de algo às avessas. Pode decidir-se mal ou bem, mas tem-se o direito de tomar a decisão e a Reforma reconheceu-o. Mais: teve consideração pelo empenho de cada cônjuge dentro do casamento e assentiu em que o divórcio não era apenas uma questão de imagem social, era para muitos, sobretudo para muitas mulheres, a perda de uma referência em instituição. Elas a quem não fora reconhecido um papel cívico activo e que muitas vezes tinham entrado na família do marido aos 14 anos, a idade núbil então, em nome da sua alegada maturidade. Sem experiência profissional, tantas; sem experiência de integrar mulheres nos seus quadros, muitíssimos empregadores. Vedada mesmo a oportunidade de acesso a várias profissões, era preciso reconhecer a medida fortíssima em que o mundo de muitas mulheres portuguesas era a sua família, na melhor das hipóteses, aliada a uma vago sonho de alternativa que quase nunca concretizavam. Este mundo desaparecia entretanto e a Reforma de 77 foi muito realista no seu contributo para esse desaparecimento, ao mesmo tempo que tinha em conta o novo papel social e profissional, mas sobretudo, a nova dignidade e cidadania activa das mulheres: em matéria de titularidade de bens e na sua administração, de compromisso na edução dos filhos partilhada em co-responsabilidade, em matéria de definição das classes de sucessíveis, onde o cônjuge sobrevivo passou para o primeiro plano.

Estatuto das mulheres, estatuto das crianças: ganhos relativos
Mas não deixa de ser verdade que este pensamento jurídico estruturado, entre nós e internacionalmente, sobre as mulheres e o Direito da Família não tem a mesma vocação acolhedora quando pensamos nas crianças, como a não tem em sede de estatuto dos idosos. E refiro a questão das crianças e dos idosos lado a lado com o estatuto das mulheres porque, e apenas porque, estamos falando de personagens que o universo da família integra, ou seja, estamos vendo que direitos lhes são reconhecidos, em que medida o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos se cumpre, por um lado e em que medida se estruturam diferenças de carácter jurídico e função protectora dos que em certa fase se mostre mais carentes. Neste universo e sob estes pontos de vista, o estatuto das crianças e dos idosos era, tal como o das mulheres, carente de atenção do legislador. Não esqueçamos porém que o problema dos direitos das mulheres, o problema da igualdade de género, é sempre e muito diferente. É transversal a todas as faixas etárias, como o é a etnias, raças, culturas…Uma coisa é a discriminação em função da menoridade, outra ainda, a discriminação que acresce sobre uma criança do sexo feminino. Consciente de que é assim, escrevia a Dra. Leonor Beleza logo após a entrada em vigor da Constituição de 76: “ Parece-nos incorrecto o tratamento do sexo exactamente ao mesmo nível de outras realidades. É que, por um lado _ e sem contraposição com a ascendência, o território é de origem ou a língua _ o sexo é um elemento essencial na vida da pessoa humana; é-se e ser-se-á necessariamente diferente ser homem ou mulher, mesmo que a situação actual de atribuições estereotipadas a um e a outra venha a desaparecer” (“O Estatuto das Mulheres na Constituição”, Estudos sobre a Constituição, 1977).
A Autora defendia a tese segundo a qual a questão das desigualdades em razão do sexo acrescem pela especificidade que incorporam a todas as outras desigualdades sociais e são, por isso, mais difíceis ainda de lidar, de tentar debelar. Tese que, aliás, continua a fazer caminho, pesem as dificuldades que se lhe deparam tantas vezes, talvez pelo nível de abstracção que tem inerente, talvez, também, pela necessidade de transcendência que impõe, ou seja, sair de si próprio(a) e da sua circunstância e olhar o outro, ver o que marca um sulco às vezes bem subtil, nem por isso presente, na vida, no Direito, claro.

Filiação e Menores: a diferença
As crianças começam então, nos anos 70, a ver despontar os primeiros instrumentos internacionais a seu respeito. Os idosos, esses aguardam ainda uma Carta de Direitos, que terá como sempre, em relação a instrumentos do tipo, um papel sobretudo simbólico. Na verdade, se é muito meritório acentuar o seu papel como personagens do Direito da Família, este acentuação tem implícito o reconhecimento de conter uma espécie de vanguardismo ainda e eu pergunto-me às vezes se não se dará o caso de, pesem as intenções jurídicas também, maravilhosos que lhe estão inerentes, não se tornar o que seria um risco terrível, algo perverso.
Mas o que nos importa saber, afinal, é a medida em que outras matérias entram no Direito da Família. Referimos o casamento e a propósito dele o estatuto de ambos os sexos e o das crianças.
Diria que esta dimensão das crianças está mais incrustada nos problemas que ocupam o Direito do que possa à primeira vista imaginar-se. Pois a humanidade inerente a cada criança determina o seu estatuto na família e há com certeza reflexos em várias instituições que deverão ser atendidos.
È, porém, certo que há muito de contemporaneidade na descoberta das crianças enquanto titulares de direitos. Eu arriscaria dizer que isso é mais visível no caso dos direitos das crianças do que no caso dos direitos das mulheres. Aliás, já vimos que se reflectiu na maneira como são construídos os estatutos de filiação, proscrevendo uma forma mais prestigiada que outra e como também se olha na lei o poder paternal, tendo em conta os interesses do menor.
Porém, este dado é bastante recente na cultura europeia. E não se dirá que tem mais ou menos a mesma gestação que se encontra para o aparecimento dos direitos das mulheres. Na realidade, penso que tem uma gestação mais tardia e também mais lenta.

Os Menores na Família
Há quem afirme que a cultura europeia encara a criança como um homúnculo até ao século XVI. A pintura depõe muito nesse sentido: figuras infantis apenas nas proporções, já que em tudo o mais se assemelham a homens e mulheres. Esta forma expressiva que a Arte toma transpõe-se para a vida real, ou mais precisamente, é um seu reflexo. Não havia, entende-se, uma percepção social e normativa da criança nas suas particularidades, como ser humano em formação e carente de um processo educativo que ao Direito, designadamente, competisse conformar.
O Humanismo possuiu todas as condições para, olhando o Homem por outro prisma, contemplar também os seres humanos em formação e educação.
Ora, a realidade mostra que este caminho não foi percorrido. É verdade que têm uma parte forte de razão as teses que afirmam que durante muito tempo foram as crianças usadas como meio de superação de frustrações dos adultos a cargo de quem estavam, os pais, naturalmente, incluídos. Mas, se é certo que surgiram entretanto algumas obras demonstrativas da importância que se vinha conferindo à missão educativa, esta era entendida como a educação para a chefia da família, a defesa dos seus interesses e subsistência, financeira e na projecção social. Será a educação daquele que detendo a chefia do agregado, participará activamente na vida da polis democrática que emerge com a Revolução Francesa.
É verdade que a consciência progressiva dos Direitos Humanos, o seu processo de sedimentação proporcionaram um outro enquadramento dos problemas dos menores. Entre a época em que o pai de família podia a seu alvedrio entregar o filho a uma instituição devido a alegado comportamento ilícito, subrogando-se aos tribunais (um poder que o Código de Napoleão vem indeferir em 1810), afinal e esta época em que os Tribunais de Menores assumem uma intervenção tutelar educativa, ou de protecção, como última instância, vai um fosso muito importante.
Esse fosso, exprime-o bem o caminho legal percorrido entre o Código de Seabra e o Código Civil de 1967, que em muitos aspectos é considerado, como vimos, altamente inovador.
Concluiríamos então que o tempo actual é um tempo que finalmente centrou devidamente os problemas dos menores, e que, se dúvidas ou arrimos de lacuna legislativa subsistem, são matéria a completar através das adequadas reformas legislativas.
Não compartilho todavia deste ponto de vista. Creio que há ainda um caminho, também de compreensão sociológica da situação dos menores, em que as opiniões divergem; e que estas teses têm reflexos jurídicos. E por isso há aspectos a clarificar, a corrigir.

Teses recentes
Penso desde logo na controvérsia que hoje separa os entendimentos comunitaristas e voluntaristas sobre os direitos das crianças.
Segundo a concepção comunitarista, os destinatários de políticas públicas devem ser consideradas no carácter de membros da comunidade, pelo que a consideração de um ser humano, ou de um grupo de seres humanos, dentro da família, se compadece com este tipo de análise considerada adequada pelos comunitaristas. Resta, porém, saber em que medida a família tem capacidade de resposta a todos os problemas e realidades humanas que decorrem da personalidade, designadamente do menor. Creio que uma resposta afirmativa é irrealista, redutora. É verdade que os menores se desenvolvem dentro de pequenas comunidades e nelas se procede a uma parte essencial do seu processo de socialização. Sendo assim, têm razão os comunitaristas ao sustentar que será a família uma realidade essencial a considerar neste domínio. Não só porque no seu interior se reconhecem direitos, mas sobretudo porque é legítima representante de muitos interesses e direitos dos menores perante toda a sociedade.
Mas aqui termina a parte aceitável do comunitarismo.
Pois ele padece dos problemas próprios de todas as correntes que, integrando a pessoa numa comunidade, lhe esbatem ou mesmo tendem a anular a autonomia essencial em cada momento da vida. O homem é um ser comunitário mas sem que isso impeça ou muito menos exclua a sua dimensão de ser único, e esse reconhecimento é a grande conquista dos Direitos Humanos que esta tese arrisca comprometer.
Em segundo lugar, creio criticável ao comunitarismo ser ele muito vago ao sustentar a ideia segundo a qual a integração das pessoas na sociedade familiar permite que seja esta representativa, em última instância, e de forma plena, dos seus direitos. Como, através de que mecanismos? E sobretudo, como comprovar que o ser humano é um ser institucional em todo o sentido?
Mas a tese comunitarista é uma tese que se reclama dos Direitos Humanos, seguida por muitos autores e não poderá ser ignorada. O sentido da crítica é evitar descambar num silêncio comprometedor. De facto, não defendo as conclusões comunitaristas sobre os menores como democraticamente possíveis, compatíveis com a Constituição.
Já as teses voluntaristas singram pelo modelo oposto. De acordo com elas, e recorrendo ao argumento de se poderem mais confortavelmente reclamar dos Direitos na sua expressão clássica, direi real, como direitos pessoais e essencialmente compreensíveis nessa óptica, os direitos dos menores são considerados na sua expressão de direitos individuais. A conclusão, porém, deixa muito a desejar. O voluntarismo pondera os direitos dos menores mas para concluir que as crianças não têm a capacidade de autonomia plenamente desenvolvida. Sendo assim, aos pais competirá tomar a defesa dos seus direitos. E isto vale por dizer que terão legitimidade para os interpretar em todas as circunstâncias, com a ressalva, com certeza, dos casos de incapacidade do próprio progenitor ou de quem o represente.
A tese não se adapta à realidade biológica, social das crianças. Reconhece-se hoje que estas são seres em evolução, sim, mas municiadas com um conjunto de direitos que exprimem uma personalidade existente na infância. E sobretudo, é-lhes reconhecida a dignidade, também social, que indefere a ideia desta tese.
Enfim, as correntes que hoje insistem em entender que a personalidade se constrói através da afirmação participativa do menor na sociedade, para o que contribui a sua afirmação dentro, também, do agregado familiar e as consequências que deverão ser reconhecidas a tal afirmação.
São teses realistas e apelativas. O problema que colocam é ainda assim difícil. Trata-se de saber a quem compete tomar posição, caso os menores não colham na opção de um dos seus progenitores, ou de ambos, uma solução compatível com o seu próprio projecto e detenham já idade bastante para que se torne relevante, pertinente ouvi-lo.
Estas reflectem-se já nos instrumentos internacionais, se bem que de modo não muito assertivo.

Os diplomas internacionais: dimensão simbólica ou eficácia evidente?
Assim, a Convenção Europeia dos Direitos das Crianças não torna claro o papel que deva cometer-se realmente à criança neste processo de decisão. Concretizando: posto que o menor não se mostre de acordo com os pais em relação a aspectos da sua realização e desenvolvimento, como são os respeitantes ao ensino que irá ter e à educação religiosa que lhe será ministrada, como decidir? Compete ao juiz tal decisão? A verdade é que o juiz, tendo por si a vantagem da isenção face a possíveis interesses que as opções dos pais reflictam, não tem decerto um conhecimento do menor que lhe permita tomar com grande à vontade posição no processo decisório. Sempre se poderá dizer que tem o juiz a possibilidade, mesmo o dever, de se fazer acompanhar na formação deste processo decisório pelo conselho de família, por técnicos de psicologia, pedagogos qualificados. Mas este aspecto, que aliás já a lei em vigor contempla, não contém sortilégios: Há aspectos educativos de grande melindre sobre os quais sempre, em última instância, se coloca a alternativa entre a outorga aos pais ou a quem os represente e a ênfase reconhecida à vontade em sentido diverso do menor.
A lei portuguesa tem feito esforços grandes no sentido da integração social dos menores quer na Família, quer no mundo social, através de adequados meios de acesso à cultura, à Educação. Há uma noção muito clara, que a lei reflecte, de que os pais têm aqui um papel, senão insubstituível, ao menos primordial, Pretende-se dizer com a afirmação que os pais deverão liderar sempre que possível em conjunto, o processo educativo. Que esta liderança corre à margem das rupturas conjugais que porventura ocorram entre eles. Enfim, que a sua substituição deve dar-se, a benefício do menor, em alguém que mantenha uma relação de proximidade, na medida em que seja detentor de condições para o efeito (materiais; afectivas).
Muitas vezes se cometem erros. A preocupação de entregar a criança à mãe biológica, posto que capaz de prover ao seu sustento e manifestando apetência afectiva para o efeito, ainda há pouco tempo faria correr torrentes de opinião…na verdade, correu mal naquele caso. Mas não pode julgar-se a decisão anterior sem os elementos completos, decerto complexos, que a rodearam. Em princípio, o Tribunal que entrega a criança à sua mãe biologia e que deseja a criança é uma decisão acertada. Ou, por outro ângulo? Que alternativa melhor se encontraria?
Enfim, a propósito dos menores e do seu reconhecimento social e jurídico, gostava de vos dizer que, não obstante a importantíssima movimentação jurídica que se está a verificar nestas últimas décadas em torno da consciência disseminada dos seus direitos, não compartilho a ideia desresponsabilizadora e maniqueísta que permite um juízo maniqueísta sobre o “passado” e um presente que caminha em direcção do mirífico…Infelizmente, sou um tanto menos optimista. Prefiro reconhecer que há uma consciência social e sobretudo, instrumentos jurídicos que representam um progresso incomparável.

Um direito personalista nas decisões
Os nossos Tribunais de Menores fazem muito pelos direitos das crianças, como veremos Mas, caso se proporcionasse escolher um quadro representativo das crianças na Europa eu não escolhia Rubens, também não escolhia Picasso ou Dali, nem sequer Paula Rego e as suas fantásticas, misteriosas meninas! Escolhia Velasquez. Tomava Las Meninas. Claro que não vamos discutir o quadro, saber qual o irrealismo que ele junta à realidade. Mas basta ter em conta que a consistência que ali existe (ali, onde tudo é volátil, susceptível de várias interpretações: para onde olha o pintor? Que retrata o espelho no fundo da sala, o Rei e a Rainha ao nosso nível, sentados a posar para o retrato? Porque observa o homem lá atrás a cena?) parte de uma família. O que dá consistência e unidade é a família do Rei Filipe IV. A Infanta Margarita irrompe na sala onde o pintor se encontra e faz, parece, uma birra: está farta de ser pintada por aquele homem, desde bebé. Todos tentam persuadi-la: as aias portuguesas (“Las Meninas”, a irmã, Teresa, talvez o Rei e a Rainha que porventura olham para nós, reflectidos num espelho. Talvez, ainda, Velasquez…). É uma família muito prosaica que dá consistência ao quadro. E é uma família que acarinha uma criança, não a ameaça por não querer posar pela enésima vez. Há sentimentos que perduram. Nisto se traduz um papel decerto pouco consistente no passado, mas representativo da nossa cultura acerca da infância.
Ora este ponto abre as portas a uma realidade que tem de ser devidamente realçada neste início do estudo do Direito da Família. Trata-se de saber que pontos da vivência das pessoas, que revestem a qualidade de pais, filhos, educadores, menores de idade, idosos, devem ser do âmbito do Direito da Família. E se porventura há segmentos deste processo e da sua expressão jurídica que devam exorbitar o Direito da Família.
Ex: Recordo a este propósito um Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. No caso, colocava-se, aparentemente, “só” uma questão escolar, “só” um problema de direito á educação. Um número de crianças belgas não tinha, nas imediações de casa, escola que ministrasse o ensino da língua familiar, o francês. Preocupados, os pais vieram requerer uma escola diferente para os seus filhos, ou, em alternativa, professores adequados a suprir a lacuna. O flamengo era a alternativa e em casa não falavam flamengo. As autoridades do país invocaram a possibilidade de as crianças aprenderem francês nas imediações…deixando de viver o quotidiano em suas casas. Colocada a questão ao Tribunal Europeu, entendeu este que não se verificava uma necessidade insusceptível de ser suprida pelos pais, através de expedientes como a escola alternativa…e longe de casa. Perpassa na fundamentação da decisão, entre outros aspectos também complexos, uma grande promiscuidade entre as possibilidades materiais da família, que pareciam reais nas várias situações, e a plena desconsideração do direito da criança a um acolhimento afectivo na sua casa, no seio de uma família adequada. Esta confusão entre a importância do afecto e a importância das vantagens económicas é gritante na decisão. Contudo, foi o veredicto.

“Para onde vamos? Para casa, sempre para casa…”
Ou antes, se afinal domina aqui a mesma tendência que vemos perpassar muitos ramos do Direito. Uma dificuldade cada vez mais acentuada em criar núcleos de compartimentação entre o que e “coisa privada” e “coisa pública”. Pois a realidade é que há muitos aspectos do Direito da Família que se fazem permear por influência notável do direito público também. Desde logo, as regras e princípios constitucionais que o conformam, os tratados internacionais que lhe dizem respeito. Mas, muito mais do que isso. Os direitos da Segurança social, do Trabalho, da Administração Pública, fazem aqui a sua incursão. Claro que a opção do legislador por considerando bens comuns os bens adquiridos a título de rendimento do trabalho na constância do matrimónio, mas sem prejuízo de outorgar a sua administração ao cônjuge que os aufere e incluindo, pois, a possibilidade de alienação dos mesmos. Ora este aspecto decorre do sentido jurídico-laboral do salário a que não é indiferente a ordem jurídico-familiar neste ponto. Por outro lado, quando a lei das Uniões de Facto admite o regime de férias, faltas e licenças laborais aos companheiros, mesmo na legislação referente à Administração Pública, estará a olhar de novo a realidade familiar na perspectiva familiar, num segmento em que interesses de ambos os direitos intervêm. O direito da segurança social intervém por sua vez na outorga de pensões de sobrevivência e na definição do respectivo critério a familiares e unidos de facto. E assim por diante.
Concluímos assim que, se uma época existiu em que falávamos com propriedade de um direito laboral da família, securitário social, fiscal, etc., hoje entram em cena direitos com expressão familiar cujo acervo de consequências jurídicas passa em grande parte por outras esferas ou ramos do Direito. Concretizando: a propósito das Uniões de Facto, há com certeza um modelo a que estas têm de obedecer, sob pena de não se subsumirem as situações em questão à categoria. No entanto, uma vez reconhecida a existência da União de Facto, vemos que as suas principais consequências são atinentes a outros ramos do Direito.
Ora, isto não acontecia, não acontece com institutos clássicos, como o matrimónio, a filiação, a adopção… Há uma realidade emergente que entra no Direito da Família por via do reconhecimento de proximidade face às matérias que este contempla. No entanto, uma vez entrado, o cerne dos temas de que cura o Direito da Família a seu respeito abre uma janela gigantesca sobre outras realidades jurídicas. Muitas destas realidades são de direito público e têm a pretensão de assegurar as pessoas que fizeram tais opções de vida no mundo laboral ou em segmentos seus, no mundo da segurança social, da saúde, no plano da habitação.

Indicação de sequência. Justificação.
Muda, pois, o Direito da Família, sofre uma espécie de crise de identidade não assumida. Na realidade, sob a capa de uma aparente certeza que se transmite, a de que é fácil e urgente integrar neste domínio a parte que claramente lhe compete, constitui quinhão seu, alberga-se a realidade inversa: o que falece são os critérios de fronteira entre o que é ainda Direito da Família e aquilo que, sendo direito que emerge de relações de tipo familiar, não tem os problemas próprios do Direito da Família. Mas, ainda se perguntará e não terão sido esses problemas que mudaram, não se dará o caso de ser este afinal o caminho de uma reformulação conceitual e material do conteúdo?
Porque não há como dar por adquirida uma resposta sem o estudo, direi que é este o nosso objecto. Determinar, de entre as matérias incluídas nos programas tradicionais e as matérias que clamam por inclusão, entre o casamento e a União de Facto, tanto na sua expressão legislativa (que o direito da Família toma como filha, não sei se adoptiva, ou mesmo natural) como na expressão de maior força normativa pela qual tantos clamam (casamento entre homossexuais, reconhecimento dos mesmos direitos que os conferidos ao matrimónio), entre o direito dos menores na sua vertente familiar directa, por vínculo de filiação ou de adopção, e a sua afirmação social mais ampla, entre os direitos dos idosos, de novo incluídos no agregado familiar mas analisada a sua situação como pessoas fora dele, há uma resposta específica do Direito da Família que nos leva a dizer: são tudo problemas que integram este domínio jurídico.
É por isso que a forma de constituir Família, por muito que mude a configuração do leque que a nossa ordem jurídica admite (monoparental, convencional; famílias que, regendo-se por outras regras, coexistem no nosso espaço e requerem normas próprias…); por mais que o conceito de filiação apele ao papel activo, interveniente, dos pais, ou antes o deixe deslaçar um tanto; o mesmo em relação aos idosos.
E depois, o influxo, as formas como outros ramos do Direito actuam aqui. Afirma-se crescer a violência dentro da Família? Há logo quem agite a necessidade da intervenção penal. No entanto, dentro do Código Civil, pouca é a importância que o legislador atribui a certos crimes que identifica, contra um dos cônjuges, contra familiares próximos.
A turbulência social e normativa da Família não é uma caixa de desculpa para as indefinições. Pelo contrário, impõe uma atitude interventiva. É a medida desta que implica, por igual, saber quais as fronteiras: dos deveres recíprocos;
Eu reconheço que, se muitas serão as dúvidas sobre a pertença correcta, dogmaticamente certa, ao Direito da Família, este constitui hoje, no estudo universitário, a sede de encontro com os problemas equacionados. E nesse sentido, não creio que lhes devamos fechar a porta do nosso objecto.



Ordem de sequência
Partimos assim para a análise do objecto tradicional da disciplina, tal como o Código Civil o enuncia. Veremos que relações familiares existem e quais são as suas fontes.
O Código Civil recebeu, como foi dito, grande influência constitucional em 77. Sendo assim, era desde logo importante analisar o modelo de Família na Constituição. Mas sê-lo-ia em todo o caso, já que a Lei Fundamental determina, molda os grandes institutos e não teria qualquer sentido proceder a um exame do Direito ordinário alheio a este cadinho da aferição constitucional.
Era tradição chamar a depor, a este propósito a dignidade das pessoas para enquadrar os direitos de todos os membros de qualquer agregado familiar, tal como os princípios da igualdade perante a lei, cujos reflexos são determinantes na estrutura jurídica do Matrimónio ou das Uniões de Facto, como ainda as relações parafamiliares em geral. Mas hoje como já dissemos, acrescem outros pontos. Desde logo, a extensão do regime do casamento, o problema da sua aplicabilidade a outras formas de sociedade familiar. Porque o tema convoca a Constituição, será estudado a propósito dos princípios constitucionais. Antes do regime dogmático incluído na Lei, é um problema constitucional sobre que compete tomar posição.
Seguimos com o estudo do Direito Matrimonial. O casamento e a forma de união heterossexual mais adoptada em Portugal. De forma espontânea, as pessoas optam pelo casamento como forma de institucionalizar relações estáveis e duradouras.
Porém, a existência do Matrimónio Católico, adoptado por muitos portugueses suscita, em função de uma difícil interpretação do texto da Concordata 2004 com a Santa Sé, articulado com o texto constitucional, algumas dúvidas de constitucionalidade, para sectores da doutrina. O tema será abordado, antecipadamente face ao Casamento Católico, nos princípios constitucionais. Refiro a questão da constitucionalidade da norma do Código Civil relativa ao regime do casamento rato e não consumado.
O Semestre passado foi atravessado pela entrada em vigor de (mais) uma alteração ao regime jurídico do Divórcio. Foi um tempo de intranquilidade feliz: de acordo ou contra, uma geração depôs sobre a matéria. E deixou-nos a responsabilidade de continuar. Reputo a questão do maior interesse. Porventura, tanto quanto consegui aperceber-me até agora, não sobretudo pelas soluções que veio directamente impor, mas sim devido aos propósitos legislativos menos evidentes. O que se pretende? Inverter o sentido “ideológico” do Divórcio em Portugal, tornando-o extensivo a mais situações, acrescidamente flexível? Ou por outras razões ainda? Será o tempo de ensaiar uma resposta.
Termina-se com os direitos das crianças, dos jovens, dos idosos.
Os primeiros conhecem uma nova lei, do Apadrinhamento, que se reputa de grande importância e da qual se esperam frutos.
Quanto aos últimos, subsistem, para mim, algumas dúvidas sobre o lugar da sua abordagem temática. Tenho por claro, todavia, que algum deverá existir e que a sensibilidade jusfamiliarista abre as suas portas à compreensão dos institutos que aqui se encontram. Tentar-se-á, nesta sede, olhar o direito dos jovens nos segmentos que nele me parecem merecer mais destaque: a questão dos jovens em risco e muito especialmente, dos jovens em risco de delinquência ou de serem vítimas de crime.

III

O objecto do Direito da Família.
Da proximidade entre as formas juridicamente contempladas à tese da heteronomia; Direito da Família e direito das famílias.

1. Questões preliminares.
Procuramos agora o objecto jurídico da Família. O problema é complexo e é-o em crescendo. Por um lado, há um substrato cultural proveniente da realidade da vida que conduz a uma corrente de opinião maioritária a este respeito, como conduz por igual a uma visão muito partilhada sobre o sentido das realidades que, existindo na lei, se afastam dos paradigmas tradicionais. A Família, para a generalidade das pessoas, não estará muito distante da fórmula quase poética com que um autor americano a retrata. É o lugar onde nascem os filhos e se enterram os








maiores, um lugar inconfundível com qualquer instituição que se mostre transcendente ao plano da intimidade que biológica e culturalmente construímos.
E esta Família sulca-se, na Lei, por dois conceitos que retratam instituições indispensáveis ao nosso plano de abordagem. Penso no Casamento.
Depois, com o tempo, recebeu a ordem jurídica portuguesa novos parâmetros, que hoje se acolhem nas Leis 6 e 7 de 2001, de 11 de Maio. As Uniões de Facto adquirem importância crescente: aumentaram um tanto e sobretudo, alargou-se o debate sobre a sua legitimação. Esse debate, permeado de argumentos de vária ordem, é também (para nós, é essencialmente) um debate jurídico.
Quem, partindo de um núcleo familiar, constrói o seu próprio paradigma, por aproximação ou distanciamento à realidade matriz, opta em Portugal pelo Casamento. O Casamento é o modelo a partir do qual se reproduz a institucionalização dos padrões de vida e de afectos entre nós. A generalidade dos portugueses não prescinde dele, quando opta por laços de união mais intensos.
Quando se pondera o instituto do Casamento vem à ordem do dia o conceito de Parentesco.
E o mesmo vai suceder a propósito da União de Facto, sustentada por uma afectividade em que a libido tem um papel preponderante e maioritário.
À primeira vista, não se vislumbra qualquer relação directa entre ambos, Casamento e Parentesco, e menos ainda entre a tríade que engloba Parentesco e Uniões de Facto.
Mas logo nos damos conta de que não é assim. Há relações de Parentesco que condicionam pela negativa Casamentos, Uniões e Facto protegidas por lei. Diríamos, que as inviabilizam à luz do Direito. Este, desde já, um ponto essencial de atenção.

E assim se justifica a necessidade de os não separar nesta fase; de os chamar a depor conjuntamente.

O Parentesco (artigo 1578º CCivil) traduz-se num vínculo familiar. A lei define-o como o laço que liga duas pessoas que descendem uma da outra, ou ligadas por um ascendente comum. Em todo o caso, a sua chamada neste ponto da exposição afigura-se essencial. Pois o parentesco decorre as mais das vezes de uma relação matrimonial ou familiar de outra ordem.
Nasce-se por regra no seio duma União matrimonial ou de Facto. É a circunstância de sermos filhos, netos, irmãos de alguém que nos confere o direito a perceber uma inserção no núcleo por eles integrado, a receber educação, alimentos. Quando a Família é desconhecida, ou rejeita um dos seus membros carentes (idoso, criança) a devolução do problema à normalidade possível passará pela intervenção das autoridades e deverá ser, por estas, sindicada subsequentemente.
Por outro lado, cumpre ter em conta os obstáculos à constituição de relações matrimoniais que decorre de um parentesco próximo. Por razões eugénicas, de moral social, pais e filhos não casarão, nem receberão reconhecimento protector das uniões de facto que porventura estabeleçam entre si. A mesma regra vale para todos os parentes na linha recta, que em breve identificaremos.

O Parentesco na pré-compreensão das instituições familiares
Indo mais longe, veremos adiante que muitos outros direitos decorrem e se preterem pelo parentesco, de acordo com estas balizas apontadas, e que são muitas vezes fundamentadas no decoro (moral social). Estou a pensar no casamento entre tio e sobrinha (colaterais no terceiro grau, como também veremos), vedado por razões que não são apenas estas, de ordem biológica, mas que exigem ponderações advenientes do laço de sangue, aliás muito próximo.
Por outro lado, o Casamento é a fonte mais ampla de novas relações de parentesco, sem prejuízo de o serem também as formas de União não matrimonial que a lei contempla, como em breve veremos. Mas decorrem mais formas de parentesco do Casamento. Pela tradicional vocação de estabilidade da relação matrimonial é no seio dela que se desenvolve o núcleo mais alargado de família; que as gerações familiares se entrelaçam e identificamos filhos, avós, netos, sobrinhos…
Vejamos então o conceito de Parentesco um pouco mais.
A lei define-o, dissemos, como o vínculo que une duas ou mais pessoas que tenham um progenitor comum. Na contagem dos graus de parentesco, que agora antecipamos rapidamente e adiante estudaremos, acabaremos por concluir quanto é essencial a determinação do seu carácter ascendente ou descendente. E quanto é determinante o critério da contagem dos graus.
[O esquema da relação vertical a que se acaba de fazer referência identifica-se em primeiro lugar (primeiro esquema), entre os gráficos que se apensaram ao texto desta Aula. A possibilidade de o fazer deve-se à utilização de esquemas utilizados para este efeito em vários Manuais que, contemporâneos de uma Família mais alargada do que a dos nossos dias, concediam ao tema uma grande relevância. E devo-o muito especialmente à ajuda empenhada dos meus alunos…]
Parentesco na linha recta descendente: estabelece o relacionamento entre pais e filhos, avós e netos, bisavós e bisnetos…Há sempre um progenitor de que todos provêm. A contagem do grau depende do número de pessoas relacionadas, omitindo um dos progenitores. Por esta via concluímos que pai e filho são ascendente/descendente no 1º grau; bisneto/bisavô ascendentes/descendentes no 4º grau.
[Na “árvore” apresentada no último gráfico, que combina várias modalidades de parentesco, encontramo-lo de novo].
A situação reconfigura-se quando não existe uma cadeia horizontal de descendência, mas todos os parentes referenciados provêm de um mesmo ascendente comum.
Assim, se A e B são filhas de C, A e B não estão “em cadeia” na relação familiar. No vértice, sustentando a ligação entre as duas, está o/a progenitor/a C. A e B são colaterais no segundo grau: subo a linha, contando com A (1º elemento da cadeia), tenho em conta B (2º elemento) e não procedo à contagem de C. Se porventura A tiver um descendente, D, a relação entre este e B, colateral em 2º grau de A, é de colateralidade no 3º grau. E o processo de contagem foi o mesmo. Alargando, imagina-se a relação entre os descendentes directos de A e B (D e E). São estes, colaterais no 4º grau. Se recorrermos à linguagem corrente, diremos que tio e sobrinha, referidos supra, são colaterais no terceiro grau, mais um grau, portanto, face à colateralidade dos irmãos. Diremos que os “primos direitos” da linguagem corrente são colaterais no quarto grau. E por diante…Sendo que em regra a lei permitirá a produção de efeitos jurídicos até ao 6º grau da linha colateral, ao passo que na linha recta esses efeitos não se cerceiam nunca. Há casos de produção mais ampla de efeitos na linha colateral. Mas serão vistos em sede própria, sob pena de uma grande e inútil dispersão nesta fase.
[Os esquemas que surgem em segundo e terceiro lugar reportam-se, claro está, a situações de colateralidade].
Encontrarão muitas vezes exercícios que pedem identificação do tipo e grau de parentesco entre familiares que a linguagem comum refere por nomenclaturas variadas: cunhados, segundos primos, terceiros primos, concunhados…Não se trata, contudo, de linguagem legal. Penso que é mais útil para essa clarificação um dicionário da Língua Portuguesa. A nós, interessa-nos balizar a situação real das pessoas na família e depois, proceder ao enquadramento jurídico. A minha geração ouviu, há muitos anos, a linguagem dos 2ºs primos, dos sobrinhos netos… Acredito que os jovens cuja socialização não ocorreu em famílias alargadas terão outro tipo de interesses familiares.
A relação de filiação, sempre importante, ocupa o centro da atenção legislativa e isso corresponde à realidade. Dentro de um enquadramento matrimonial ou outro é uma relação que suscita a emergência de direitos e obrigações a todos os progenitores. Não é a circunstância do seu enquadramento legal, é a circunstância da ligação familiar que os torna titulares de direitos e deveres fortes em relação aos descendentes. A Constituição impõe este reconhecimento do Menor e dos seus direitos à margem de factores relacionados com a vida e opções dos pais Artigo 36º CRP, que se estudará adiante, a propósito da Família na Constituição). É da sua dignidade e interesses que cura o legislador.
Temos, pois, que a uma instituição familiar dominante, o Casamento, correspondeu a moldagem essencial do vínculo de Parentesco e de tal modo, que muitos aspectos se repercutem nas outras realidades familiares.
Também daqui decorre a importância destas instituições, que agora abordamos.
A União de Facto, consagrada hoje na Lei 7/2001, depois de um processo de constituição algo turbulento, dá testemunho de que é assim.

Também a Afinidade, na pré-compreensão das relações familiares

Não é possível o matrimónio entre afins na linha recta. Esta regra de parca aplicação deve contudo ser mencionada nesta sede. Além do mais, traz à colação a regra segundo a qual a afinidade cessa pelo Divórcio e constitui alteração de monta entrada em vigor com a Lei do Divórcio. Afirma-se a existência de Afinidade pelo vínculo que liga um cônjuge à família do outro, operando a contagem dos graus e linhas nos termos usados para o Parentesco.


Direito da Família ou Direito das Famílias?
Introdução
Colocamos então o problema central neste eixo da constituição das relações familiares por casamento, união de facto ou ainda, segundo a Lei 6/2001. Saber se é linear a verificação de que procedem de um denominador comum ou a sustentação de que entre todos haverá diferenças qualitativas importantes. A sustentação de que são formas de relações familiares ou antes, de que se trata de realidades desprovidas da necessária conexão para um tal entendimento. Enfim, uma outra alternativa. Saber se, posto que se rejeitasse a subsunção de todas elas a um denominador comum de Direito da Família, era ainda possível concluir que o legislador assentara num entendimento polissémico da realidade familiar, de tal modo que em vez de um direito da família, capaz de conglobar as relações que nos surgem no Livro IV

da Família, nas Leis 6 e 7/2001, teríamos antes um direito das famílias, cada uma dotada da sua fisionomia autónoma, mas sempre reconhecidas como realidades com a dignidade própria de um instituto com o cunho familiar.
Ex: Tentemos ver através de uma situação da vida o alcance que a diferença, que à primeira vista é tão só conceitual, pode assumir.
Para quem se proponha criar um novo modelo legislativo sobre Uniões de Facto atenta ao modelo do “direito da família”, continuará a estruturar normas que, sendo inclusivas de pessoas do mesmo sexo, situação que a actual Lei prevê, ainda assim marque diferenças entre casais homo e heterossexuais no domínio da titularidade de direitos/deveres, direitos parentais. No caso actual, a possibilidade de adoptar menores está vedada a estes casais. Representaria uma evidente mudança de paradigma familiar que passasse a acontecer de outro modo, mantendo-se em simultâneo o casamento tradicional.

O Direito da Família, como aqui se sustenta, exprime uma leitura retrógrada?

O sentido do paradigma “direito da Família” na ordem jurídica portuguesa.

À primeira vista, fica-nos a ideia de que recentrar a análise dogmática no direito da família tradicional pode significar que desconsideramos outros caminhos, rumos que entretanto se empreendem.
O objectivo está muito longe de ser esse. O olhar que se tentou usar para compreender as exigências de uns sectores, as reticências de outros, entre nós, não significa cercear a continuação; era inútil, em última análise ilegítimo.
Continuamos, sim, a olhar a Família à luz de um modelo tradicional. Talvez isso corresponda a uma tentativa de estar ao lado de muitos, na luta por um modelo forte, o que rege no essencial a ordem jurídica. Vejo, aliás, a questão em grande parte por esse lado.

Porém, a situação mais marcante diria respeito, entre nós, à proliferação de casais com tradições diferentes, resultantes de etnias diversas. Como agiria a lei? No sentido da aceitação? Teríamos um direito das famílias.
Verifiquemos então os traços da dogmática geral de cada figura chamada a depor.

2.O Matrimónio

A Constituição é o baluarte da sua consagração, o que importa desde logo uma referência que se erga a partir dos seus alicerces.
Não nos permitirá ela, contudo, avançar muito em sede de densificação do conceito legal de casamento. Embora exista doutrina em sentido contrário, que verbera a índole aberta e susceptível de abarcar outras tipologias de casamento para além da lei ordinária, a verdade é que sempre se confronta essa discussão, que depois faremos, com o problema de saber em que medida esta eventual ampliação do conceito para além dos limites em que a lei ordinária (Livro da Família, Código Civil) o recorta é injuntiva face ao legislador ordinário, ou representa um quadro de referência mais amplo das suas possibilidades de actuação legiferante. Um quadro que se mostre permissivo de outros modelos de casamento mais amplos, assentes em pressupostos que rompam o espartilho do actual regime vertido no Código Civil.
Olhemos, pois, o recorte do Código Civil.
O artigo 1575º parece muito conclusivo a este respeito.
Afirma que o Casamento:
_ É um contrato;
_ Celebrado entre pessoas de sexo diferente;
_ que constituirão através dele uma “plena comunhão de vida”;
_ celebrado nos termos e disposições deste código.

É a norma tão clara quanto parece?
Procuremos sindicar cada uma das afirmações assinaladas.
“O casamento é um contrato”. Qual a dimensão de uma asserção como esta? Responderia, antecipando uma discussão que abordaremos, como disse, mais tarde. Creio que o é, e creio sobretudo que a lei portuguesa não permite uma sua consideração diversa. A tese, aventada por certos autores, de que os afectos se não contratualizam, parece-me deslocada nesta sede. Não é argumento consistente. Pode aceitar-se um projecto de vida do qual decorre abdicar de um modelo de vivência e optar por outro, tenha lugar sem que isso implique a preclusão da liberdade ou do direito à liberdade. Diria que a consideração do homem como “ser com os outros”
(de raiz multimoda no pensamento, sustentável através da filosofia tomista, sobretudo pelos fichteanos, mas em bom rigor desenvolvida por todos os cultores do idealismo kantiano. Aliás, presente, creio, em Kant, na tese segundo a qual o númeno é um arquétipo, enquanto o homem fenoménico surge após o contrato social e não dispensa a sua compreensão os laços de reconhecimento e interacção recíprocos)
é, alias, incompatível com outra conclusão que não passe pela compressão natural de direitos que, pela sua natureza, apenas se exprimem através de um processo de concessão permanente. Não ver isto é assentar num individualismo totalmente destituído de suporte na realidade. Enfatizo: nem o mais empedernido Kant, na sua tese “numénica”, vai por aí; coloca, lado a lado com os postulados da razão pura, a relacional idade como postulado da razão prática. O contrato de intimidade é afinal um contrato de socialidade. Esquecer isto é esconder a cabeça ao argumento que a realidade impõe. Um erro sem saída.
A vida que exprime nas suas relações formas de intimidade é necessariamente concessiva de um modelo incompatível com a titularidade estática dos direitos e deveres de cada um.

_ o casamento é uma relação entre pessoas que nos termos da lei pretendem empreender uma plena comunhão de vida.
O conceito é bastante obscuro, creio. Pois, se por um lado terá visado afastar a obrigatoriedade de uma relação amorosa sexual, moldada no cadinho daqueles ditames que a Igreja Católica estrutura para o Matrimónio enquanto sacramento, a verdade é que não contrapôs claramente um sentido. Antes admite vários. Haverá casamento válido desde que o projecto de vida comum implique vida conjunta, lealdade recíproca. E se é certo que a ligação sexual e o intuito procriativo estarão presentes na maioria dos casos, não hão-de estar necessariamente. E porque esta porta que agora se abre, relativamente ao que era antes imposto pelo Matrimónio católico, é muito ampla, o seu carácter problemático ergue-se como um tributo à plasticidade da nova figura.
_O casamento obedecerá aos termos das disposições deste Código.
De novo, a infixidez assumida marca esta última passagem do excerto. Significará que não pretende agora o legislador avançar mais sobre o sentido do casamento, objecto e fim. Que admite a sua evolução de acordo com princípios e regras que a lei venha a considerar dignas de contemplação doravante.
A verdade, porém, é que assim abre a lei a porta a qualquer regulamentação, o que vale por dizer, a toda a espécie de alterações ao regime em vigor, ainda que adulterando a sua configuração básica. O limite à regra é longínquo no horizonte: não poderá ser inconstitucional. Mas pode ser derrogadora do matrimónio na sua actual configuração. Este aspecto, que se previu em 1977, está bem patente na distância profunda que marca a precariedade, ou fragilidade, progressiva, da relação matrimonial desde então até à entrada em vigor da actual Lei do Divórcio. A partir dela, não só o fim do casamento pode ocorrer por vontade das partes findo o mais curto período de vigência da sua história, como termina tendo por consequência, entre outras, uma alteração ao regime de bens que pode determinar uma perda patrimonial expressiva face às expectativas que se verificavam no momento da celebração e durante todo o decurso da relação pessoal até esse momento. E, se dúvidas podem ocorrer acerca da opção no plano da constitucionalidade, cumprirá em todo o caso conceder na certeza de que é uma possibilidade anunciada pelo próprio conceito legal de casamento.
Deixámos para último lugar a diferença sexual que a lei impõe. Diria que não constituía tema, no momento em que se reaprecia o conceito matrimonial, a questão da união legal entre pessoas do mesmo sexo. Indo mais longe, afirmar-se-á que tema central era então a igualdade social e o seu reconhecimento entre pessoas de sexo diferente. Por esta, como se viu, se clamara, esta se consagrara. O problema de saber em que medida seria legítimo o casamento de pessoas do mesmo sexo colocava-se, decerto, porque o tema tem a mesma universalidade e a mesma recorrência. Mas não tinha na época a amplitude de discussão ou mesmo de preferência na opinião pública.
Não deixarei de recordar um tema emblemático da discussão jurídica que agora se fazia. Tratava-se de recordar Ana de Castro Osório e a sua obra.
Com a implantação da República, no dealbar do século XX, a escritora Ana de Castro Osório, fortemente implicada na preparação do regime republicano, viera a publicar O Direito da Mãe. É uma obra de leitura simples. Conta a saga de uma jovem mãe de família pertencente aos meios burgueses que vivia o drama de compartilhar a vida com, um companheiro cujo espírito devasso lhe trouxera doenças venéreas; doenças que contaminavam agora a prole. Ela, a mãe de família, pretendia salvar a família, mas debatia-se com uma sociedade hostil e uma lei contrária aos seus intentos. Afinal, a Lei do divórcio, filha dilecta da República, salvara a situação.
Por 1977 a obra é recordada, mas cumpre fazer uma advertência. O Código que sai da Reforma não deixa de considerar esta situação entre os erros essenciais sobre a pessoa do cônjuge, caso a situação existisse já quando se contrai o casamento e fosse desconhecida da outra parte, por motivos compreensíveis. Só no caso da superveniência do problema marital se estaria ante uma situação reclamando a aplicação do regime da extinção da sociedade conjugal através do Divórcio.
Mas o facto de a discussão trilhar por este caminho é bem reveladora dos objectivos intrínsecos ao debate sobre o casamento e seu conteúdo. A distância a que a sociedade portuguesa se encontrava do debate actual, inclusivo do tema da homossexualidade, grita neste silêncio que rodeia o tema.
Concluímos, pois, que o Casamento, enquanto conceito legal, é frágil na construção e efeitos precípuos.
O que o mantém então? A pré-compreensão social, sem dúvida. Uma ideia que se sobrepõe às ambiguidades e às lacunas legislativas em nome de experiência, vivência e sentido dos âmbitos de mudança socialmente desejados ou pelo menos tolerados.
Ao fim e ao cabo, exprime-se aqui a capacidade de coesão, o potencial de tolerância numa sociedade em que a ruptura de concepções, ideologia e hábitos sociais entre as várias classes sociais, entre católicos e laicos, se erguia num núcleo essencial do instituto e rejeitava a hipótese de mutação radical.


3.Do casamento a outras formas de Família

Ora esta “força atractiva para o casamento” é determinante no processo de compreensão da relação que vem estabelecer-se entre ele e as relações familiares que a Lei paulatinamente integra.
Na génese destas relações não resultantes do casamento mas juridicamente produtoras de efeitos está um preceito da Reforma de 77, o artigo 2020º. Nos termos deste, o unido, pessoa solteira, viúva ou separada judicialmente de pessoas e bens terá direito a perceber alimentos da herança, posto que deles prove necessidade e os venha reclamar. Em linguagem sucessória diremos que não é este unido de

facto um herdeiro legitimário ou forçado, ou sequer um legatário, mas um mero credor da herança.

Ex: Suponha-se que A morre e deixa, nos termos da lei em vigor ao tempo, alguém com quem vivera em regime de união sem contudo ter esta sido legalmente configurada. Em tal caso, o unido de facto tem direito a perceber alimentos da herança, se bem que dentro das suas necessidades e não, em proporção adveniente da realidade da herança, do seu montante.

A norma do artigo 2020º, que conheceria forte reacção no seu tempo inicial, só anos depois recebeu um impulso decisivo, com o diploma de 1995. Decisivo, porém, no sentido de enfatizar a importância das uniões de duas pessoas, de sexos diferentes ou do mesmo sexo, revelar-se-ia a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio. Foi então que pela primeira vez se institucionalizaram, de forma sistemática e mais ampla, tipologias de direitos de que seriam titulares os sujeitos de uma União de Facto protegida.
Tanto quanto sucede com o artigo 2020º, a Lei continua sendo aqui rigorosa nos pressupostos de reconhecimento dos direitos envolvidos. Mister é que os unidos de facto estejam vivendo em comum há pelo menos dois anos. Se compararmos hoje o tempo legalmente requerido para que ocorra uma acção de divórcio litigioso, veremos que estes dois anos parecem marcar o legislador, que, afigurando-se normas algo instrumentais, técnicas, ao serviço de uma segurança exigível neste âmbito, vemos que o legislador se obstina nestes dois anos, porventura, à míngua de um critério equitativo para o feito. E apenas por esse facto, a saber, ausência de ponderações transportáveis para um discurso justificador racional, chamo a atenção para a persistência numa norma técnica. Perguntando se será este o melhor caminho; sobretudo, se é adequado o processo de legiferação nesta matéria que sobretudo requer justificação de pendor valorativo.

Ex: Dois anos, afirma a lei. Porquê? Não seria hoje mais simples a contagem de um prazo inferior, posto que se provasse ter a União em causa sido consistente, assumida? Imagine-se a hipótese de um par idoso, que vive em comum o último ano de uma vida marcada, nessa fase derradeira para um deles, por fortes emoções, decisões complexas…Qual a justificação dos “dois anos”? Probatória?
Não seria, aliás, de devolver à jurisprudência a margem de aplicação, decorrido o primeiro ano?

Com efeito, a lei das Uniões de Facto possui os seus traços de diferenciação:
_ O processo de constituição é informal e também o será o processo de dissolução. Por isso, a prova do momento de constituição e extinção é tão difícil; por isso suscita tantas dificuldades a sustentação do decurso de dois anos, pedra angular no processo aquisitivo dos direitos decorrentes da União, sobretudo por morte de um dos seus membros (artigos 2º, 3º, 8º);
_ A União de Facto aceita-se entre pessoas do mesmo sexo (artigos 1º, 7º). Os direitos, porém, sofrem aqui uma compressão. Sucede que os unidos do mesmo sexo não poderão adoptar (de novo, artigo 7º);
_ Os direitos que a Lei consagra são sobretudo de natureza social e laboral: gozo de férias em conjunto, com articulação dos correspectivos mapas para o efeito, direito à casa de morada de família, finda a união, posto que prove o membro abandonado ou sobrevivo não possuir outro local de residência e durante período que a lei determina, como igualmente determina as condições do exercício do direito (artigos 3º, 4º, 5º, 6º).
A Lei não apresenta um critério de determinação do grau de proximidade entre os unidos, a sustentar a relevância e a própria existência da União. O critério, em todo o caso, decorre da ideia que percorre a Lei 6/2001, sobre as Uniões Parafamiliares e bem assim, o espírito básico do casamento. Trata-se de um projecto de vida em intimidade e partilha material e espiritual, não de carácter fortuito antes com foros de persistência. Não serão concebíveis, naturalmente, uniões de facto sobrepostas, cumulativas, por parte da ou das mesmas pessoas. O legislador dispensa referências ao ponto restritivo, já que os princípios gerais de Direito balizam esta proibição e a sustentam, aliás, do mesmo passo.
Chamo a atenção para este aspecto, aliás cada vez mais complexo. Será que poderemos apreender os traços jurídicos da União de Facto através de um conjunto de deveres pessoais entre os unidos?
Uma hipótese que acode é a comparação com o casamento. Dir-se-ia então que talvez esses deveres pessoais do casamento fossem o padrão a ter em conta neste outro caso, ainda que com uma exigência de menor intensidade (um dever de respeito”menor”; um dever de assistência “menor”) ou então, suprimidos alguns e deixados sobreviver outros.
Mas não creio. A contra-imagem da União de Facto não é o Casamento. Justamente, une-se de facto, as mais das vezes, quem pretende uma alternativa ao casamento e não um casamento com…”capitis diminutio”.


Comparações entre os vários tipos de instituições familiares

Mister se torna pois estabelecer comparação entre os núcleos essenciais dos direitos e deveres consagrados para as situações matrimoniais e as outras, a fim de poder concluir acerca da afinidade essencial entre os agregados a que aludimos e a lei contemplou. Afora diversidades evidentes e bem vincadas, compete apurar acerca da existência de um estro de comunicabilidade com que sempre se considerou inerente à união entre duas pessoas e que o casamento exprimia sem suscitar discussão.
Façamos então uma comparação das diferenças essenciais entre casamento e uniões informais e procure-se um tertium comparationis.
_ a mutação relativa à possibilidade de inclusão de uniões entre pessoas do mesmo sexo, que irrompe na Lei 7/2001. Antes não era apenas omissa, representava um caminho claramente ao arrepio dos princípios sociais vigentes e dominantes;
A diferença constitui ponto obrigatório de reflexão. Por um lado, a possibilidade de miscigenação de duas formas de sexualidade paradigmaticamente distintas suscita a ideia de que, diferentemente da opção legislativa de 77 e suas antecessoras, se faz agora incursão num mundo de afectos ou pelo menos de formas de intimidade em que a libido de alguma forma se deixou esbater. Não terá pelo menos uma presença dominante. Assim, o legislador permite um modelo de convivência nos antípodas da sua manifestação habitual, tal como acentua a precariedade das relações íntimas entre duas pessoas.
O tipo de afecto que a lei agora reconhece não tem o mesmo condicionamento biológico nem a raiz cultural antes conhecida. A sua consideração numa mesma ordem de padrão familiar, mesmo em sentido amplo, inicia um processo de alteração do núcleo familiar. Por outro lado, marcando pontos numa direcção de sentido inverso, a proibição de adoptar já referenciada e imposta a casais com esta fisionomia indicia a sua desconsideração como lugar de integração de seres em processo de desenvolvimento, identificação social.
Mas não é líquido que a ordem de argumentos do legislador nesta sede proibitiva da adopção em tais casos seja um argumento no sentido de afastar do enredo familiar os tipos de instituições em questão.
Não se afigura argumento no sentido de irradiar do modelo familiar as famílias homossexuais uma tal proibição.
Por um lado, o afastamento da adopção que a lei impõe pode_ é argumento sustentável _ atender apenas ao interesse dos menores; pode representar uma medida de cautela, preventiva, face ao seu direito ao desenvolvimento pessoal. Ou seja: na dúvida entre a perfeita sanidade decorrente de uma situação assim e perigos eventuais para a estruturação da personalidade, o legislador opta pela prudência de uma solução “típica” e não entrega o menor a um quadro familiar que duvida potencie malefícios, ainda que subtis, à estruturação da criança, do jovem. Isto não significará, contudo, a negação da intimidade da relação em causa e muito menos, a sua homologia com as formas de convívio amoroso ou afectivo tradicional. Também marido e mulher poderão perder o exercício de responsabilidades parentais sem que isso questione a sobrevivência do casamento que celebraram.
Aliás: veremos que a procriação não é escopo do casamento. Nem em idade fértil, nem em qualquer outra fase da vida…O legislador não rodeia o problema de eterna carência de solução, relativo ao casamento de pessoas idosas (um forte argumento esgrimido, veremos, pelos homossexuais que clamam pela semelhança entre a sua situação e esta outra).
_ A vida em União de Facto configura-se juridicamente como um alter ego da vida matrimonial. A celebração despe-se de solenidade, prescinde de publicidade. Os órgãos públicos não estão aqui presentes. E isto transforma o decurso de dois anos, o prazo necessário, como vimos, para o seu carácter legal protegido, uma verdadeira probatio diabólica.
É curiosamente a Lei sobre Medidas de Protecção de Pessoas que Vivam em Economia Comum a que mais se aproxima da explicitação do critério fundamentador. Afirma a necessidade de “uma vivência em comum de entreajuda e partilha de recursos” a criar o núcleo das duas figuras que então irrompem.
É certo que nesta última situação da Lei nº 6, os membros do agregado não têm uma relação afectiva do tipo indiciado no caso das Uniões de Facto. Mas em todo o caso a linguagem dos afectos nasce legislativamente, depois do Livro da Família e fora do seu âmbito, aqui.
Pergunto, a terminar: e a diferença entre direitos e deveres na União de Facto e no Casamento?
A resposta afigura-se linear. Sendo a União de facto uma realidade institucionalizada que se baseia na vontade de construir um agregado familiar menos forte nos seus efeitos do que o agregado matrimonial, compreende-se que haja reflexos desta opção em todos os aspectos. E



os pessoais terão aqui uma proeminência evidente. Deveres como o de coabitação, fidelidade, cooperação, assistência, respeito, serão inerentes à relação dos unidos de facto; porém, com uma densidade inferior. Situam-se entre os deveres gerais de urbanidade de que alguns deles decorrem e os deveres conjugais, mas situam-se num plano diferente, mais esbatido. Quando se devam considerar quebrados? Sempre que o comportamento em apreciação manifeste forte probabilidade de ruptura do laço construído. Esta a diferença fundamental face ao casamento. No plano daquele, admite-se que mesmo após uma ruptura de deveres tenha o casamento condições para se manter, cabendo ao eventual interessado em intentar acção de ruptura a prova de que o comportamento foi não apenas episodicamente lesivo, mas destrutivo, da sociedade conjugal. Em sede de União de Facto, a destruição da mesma presume-se, ante terceiros, logo que se manifestem comportamentos que indiciem desconformidade com os deveres básicos. Pois o respeito de que a lei rodeia a vivência no recato de uma esfera privada tem como contrapartida que, a nível público, valha tudo aquilo que os fautores da União deixam transparecer. A segurança jurídica sustenta-se nesta exigência.





Aula nº 4

O problema da extensão dos efeitos jurídicos das Uniões de Facto na doutrina actual

Introdução
Poderá afirmar-se que a nossa ordem social aceita as regras legais em vigor em clima de identificação, sintonia com o seu conteúdo. A discussão marca a diferença entre aceitar ou não um regime mais denso para as formas de união homossexual. Não se questiona de um modo geral que produzam efeito as Uniões de Facto, assim como os efeitos que produzem.
Mais: os debates recentemente ocorridos no campo político, social, jurídico, deixaram transparecer uma mensagem de receptividade, por parte dos representantes das forças partidárias com legitimidade conferida para o efeito, de propor legislação mais abrangente, mais ambiciosa neste plano.
Chamo a depor, a título de exemplo, uma das grandes diferenças. Verifica-se no plano sucessório. O unido de facto sobrevivo não é sucessível, no sentido rigoroso da expressão; e mesmo o seu entendimento enquanto “legatário legítimo”, que mais adiante ponderaremos, a propósito das relações entre os direitos da Família e Sucessões, mais não consegue do que deixar transparecer a enorme debilidade da sua situação após a morte do companheiro.

Ex: Suponhamos que A vivia com B, que entretanto morre. A União de Facto durou mais de dois anos e a casa de morada pertencia ao falecido.
De que direitos em relação a essa casa de morada é A titular?
E deveremos considerá-lo um sucessível de B?

Diferentemente do cônjuge, ele não surge como herdeiro. Recebe coisa certa (um usufruto da casa de morada) e datada. A expressão que procura dignificar a sua situação, a adjectivação do legado como legítimo, colhe efeitos ao arrepio desse seu propósito: há, de facto, voluntarismos que se mostram contraproducentes e este é decerto um deles. Legatário legítimo de segundo plano? E em termos práticos; ganha-se alguma coisa com isso?
Já a integração deste unido de facto entre os sujeitos elencados no artigo 496º do Código Civil se afigura, não só mais fácil, como de uma justiça evidente.
Ex: A, unido de facto a B, assiste ao acidente de viação em que este morre, o que lhe provoca grande transtorno, e, na sequência do evento, solicitar ressarcimento por danos morais invocando o preceito, quid júris?

Aqui, em sede de indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima, o direito cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e a vários outros parentes, seguindo uma lógica de proximidade (linha recta; proximidade na linha colateral). De fora está o unido de facto. Deveria ser assim? A jurisprudência já abordou o problema. Creio que o sentido da norma permite incluir aquele que viva em situação idêntica à do cônjuge, integrando-o por extensão analógica nesta cadeia do artigo 496º. Afinal, o ponto essencial que aqui se contempla é o ressarcimento que o Direito reconhece como direito, àqueles cuja proximidade advém da relação familiar e sofrem a perda do ente perdido. Este critério de justiça que chama a depor a afectividade não terá como afastar o unido de facto sobrevivo.
Claro que uma interpretação estrita do texto da lei não iria nunca por aí. Trata-se de um tema polémico, juridicamente. As premissas enunciadas são apenas um enunciado dos tópicos da argumentação.
Por último, aventa-se um argumento de não menor interesse. A par deste critério de justiça aventado, coloca-se a segurança de terceiros, as expectativas que incidem sobre os obrigados a indemnizar. Ora, pensando a defesa do seu direito, seremos tentados a concluir que, não colhendo a lei os unidos de facto nesta sede, não se justifica que o venham a ser, onerando quem não contava com este acervo de credores.
Mas, ainda assim, creio que corre a melhor solução do lado do alargamento dos destinatários do direito ao ressarcimento. Pois não se admite com “pré-aviso” quem é destinatário do direito de compensação, mas apenas se cura da existência deste direito dentro de um acervo aliás amplo de contempláveis.
As situações referidas são paradigmáticas da dificuldade do enquadramento legislativo do regime da União de Facto perante outros institutos legais. Não pretendem, como se frisou, esgotar o problema, mas demonstrar em todo o caso que ele é hoje muito relevante, identificando alguns dos seus ponto

O pensamento da Igreja Católica sobre as Uniões de Facto nos primeiríssimos anos do milénio
Coloco a questão porque ela corresponde a uma evolução sensível verificada nos últimos anos. Com efeito, já neste milénio a Igreja Católica verberou contra as Uniões de Facto. Os textos de reflexão que se publicaram não se dirigiam a legislações concretas. Visavam o problema em termos ecuménicos e alertavam para os, em seu entender, malefícios daí decorrentes.
Chamo-vos a atenção para duas objecções que são importantes do ponto de vista da argumentação jurídica.
O primeiro respeita à filiação. Em nome dos direitos dos filhos, menores, sustentou o pensamento católico que a União de Facto redundaria numa violação da sua dignidade, já que os privaria do processo de desenvolvimento no âmbito da família socialmente legitimada pelo reconhecimento social e capaz de se assumir como tal.
E mesmo aí onde o argumento não surge com este sentido enfático, enunciam vozes de grande relevo argumentos em prol da necessidade de dotar a família cujo processo de constituição obedeceu a critérios formais. João Paulo II escreveu páginas belíssimas e de grande valor teórico e argumentativo sobre o ponto.
Creio que o argumento é “forçado”. Parece-me, com efeito, que a dignidade humana e seu reconhecimento não dependem de uma identificação do modelo social em que a educação é conferida. Dependerá, sim, da circunstância de ser tal educação conferida, num quadro social adequado, que poderá assumir perfis variados. Trata-se de planos diferentes, outorgar educação e enquadramento institucional desta educação; reconhecimento do direito dos menores a um ambiente que confira meios salutares de desenvolvimento e identificação estrita desse meio com a família em sentido biológico.
Mas o argumento fulcral aventado desenvolve-se, creio, noutra direcção. Trata-se da suspeita da consistência (pela tendencial precariedade; pelo circunstancialismo muitas vezes eivado de factores pontuais e que rapidamente correm o risco de se diluir) das Uniões de Facto, por regra comparativamente superior às fragilidades do casamento.
A realidade portuguesa mostra, em todo o caso, que opta pela União de Facto um acervo importante de pessoas que ultrapassou a idade fértil. Que nos casos em que isso não acontece, a opção é sustentada em muitos casos por uma decisão que se enquadra em termos de maturação e até cultura que levam a presumir a reflexão, ponderação acima de muitas outras situações. Enfim, que os casos de pobreza e sobretudo miséria que nos antípodas destes, ditam muitas Uniões de Facto, não veriam alteração nas consequências sobre a educação dos filhos só através da mediação do matrimónio.
Afigura-se, enfim, muito problemático este esgrimir do argumento de que a União de Facto não só não possui um espaço ético próprio, como ainda, que redunda, nos casos em que se verifique procriação no seu seio, uma violação dos direitos do menor assim nascido.
Há um espaço ético próprio para a UF. Decorre do direito à liberdade, do direito a não casar, posto que assim o entenda exercer qualquer pessoa. O casamento é uma opção sacramental, não é um dever implícito a cada católico. Quanto aos filhos nascidos em União de Facto, não impenderá sobre eles, num Estado que não sustente esquemas férreos de censura, o anátema da origem. A lei portuguesa obriga, como adiante se verá, a que a circunstância que rodeia o nascimento seja depurada, no acto de registo, de qualquer explicitação das circunstâncias que a envolveram.

O caminho das Uniões de Facto: entre a expansão e a cristalização/retracção
Porém, irradiar o argumentário aqui expendido não significa esvaziar as Uniões de Facto de um fundamento ético e social sólido. Diferentemente, trata-se de, através de um breve excurso pela sua evolução, descortinar em que medida devem ser analisadas enquanto contributos para a coesão familiar na sociedade. Em que medida uma sua consideração axiológica sustentada no enquadramento que lhe proporciona a doutrina mais conforme à consideração e defesa dos Direitos Humanos, aos princípios sociais em que a ordem essencialmente se escora, permitirão, não apenas a sua sobrevivência enquanto plano familiar, mas, ainda além disso, o seu eventual desenvolvimento enquanto fontes de efeitos jurídicos novos. Estes novos efeitos dependerão da estabilidade da instituição, da sua aceitação geral, do grau de consenso que se logre gerar a seu respeito.
Ora, sabemos a que ponto é mérito do legislador contemporâneo traduzir a mensagem positiva das Uniões de Facto sociais. Acrescentaria: foi, antes, mérito da fisionomia com que estas se estabeleceram impor-se normativamente com veemência.
A lei falava, pejorativamente como dissemos, de concubinato. Hoje a expressão evita-se sempre que envolva calúnia. O critério de avaliação modificou-se e considera-se “errado”, ao arrepio de bons costumes é o uso de expressões que revelem essa hostilidade deslocada.
Mas é preciso ir mais longe e ver em que medida um núcleo de boas práticas, bons princípios, esteja contribuindo para o incremento jurídico das Uniões de Facto.

O problema nas soluções jurídicas mais debatidas acerca dos deveres pessoais. O regime jurídico e as suas pistas

Tomamos alguns pontos de reflexão a partir do seu regime jurídico. Há aspectos deste regime que já foram apontados. Sistematizamos agora outros cuja importância é evidente.
Trata-se dos deveres pessoais. A lei não desenvolve aqui, contrariamente ao que vemos acontecer em sede de Casamento, direitos e obrigações de feição pessoal obrigando as partes envolvidas. À primeira vista, decorre da interpretação sistemática do diploma que o objectivo terá sido irradiar tais deveres: de lealdade, coabitação, assistência…
Mas a conclusão seria precipitada.
Desde logo, porque o legislador antecipa ponto de vista adverso, ao afirmar que a cessação da coabitação porá termos à União de Facto. Mas o problema fundamental situa-se em relação aos outros deveres pessoais. Terão eles, pergunta-se, densidade equivalente à que exibem no Casamento?
Vejamos o dever de assistência, uma vez que a lei parece clarificar aqui o seu critério.
Há um dever de assistência na União de Facto que justifica o gozo em comum de férias, a entre - ajuda legalmente favorecida pelas leis laborais quando é necessário acompanhamento na saúde pelo unido de facto. Apenas estas regras demonstrariam a força vinculativa do dever de assistência que inspira a lei, por muito frágil que a sua garantia se revele.
É certo que esta injunção não se imporá nos mesmos termos a todos os deveres pessoais. O dever de lealdade é um dever que dificilmente concebemos excluível na UF; em todo o caso admitirá uma densidade menor: não é garantido que tenha de a possuir nos termos por regra identificados para o casamento. Resta, porém, saber se a actual legislação matrimonial, após a integração dos fundamentos e procedimentos que rodeiam o Divórcio, continua a ir no mesmo caminho. O encurtamento dos prazos de vigência de instituições traz consigo uma correspectiva fase de assumida turbulência, que aqui ocorrerá naquele prazo confinado de dois anos, findo o qual se pode requerer o termo da sociedade conjugal. Pergunta-se, então, como aceitar uma apodíctica “lealdade” prolongada e estável, se a lei permite mutações tão profundas no espaço de dois anos?
Há uma pré-compreensão da lei actual a favorecer, creio_ terminando este nosso breve ensaio de colocação do problema _o alargamento dos direitos que as Uniões de Facto conglobam. Foi em nome da sua dignificação e do reforço de garantias sociais que o legislador ousou avançar. Creio que esta realidade é argumento correcto no sentido da conclusão de que a enumeração continente destas normas, o artigo 3º, estará muito longe de ser uma norma fechada. Vejo-a como norma abrangedora de uma enumeração exemplificativa dos direitos dos unidos de facto. Em todo o caso, não perdendo o horizonte da diversidade que separa este diploma e o do Matrimónio.
É uma manifestação de tibieza, este arrimo argumentativo? Acredito que possa ser interpretado assim. Mas considero que em boa hermenêutica, não deve.
Há, na raiz da União de Facto, várias espécies de opções de vida, sabemo-lo. Alguns unidos de facto não têm a cultura da institucionalização dos laços afectivos na esfera pública. Outros optam por uma fase experimental. Enfim, há casais que não prendem a experiência do casamento e por razões que relevam das suas opções de vida, com as quais não temos o direito de lidar. Um segundo, terceiro (primeiro, mesmo) casamento pode trazer problemas financeiros, sucessórios, mas também no plano do convívio familiar quotidiano. Por opção não casam estas pessoas, o que é obviamente respeitável. Mas sendo assim, ocorre perguntar com que legitimidade impor, portas dentro das uniões mais lassas que voluntariamente constituam, um modelo decalcado do modelo matrimonial. É certo que no plano jurídico o modelo matrimonial constitui um quadro rector. Mas um quadro rector não deverá confundir-se com um leque de soluções de equiparação. No núcleo fundamental das relações pessoais compreende-se que a relação conjugal tenha pressupostos mais fortes. Dir-se-á mesmo: representaria um contra-senso admitir que os não tivesse. Pois a diferença das opções faz presumir uma concomitante diferença de consequências e seria um erro deturpar esta cautela interpretativa, no cadinho de uma equiparação precipitada e por isso, grosseira.

Casamento e União de Facto: o núcleo pessoal exigível em sede probatória
E abandono por um tempo este mundo do Parentesco para voltar àquelas formas de Família que se revelam menos ortodoxas. Penso nos pressupostos da União de Facto, por comparação com os do Matrimónio, a forma de união intersubjectiva por excelência.
A razão deste breve regresso deve-se ao necessário apuramento do grau de consolidação que se deve exigir à relação entre os unidos de facto, de modo a que as consequências jurídicas da União operem.
_ Suponhamos que Diana e Fernando casam, combinando à partida que interpoladamente viverão separados e se comportarão pondo de parte vínculos conjugais. Durante uma dessas fases, Fernanda Morre.
Não se põe em causa a subsistência do casamento, que entre ambos vigorava nos termos de uma vontade pessoalmente conformada e se submetia ao regime formal próprio.
Mas suponhamos agora que Diana e Fernando são unidos de facto, meramente. E que fizeram acordo idêntico. Quando morre Diana, tem Fernando direito, por hipótese, à casa de morada de família, como tendo vivido em União de Facto protegida?
Em princípio, parece correcto afirmar que sim. Pois terá sentido conferir menos plenitude de efeitos a este tipo de união, que se pretendeu mais informal, “descomprometida”, do que sucede com a união formal por excelência?
Direi que Diogo e Fernando casados assumem publicamente o seu compromisso _ na esfera pública, através do contrato que celebram. Isto projecta na comunidade um reconhecimento directo da situação/estatuto pessoal de ambos, de tal modo que, não manifestando o casal outra vontade. Será o Casamento e os seus efeitos que a sociedade esperará acolher.
Diana e Fernando, unidos de facto, exibem uma atitude de indiferença ante a esfera pública, ao menos, no que faz secante com os elementos essenciais da sua relação de União. O ónus de provar a existência de direitos decorrentes desta corre a cada passo, a cada momento da existência da União de Facto. É a opção do casal; é o modo de respeitar, em plenitude, as consequências jurídicas.
O mesmo tipo de argumentação se pode chamar a depor a propósito da famigerada aplicação do artigo 496º do Código Civil ao unido de facto sobrevivo.
Se bem recordam o exemplo, que não consta em pormenor destes “Sumários” mas foi discutido nas nossas aulas, questionámos a bondade de uma interpretação restrita, ou literal, da lei. Uma interpretação que permita ao unido de facto assumir o lugar de um cônjuge sobrevivo inexistente, muito à frente de parentes afastados, em nome da dor que com toda a probabilidade é muito mais intensa do que a dor de um daqueles.
Que dizer? É indiscutível a maior proximidade do espírito da lei deste unido de facto, do que a de parentes afastados. Por outro lado, o argumento demolidor do direito dos unidos de facto a perceber danos morais, que será a total “surpresa” dos destinatários do ressarcimento, a violação consequente do princípio da segurança jurídica, não tem uma densidade evidente. Com efeito, terceiros adstritos ao pagamento da indemnização dificilmente terão mais do que uma ideia remota acerca do núcleo dos visados: assim como a expectativa destes será lassa, na maioria dos casos.
Em que ficamos?
Diria que a lei não privilegia aqui, nem uma relação concreta de parentesco ou outra, nem de proximidade. Olha a existência da dor e do direito a compensá-la face aos principais visados. Publica ou privadamente assumidos, os unidos de facto estão aqui. Deverão perceber a indemnização, nos termos que a lei estipulou para o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens. Penso que as regras gerais do Código Civil em matéria de integração de lacunas (cfr. a “norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar de acordo com o espírito do sistema”) resolvem legitimamente o problema. Não será mister criar legislação específica para o caso: a solução decorre já da ordem jurídica portuguesa.



Por último, um paradoxo. Acrescento um ponto que tanto quanto o avalio, é uma irrelevância. É o caso de alguém cuja UF teve início antes dos 16 anos e os perfaz agora. Penso que uma condição ilegal…não deixa de ser uma condição ilegal. Atribuir-se-lhe-á todo o benefício da irrelevância.
Temos de assentar em que o eixo comparativo com o casamento decorre da recepção, que devem as UF fazer, das normas em que se mostra ponderado o interesse público e pessoal. Bem como da recepção das regras de natureza análoga, que por essa analogia, e só por ela, merecem o benefício da inclusão pela UF. É o caso dos direitos pessoais, na medida em que se aproximem dos fins que a sua inserção contempla no casamento. A ponderação patrimonial é mais suscitada pelo acicate do caso concreto, mais “tópica”, afinal.
Creio serem estes os parâmetros a atender. E, na cúspide, resultados socialmente estáveis.



Aula nº 5

Fontes Constitucionais: preliminares
E analisada a Família enquanto objecto do Curso, revertemos à matéria das suas fontes.
Segundo parte muito expressiva da doutrina, pegamos agora e só agora nos primeiros tijolos da casa. Pois a Constituição é a cúspide do sistema e cumpre olhá-lo a partir dessa localização cimeira.



Não fazemos aqui a opção dominante em muita doutrina jusfamiliar. Penso, a título de exemplo, na apresentação que muitos estudos alemães fazem: é a matéria do enquadramento constitucional que apresenta aí foros de primazia, é dela que se parte para o subsequente estudo de outras matérias, como o Casamento, a Filiação. Se forem analisar qualquer Manual de Direito da Família recente, encontram esta estrutura.
Mas a realidade que examinam é outra e tem, neste ponto, divergências que me parecem importantes. A Constituição Alemã é uma norma fundamental da Democracia, tal como a nossa Constituição de 76. Porém, o lastro jurídico familiar não tem, nesse Direito, as características que vemos congregar na ordem jurídica portuguesa. Não se verifica o mesmo quadro de articulação entre o casamento civil e as regras canónicas a que sempre, ao longo dos séculos (pensando tão só na identificação do país, no dealbar da Monarquia) marcou a ordem jurídica matrimonial. Esta articulação exprimiu significações, consequências jurídicas diferentes, no tempo da sua vigência. Mas existe em linha de continuidade; uma continuidade à luz da qual é compreensível a incorporação de elementos que influenciarão, quer a instituição Matrimónio, quer a interpretação de algumas das normas ora colocadas em vigor, sem que isso distorça um processo hermenêutico escorreito.
Relembramos, pois, em jeito de síntese, porém, que a favor de uma consideração simultânea, às vezes dialéctica, dos conceitos de Família/Casamento depõe, entre nós, a especificidade da história dogmática. A Constituição de 76 rompe com o regime ditatorial e suas manifestações e nesse sentido, aduzimos, é uma 1ª Constituição Histórica da Democracia. Mas muitas instituições de antanho marcam ainda o seu significado: porque se lhes sobrepôs um sentido que perdurou além daquele de natureza política; porque se deixam permear da realidade cultural do país.
Estão neste caso todos os conceitos em que a identificação entre sentido social, religioso e jurídico se manifestavam em pontos fulcrais. O casamento português é um representante dilecto desta estirpe.
É certo que sempre, ou quase (direi: sempre, após a entrada em vigor do Código de Seabra) tenderam casamento católico e civil (laico) para a separação, mas num quadro social de convergência em que o primado jurídico do casamento católico se faz sentir com toda a pujança. É igualmente certo que a Constituição esbate este quadro, tal como impõe uma recriação das normas matrimoniais no plano de uma identificação laica que trará consigo a articulação com novos direitos e seu cumprimento (dignidade de todos os seres humanos; igualdade perante a lei; emancipação dos menores enquanto personagens dentro, também, do quadro familiar).
Porém, apesar deste influxo do gume que sulca a importância dos Direitos Humanos, permanece uma raiz na pré-compreensão do instituto, impeditiva de um olhar jurídico isento e mais, correcto, sobre o casamento, fora desta sua articulação social de antanho.
E por isso só agora a ela vamos. Assumindo, naturalmente, a incumbência de retirar todas as consequências que a fonte constitucional impõe.
A compreensão dos modos de incidência do Direito Canónico sobre o Casamento supõe o enquadramento deste enquanto instituição jurídica complexa e caracterizada por um regime jurídico cujos meandros se impõe descortinar.

Os pressupostos do Casamento na Constituição

Assim, diremos que o contrato de casamento não é apenas solene, é igualmente submetido a um regime normativo muito denso que adapta as suas possibilidades de aplicação de acordo com vários circunstancialismos. Não só a forma de celebração impõe mecanismos

próprios, como é certo estar vedado em muitas circunstâncias a possibilidade de casar. Há assim impedimentos absolutos, ou seja, que se impõem sempre e face a todas as outras pessoas, como impedimentos relativos, que advêm de relações particulares entre algumas dessas pessoas.
Concretizando: a demência, a menoridade abaixo dos dezasseis anos, são impedimentos absolutos. Está em causa, como fundamento da recusa legal, um aspecto inerente à personalidade do eventual nubente, aspecto esse que o legislador identifica como inultrapassável em todos os seres humanos e face a todos os seres humanos. Casar abaixo dos 16 anos foi possibilidade abertas às raparigas, em nome de alegada maturidade; mas contra os meios de evolução da sua educação em todos os sentidos, da sua preparação social e profissional. Era uma espécie de transferência de tutelas, a patriarcal e a marital, ou, mais problemática ainda, a inserção abrupta num meio familiar novo, sob a influência de um triângulo “suspeito” nas configurações e consequências: marido sogro e sogra.
Mais complexa será a possibilidade que a lei igualmente veda de admitir o casamento de seres humanos com perturbação mental, ainda que, segundo a lei, que pede aqui de empréstimo a expressão do Direito Canónico, “durante um intervalo lúcido”.
A lei do Estado não permite ir por aí. O casamento de portadores de anomalia psíquica não esmorece em gravidade pela circunstância de ocorrer durante estes intervalos. Nem razões eugénicas, nem o diagnóstico do doente permitem sustentar em confiança e segurança acrescidas uma tal relação. Por isso, não a aceita a lei.
Mas há impedimentos de outro tipo, que se tornam de ponderação mais apelativa pela relação social que têm inerente. Refiro os impedimentos relativos, aqueles que não arredam o matrimónio de todas as suas possibilidades de celebração, mas apenas, daquelas possibilidades que envolvam determinadas pessoas
A poderá casar. É maior de 16 anos, imputável. No entanto, jamais celebrará, segundo a lei, casamento com seus pais, avós, ou quaisquer outros ascendentes ou descendentes na linha recta. Como está impedido de casar com os irmãos (colaterais no 2º grau) e, em princípio, com sobrinho ou tio (colateral no 3º grau).
Parece clara a opção: intervêm a moral social, as razões eugénicas no sentido desta proibição. E, no entanto, resta-nos uma reflexão a este respeito. Imaginemos, quer o parentesco na linha recta que em dada situação se verifica não é socialmente reconhecido, e muito menos o foi alguma vez pelos nubentes, que sempre viveram apartados do convívio respectivo, não tendo qualquer conhecimento da real situação jurídica que os entrelaça. Quid Juris?
A lei não excepciona tais casos. Eça de Queirós, (também) aqui, manteria a sua actualidade: Carlos Eduardo e Maria Eduarda da Maia não poderiam encontrar paliativos legais para o seu relacionamento amoroso, pois a inocência não lhes retirava a qualidade familiar e as implicações jurídicas decorrentes.
Razões para um discurso legal justificador? Moral social, receio de operar derrogações que possam desvirtuar a linearidade de uma regra cuja existência contém a plasmagem de um princípio e inerente, um aviso a que o legislador não permite concessões.
E a relação entre tios e sobrinhos? A verificação estatística mostra a que ponto se revela parcimoniosa na lei portuguesa. Estes casamentos, raros, não parecem esconjurar, na desmotivação legislativa, o aspecto eugénico. Mas muito dificilmente seriam concebíveis fora do âmbito de uma família alargada.
Temos, pois, um acervo de fundamentos da invalidade matrimonial que mostra não ser esta uma sede em que a lei portuguesa vinca um modelo de autonomia face às demais. Inversamente, o modelo é comum, dilui-se, nos seus principais traços, dos modelos que encontramos em outros países da União Europeia, de Língua Latina na América.
O problema estará então em saber que elementos destas regras são submetíveis à consideração dos nossos tribunais, ou antes, totalmente devolvidas aos tribunais eclesiásticos.
A Constituição refere que a lei civil é o lugar de acolhimento das normas de constituição, dissolução e efeitos do casamento. Parece que a porta se abre ao Direito Canónico através de uma subtileza argumentativa. Pois que o processo preliminar de constituição e as suas consequências seriam um alliud que se arreda deste critério de submissão.
Mas será assim? As condições de validade marcam a fisionomia jurídica de qualquer negócio jurídico. O processo de reconhecimento da sua eventual validade é crucial neste plano. Não vejo como sustentar que os efeitos da constituição do casamento devam separar-se dos restantes efeitos da relação matrimonial.
No entanto, dois aspectos são chamados a depor agora, em sede de outorga ou não do juízo da oportunidade de um critério inválido aos tribunais judiciais.
Em primeiro lugar. Os critérios fundantes desta validade são homogéneos. Assim acontece na ordem jurídica portuguesa desde o século XIX, vigorava o Código de Seabra. Já aludimos a este ponto, sobre o qual convém tornar. Será a lei ordinária a influenciar o Direito Canónico neste ponto, cristalizando um fenómeno de diálogo entre o braço civil e o braço eclesiástico em que este não deixava por isso, sabemo-lo, de deter a parte mais importante.
Ora, esta influência permeia o Direito da Igreja, permite que venha imbuir-se, neste ponto, de uma afinidade laica. Não haverá razões, muito tempo depois da aplicação inicial do critério, para suspeitar da identidade essencial que exibe face ao direito português.















Aula nº 6
Fontes Constitucionais do Direito da Família (continuação)

o casamento civil e católico no Código de Seabra à República

Recordam as personagens que a marcaram no Direito das Mulheres, ou melhor, na perseguição do sonho por esse Direito que não chegaram a conhecer: Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Angelino, mais recentemente, Elina Guimarães. E Isabel Telo de Magalhães Collaço.

A República, a Lei do Divórcio, os “desencantos”

Imaginamos e acertamos se pensarmos as mais antigas do grupo, que viveram a implantação da República, rejubilar com o divórcio católico. Ele é decretado em 1910, num intuito que foi apresentado como significativo passo de aproximação aos direitos das mulheres, ao reconhecimento da sua cidadania.
Sucede, porém, que se esse foi alguma vez o objectivo do Divórcio, ficou por aí. Não se reconheceram consequentemente o direito de voto das mulheres, nem muitos outros. No fim da vida, Ana de Castro Osório proferia palavras amargas contra o movimento político republicano, em que tanto acreditara.
Concluímos, pois, que da Lei do Divórcio fica na sociedade portuguesa a expressão de um arrimo de hostilidade para com a Igreja. A sociedade, essa continuou casando catolicamente por vezes às escondidas, sendo difícil vislumbrar as cifras reais do casamento católico nestes anos que duram até 1940.

Concordata com a Santa Sé, 1940
Mas é aí que, com a Concordata celebrada com a Santa Sé, o Estado Novo depõe o regime republicano e altera a situação.

_ O primeiro ponto em causa na ordem de considerações é o divórcio católico, agora proibido. Compreende-se que é e será a questão fulcral neste contraponto entre as diferentes aplicações dos direitos católico e laico e as hierarquias que exprimem ante a sociedade. Proibindo o divórcio católico, num país católico onde a própria tradição favorece a opção matrimonial, faz-se sentir a força real de um sistema normativo. Neste caso, o da Igreja. Essa proibição acontece.
_ Em outras matérias, semelhantes, aliás, às que entrevimos ao tempo do Código de Seabra, manifesta-se a importância do casamento civil. O regime de invalidades continua a merecer a aceitação da Igreja, como acontece com o regime de impedimentos.
_ Desta vez, porém, a reacção da sociedade portuguesa faz-se sentir com outro fulgor. Pelos anos 50 proliferam separações, seguidas de uniões de facto no seio das quais nascem filhos “fora do casamento”, “ilegítimos”, nos termos da Constituição e da lei. A situação atinge aqui e além o povo, os mais humildes, mas impende fortemente sobre uma classe que, não abdicando do seu catolicismo, milita os princípios de uma nova Igreja. Exprime-se o clima do Concílio Vaticano II. A sociedade portuguesa inconforma-se.
A literatura vai por aí. Luís de Stau Monteiro escreve um livro que incomoda. Outros se seguem.

O Acto Adicional, 1975

_ Vimos que o 25 de Abril descomprime este plano de desfasamento entre o poder novo e a Igreja na sua expressão de 1940. Entra em vigor, em 1975, o Acto Adicional à Concordata e repõe a possibilidade de decretamento do divórcio pelos tribunais portugueses.
Esta nova situação reveste uma particular importância, porque não é apenas a alteração que o Acto Adicional à Concordata produz que vem trazer problemas intrincados à inesgotável teia de relações complexas entre as leis da Igreja e do Estado. Com efeito, a entrada em vigor da Constituição da República de 1976 vem impor, no artigo 36º.2, a submissão ao legislador laico das matérias relativas ao processo de constituição, efeitos e dissolução do casamento por divórcio. E, se a questão da dissolução surgira entretanto resolvida, o mesmo não corre a benefício de várias outras. Sabe-se que o Código Canónico contém a figura do casamento rato e não consumado, cujo efeito não passa pela invalidade mas pela dissolução. Tudo está em saber qual a atitude do Estado português: aplicar automaticamente a norma, aceitar o acrisolamento do seu regime no universo do direito matrimonial da Igreja, ou antes impor a voz do direito português, rejeitando assim uma tal aplicação e consequente reconhecimento.
Sabe-se que a matéria logo dividiu a doutrina.
_ Os argumentos mais relevantes aduzidos em favor da autonomia da Igreja e da sua capacidade para impor as suas normas adveio dos autores próximos da tese segundo a qual a importância da Igreja na sociedade portuguesa não decorre apenas da Constituição, mas de uma tradição ancestral e de um peso secular condicionadores e fundamentadores a um tempo de um regime específico face a outras entidades estaduais, e fundamentadoras de um regime que seria de clara preponderância nessa hierarquia necessariamente merecedora de reconhecimento.
_ Noutro sentido, ouvem-se também vozes. E agora não há legitimidade para sobrepor, ante a clareza do texto do artigo 36º e sobretudo, ante a importância reconhecida à Santa Sé, configurada entre os Estados com quem tem relações o Estado português, nenhum elemento que traduza supremacia sua face aos demais estados com os quais Portugal se relaciona. Sendo assim, não se aplicariam na ordem jurídica portuguesa decisões que não passassem pelo crivo da lei nacional.

A Concordata 2004
O tema não perde actualidade e está na raiz da Concordata 2004 que vem a ser celebrada.
A Concordata 2004 marca no ponto que nos importa, a realidade jurídica matrimonial, um marco decisivo. É certo que não foi a ordem jurídica portuguesa alterada durante tempo algo longo após a sua entrada em vigor. No entanto, se dúvidas subsistiam acerca do influxo do direito nacional sobre o da Santa Sé, estas dissipam-se agora.
Reconhece-se que, pelo menos doravante, será a entidade portuguesa legitimamente envolvida a curar dos problemas relativos a todas as invalidades matrimoniais, mesmo todas as católicas, posto que se pretenda que produzam efeitos na ordem jurídica portuguesa.
A compreensão deste aspecto atinge-se estabelecendo a comparação com o regime que esteve em vigor até à Concordata e que aliás a procedeu.
De acordo com esse, a matéria relativa a certas invalidades matrimoniais era de competência reservada dos tribunais eclesiásticos. As decisões subiam, de acordo com os procedimentos, até à cúspide, ao Tribunal Apostólico, posto o que seriam reenviadas por este a um tribunal civil português. Aqui, a função que competia ao nosso aplicador era muito parcimoniosa. Deveria, segundo a lei, limitar-se à transcrição da decisão proferida, à sua divulgação.
Este, em síntese, o regime que desenvolveremos infra.
Este regime, profundo gerador de assimetria entre a função jurisdicional da Santa Sé e do Estado português, não só passava uma certidão de menoridade a este último. Era a própria função do Tribunal, órgão de soberania, que surgia desvirtuada. Um tribunal julga, decide. Não tem nenhuma afinidade com a sua missão de soberania transformá-lo numa entidade de registo de sentenças provindas de outros tribunais. O reconhecimento na ordem jurídica portuguesa de qualquer decisão da Santa Sé, posto que assente nos critérios que muitos autores sempre sufragaram, compatibiliza-se com uma manifestação prévia ao processo. Mas nunca se compreenderá que os tribunais da nossa ordem jurídica desvirtuam as funções que constitucionalmente lhes competem.
Compreende-se portanto a inflexão legislativa. Que ocorre cinco anos depois, em todo o caso, o que bem dá conta da resistência à mudança neste particular. Agora, o processo de dispensa passa pelos tribunais portugueses, sede da sua apreciação, para que valham na ordem jurídica nacional.
A lei, utilizando o sistema em presença, adopta como ponto de ancoragem a qualidade estadual da Santa Sé. Porque esta é um Estado se justifica que tenha a sua produção normativa o regime próprio dos tratados internacionais. Aliás, isso mesmo acontece, na nova versão do artigo 1626º.
Dir-se-á que o problema não é discutido no terreno constitucional. Aliás, não surge a menor referência a tal respeito. Em bom rigor, é o momento pactício que firma a Concordata 2004 que vem pôr cobro à querela, aceitando a Santa Sé uma tramitação diferente, com sinergias cometidas ao Estado português, na matéria em questão.

O Artigo 1626º e as suas duas versões

Procurando sistematizar a matéria em apreço nesta sede, elencaria:
_ Um regime que atribui à Igreja a apreciação de invalidades do casamento e bem assim, de um fundamento que exorbita tais invalidades, pondo fim à sociedade conjugal sem ser por divórcio ou morte: o casamento rato e não consumado, assim decretado Pela Santa Sé. Este regime, que colocava toda a margem de apreciação e decisão no foro religioso, determinava para o Estado português uma incumbência diminuta: transcrição, accionamento dos mecanismos de produção de tais efeitos.
_ Este regime plasma-se no artigo 1626º até este ano (2009) e por sua causa ergueram-se vozes de discordância face à sua adequação constitucional.
_ Com a Concordata 2004 e mais precisamente em decorrência do artigo 16º da mesma, a ideia legitimadora pela própria Santa Sé de um seu confinamento nesta sede faz-se ouvir. E será a Concordata, ela própria, a verberar a actuação dos tribunais nacionais em matérias que cabem no âmbito de aplicação da sua soberania.
_ Mas hão-se, como dissemos, passar alguns anos (2004-2009) até que o Estado legisle.
Razões? Não as avento aqui. Olhámos a matéria no sentido de compreender o Casamento face à Constituição. Afinal, esta mudança coloca ainda um problema constitucional _ equipara o Direito que se aplica aos casamentos religiosos aos tratados internacionais. Ou seja: permite-se olhar a Santa Sé como um Estado entre os outros!
_ Mas não deixemos de reparar que foi a Santa Sé a permitir esta nova tramitação dos casamentos na Concordata 2004, artigo 16º. Ou seja. Diferentemente do que acontecera no passado, é agora o Estado da Santa Sé que antecipa um problema da comunidade a que aspira aplicar-se e aceita uma resolução. Vemos, decerto, uma atitude notável no modo de lidar com o problema: não se impôs um regime ao Estado português, católico mas que ao mesmo tempo não abdica de certas regras suas. Vemos harmonização, respeito por valores básicos nacionais. Uma atitude comunicativa que marca em crescendo as grandes instituições que sabem da vantagem enorme em favorecer o contacto, a tolerância. A Igreja dá aqui um exemplo de grande impacto à comunidade internacional.

Ao exarar a jovem norma do artigo 1626º, o Estado português insiste em terminologia que, vincando a desconformidade entre a lei em vigor e o preceito já aceite, outorgado pela Santa Sé em 2004, nem por isso abdica de sublinhar a manifestação de soberania que a lei doravante conterá.
Com efeito, os pressupostos da nova norma são, de acordo com o Decreto – Lei 100/2009, assentes na desconformidade que ora se regista entre a Concordata e a situação em vigor.
Em abono do carácter pacífico que grassa na sociedade portuguesa sobre a matéria cita os tribunais: vêm-se estes recusando a dar seguimento ao processo de revisão de sentenças estrangeiras.
_ Enfim, assume a lei o papel activo dos tribunais portugueses, a requerimento dos interessados;
_ Altera igualmente o Código do Registo Civil (artigo 7º.3), impondo que as decisões averbadas aos assentos sejam aquelas que tenham passado o crivo do processo de tramitação;
_ Admite, por último, a possibilidade de a Igreja se assumir como parte requisitante ao Tribunal civil a notificação das partes, peritos, de diligências de probatório ou outras, sendo as margens de indeferimento do pedido muito parcimoniosas.
(estamos, claro, analisando o artigo 1626º na versão em vigor).

_ E, afinal, que casos são estes de que estamos falando, a que se virão a aplicar estas regras?
1. Os casos de nulidades do casamento católico, uma invalidade que a ordem jurídica portuguesa não congrega. Mas recebe, em contrapartida, inexistência, anulabilidade. Já, como se referiu, por igual o casamento rato e não consumado corresponde a uma realidade qualificada pela Igreja e desconhecida pela ordem jurídica portuguesa.
2. Um pouco à frente (de seguida) apresentarei o elenco das invalidades do nosso Direito, para que vejamos o universo semelhante, no Direito português, a este aqui em causa. O mesmo acontecerá sobre casamento rato e não consumado, muito importante para os católicos, porque permite pôr fim ao casamento católico sem a qualificação de divórcio atribuída à situação e mesmo, sem o seu enquadramento portas dentro das invalidades, uma vez que existe uma discrepância óbvia entre a figura e estas últimas.
3. A diferença, pois, entre o tratamento jurídico do casamento nulo e rato mas não consumado consiste no seguinte. Antes da Lei 100/2009, a Igreja apreciava o processo, o qual subia à sua cúspide e depois, era devolvido ao Tribunal da Relação mais próximo, que ficaria incumbido de proceder à sua transcrição. A actuação dos tribunais portugueses era passiva, neste domínio.
4. Hoje, não há como fugir à regra de que o juiz nacional é juiz da oportunidade da norma, da sua aplicação ao caso configurado. E, se porventura se opuser, ela não terá como ganhar voz activa pelo processo.

Mantém-se, no plano dos princípios, a questão: cedeu a Santa Sé em razão da especificidade do caso ou foi mais longe do que isto?
Diria que foi mais longe, mas no sentido já apontado: a vinda ao encontro do reconhecimento de uma verdadeira “margem de apreciação” pelos entes internacionais da realidade dos Estados com que estabelecem relações. É uma decisão casuística? Porventura. É, acima de tudo, uma solução geradora de consenso dentro de uma lógica que não violou princípios fundamentais, de parte a parte. É uma decisão moderna, no plano jurídico.

O sentido normativo da decisão concordatária e da decisão do Estado Português; Síntese do regime apresentado.

Ocorre, a quem enfrenta este tema em Direito da Família, questionar do interesse em tanto escrúpulo de desenvolvimento da interpretação destas normas. Porquê, afinal?
Peçamos ajuda a quem de Direito. A própria lei.
De acordo com a Concordata, em nome dela, consideravam-se à margem de qualquer juízo de oportunidade laica as decisões em razão de nulidade do Casamento. Ora, sendo que a nossa ordem jurídica, de entre o acervo de casamentos inválidos, os não contempla, conclui-se facilmente que a Igreja chamava a si a apreciação de casos ditados pela sua normatividade específica. Depois, surge a categoria do “casamento rato e não consumado”. Trata-se de uma modalidade de termo do Casamento, mas muito específica. Vejamos:
_ Prevista nos Cânones 1142 e 1697 do Código de Direito Canónico;
_ Dispensa pedida ou por ambos os cônjuges,
Ou
Só por um deles mesmo contra a vontade do outro, para obter a dissolução do casamento;
E este casamento foi validamente celebrado.
Porém, é um casamento por regra não consumado.
O ponto está em que a não consumação comporta excepções. Incompatibilidade de caracteres, separação durante vários anos; delito muito grave que um tenha cometido; e por diante.
Perguntar-se-á: não é mais ágil o divórcio?
É-o juridicamente, mas não tem o mesmo efeito no seio da comunidade dos crentes. Daqui, a opção de muitos católicos por esta figura.

Ora, até hoje, ela transitava, como se disse, pelos tribunais eclesiásticos. Subia à cúspide; e só mais tarde, após a decisão derradeira, intra-eclesiástica, era devolvida aos tribunais civis para que a tornassem operacional.
Foi este o sistema que mudou com a novel lei, o Decreto-Lei 100/2009. Os tribunais portugueses têm voz activa, poder decisório na matéria.

Se bem atentarmos, decorre do artigo 16º.1 da Concordata 2004 que “As decisões relativas às nulidades e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas competentes, verificadas pelo órgão eclesiástico de controlo superior, produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo competente tribunal do Estado…”
Ou seja. A paridade entre o texto do artigo 16º e o regime ora em vigor é muito evidente.
Concluindo e observando: o requerimento pode ser apresentado apenas à instância religiosa. Produzirá efeitos junto da Santa Sé, a decisão proferida. Porém, a produção de efeitos em Portugal está dependente da segunda solicitação, junto das autoridades judiciais portuguesas.

EX: António e Betina celebraram casamento católico em 2002. Este casamento foi considerado inválido pelo Direito Canónico.
A nulidade em questão veio a ser “desconsiderada”, não avaliada pelos Após a decisão do Supremo Tribunal Pontifício, concluiu-se pela ilegitimidade dos tribunais laicos para apreciar a questão.
Colocado o problema agora, reconfigura-se a situação. O que sucede, depois de Maio de 2009, é a necessidade de uma apreciação pelos tribunais portugueses da matéria. Não obstante, os tribunais eclesiásticos reservaram-se o direito de acompanhar este processo de revisão e confirmação da sentença. É assim que sempre poderão aduzir material probatório, requerer a audição de testemunhas…

Advertência: o Casamento não é a fonte por excelência de relações familiares na óptica da Constituição. Esta torna bem claro que outras formas constitutivas de Família existem e que não há fundamento para proceder a discriminações entre qualquer delas.

O que acontece é que, pela sua imensa densidade legal, pela doutrina que transporta consigo, a realidade matrimonial opera uma quase dissipação das outras realidades familiares. A verdade, no entanto é que o legislador não afirmou que só o Matrimónio, ou o Matrimónio em primeiro lugar, surgem como fontes de relações familiares. Não é dito em qualquer lugar, muito menos no artigo 36º, que deste modo deva ser interpretada a Constituição. Ora, há assim que tomar em consideração a igualdade entre as várias instituições que aparecem ao lado do Casamento, hoje reconhecidas, apesar de modo parcimonioso, pela lei e desenvolvidas pelo direito jurisprudencial, pela discussão que se adensa nos meios doutrinários. Recordo Esopo, a Fábula do homem e do lesão que passeavam por um caminho, quando encontraram a estátua de um leão dominado por um homem. Vendo-os, comentou o homem viajante: “Por aqui se prova a superioridade do Homem face ao leão”. Ao que o Leão respondeu: “Não! O que por aqui se prova é que os leões não são escultores…”.
O legislador constituinte esculpiu relações de igualdade entre modelos de famílias, do mesmo passo que esculpiu relações de igualdade entre todos os intervenientes na Família; crianças e sua circunstância, de formação de personalidade e direito ao afecto; mulheres e nova expressão familiar, profissional, com inerentes tensões, conflitos, que solicitam reconhecimento e tratamento jurídico adequado; idosos integrados em agregado do qual possam depender, financeira ou afectivamente, e correspectiva exigência de resposta jurídica. Em que medida um ou outro dos casos aflorados integre o Direito da Família é outro ponto. Que a igual relação de respeito constitucional deva ter-se em conta, sem dúvida.
Quando analisamos este artigo 36º encontramos a história da afirmação de duas realidades. A implantação dos direitos das mulheres à igualdade, concretizando o artigo 13º do Código Civil. Por outro lado, os direitos dos menores.
Por uma questão de ordem, analisamos primeiro a referência inicial da Constituição.

A lembrança que aqui se faz do direito à igualdade entre os dois sexos é muito parcimoniosa. Pois foi já afirmado que constituiu o grande sintoma da modernidade do Direito da Família que aparece após o 25 de Abril de 74. Aparece depois na Constituição em 76 e irrompe, como é sabido, com a Reforma do Código Civil de 77.
Tem projecção fora do casamento: em todos os sectores da vida social. No Casamento e nas outras realidades familiares que depois despontam, evidencia-se com a ausência da liderança por um chefe masculino e pela projecção dessa igualdade na educação dos menores dentro da Família. Não é o pai que decide os aspectos da vida do menor e sua educação, essa decisão é partilhada e não depende da condição económica ou cultural de nenhum deles. No entanto, sabe-se em que medida continua a existir uma concepção pouco densificada desta partilha educativa que a lei impõe. Muitas vezes, os tribunias deparam-se com tentativas de transpor para a educação dos menores, para a titularidade dessa educação, o reflexo de conflitos entre o casal: financeiros, sim, mas também de ordem sentimental. Nesta medida, projecta-se numa entidade soberana mas estranha ao círculo familiar e ao conhecimento de elementos fundamentais para decisões sustentadas _ o juiz_ muitos aspectos que deveriam ser resolvidos dentro de um grupo restrito e tanto quanto possível isento.
Mais adiante aventar-se-ão os caminhos de uma solução que se afigura muito complexa por agora.

Direito da Família na Constituição (continuação). Os menores na Constituição

E, chegados a este ponto, chamamos a depor o papel que a Constituição comete à protecção constitucionalmente imposta dos menores.
Começo em breve trecho sobre a procriação medicamente assistida. É certo que muitas vezes a sua localização problemática não surge aqui, antes a propósito do Casamento, ou de outras relações familiares. Compreende-se a referência biológica inerente (terá de haver uma decisão de progenitor ou progenitores) mas nada tem a ver com o eixo fundamental, a fonte de legitimidade desta procriação. Pois antes de mais, do que se trata é de aquilatar do bem fundado de gerar seres humanos em condições diversas das habituais, sendo evidente que persiste um quadro de desconhecimento, biológico desde logo e com evidentes repercussões de ordem pessoal, afectiva, a perpassar toda a sequência procriativa.
Pergunta-se, então, acerca da legitimidade de trazer para este mundo desconhecido ainda mais factores de desconhecimento, sobre a origem da pessoa e a sua subsequente situação; sobre os efeitos do “factor desconhecimento” e as suas consequências. Que garantia temos de dar por adquirido, procedendo assim, o respeito pela dignidade humana, ao permitir que acresça uma margem de desconhecimento acerca deste novo ser, margem que não decorre da álea da criação em geral, mas de outros factores que trazem consigo suspeita de complexidade e efeitos ainda insondáveis.
Creio que toda a discussão a fazer acerca das condições particulares que possam atribuir maior margem de favorabilidade a uns casos ante outros (cfr. casais que se provam impedidos de procriar e afirmam o impulso da maternidade/paternidade) não prescindirá esta reflexão prévia. Pois não se trata primacialmente de fundamentar um direito familiar, porventura situado na esfera recôndita dos direitos à maternidade e paternidade, à expressão dos afectos. O direito que antes do mais se ergue é o de cada pessoa e da sua circunstância. E posto que não podemos alterar aspectos essenciais de uma e outra, convirá, por igual, que os não pretendamos definir de acordo com as nossas mundivisões, padrões…
Sobretudo, creio importante suscitar a necessidade de distinguir dois planos muito evidentes nesta matéria. Por um lado, o direito essencial do novo ser, a sua dignidade, que constitui o primeiro ponto a reter na matéria. Por outro lado, o Direito a constituir uma Família, que em regra é chamado a depor nestes casos. Tem-se tal direito, sempre, na medida das possibilidades, da realidade que é a de cada pessoa. Nunca, sobrepondo-o ao direito de nenhum ser, nunca, instrumentalizando um ser humano ou uma realidade que a lei identifica já como dotada dos elementos essencialmente constituintes da humanidade e por isso identifica nos seus termos.
Acentuando o ângulo pelo qual as portas se abrem ao meio de procriação mencionado, vemos que se trata de estabelecer uma ponderação, a saber, entre o sentido do direito à dignidade e o direito a exercício da vontade.
O direito à dignidade resulta aqui, como decorre do exposto, muito pouco evidente. Afinal, a dignidade de um ser que ainda não existe, não foi sequer gerado, seria sempre causador de perplexidade. E acresce que, neste caso, pode dar-se o caso de vir a ser procriado com um destino imediato benévolo: no seio de uma família dotada de excelentes condições de acolhimento, por hipótese.
Discutir esta legitimidade de assim procriar parece mesmo depor contra a causa do direito a uma vida digna!
Mas quem é o ser gerado ou gerável, de que falamos? Alguém que tem a sua circunstância completada num segundo, na ponta de um bisturi, ou o homem ou mulher que vai viver depois viver a contas com as suas vicissitudes genéticas, as suas atribulações sociais? Alguém que, à álea do ser humano em geral, acopla a álea de uma diferença que não podemos antever em que medida depõe a seu favor ou reverte contra ele.
E vejamos o outro ângulo, o da vontade. À partida, é a vontade bem intencionada de gente afectuosa, com instintos bons, uma gente altruísta e cheia de carinho. Mas não podemos confundir os planos. Se a legitimação da vontade fosse uma legitimação ética, diria que eles têm legitimidade para serem destinatários de procriação assistida. Porém, não é o caso. A legitimidade da vontade supõe aqui a demonstração de que ela sobreleva outros interesses. Ora, em primeira linha, temos os interesses dos menores e só liquidada essa discussão se passaria a este segundo ponto. Sucede que não a vimos ainda liquidada.
Neste contexto, afigura-se-me juridicamente problemático um juízo favorável à solução adentro da ordem jurídica.
Questão diferente é a da atenção, do cuidado conferido ao novo ser uma vez procriado.

Já noutro plano, coloca-se o domínio dos direitos/deveres dos pais e encarregados da responsabilidade sobre a educação do menor. A lei, ao longo de muitas normas, que a Filiação exprime mas também a constituição firma, tal como as Declarações Internacionais, chega a um sistema de incumbências sobre cada educador. Este sistema cresce, a ponto de se reflectir sobre outros ramos do Direito. Uma mais forte consciência social das obrigações para com as crianças corrobora uma legislação densa noutros aspectos; estou a pensar no direito criminal perante os menores.



Também o artigo 36º da CRP desempenha um papel neste domínio, que se estudará mais à frente, pelo que se faz agora uma abordagem tão breve e remissiva.
Mas em todo o caso refiro dois pontos obrigatórios.
Por um lado, a prolixa enumeração de deveres que o Código Civil atribui aos titulares do poder paternal/responsabilidades parentais. Serão semânticos? Talvez, em certa medida. Nem por isso deixam de ser indicadores de um rumo: a árvore dos direitos, dos bens pessoais, cresce através dos direitos dos Menores. É meritório que isso aconteça; é revelador de que, em algumas décadas, ultrapassámos o quadro da “família subjugada pelo chefe de família” e o quadro da “família a tender-se moldada pela emancipação das mulheres” para uma Família mais ampla e reconhecedora de todos os seus membros.
Por outro lado, estes poderes/deveres, ou direitos/deveres estendem-se vertiginosamente ao código pela: pelas “situações de garante”; pelas circunstanciais pessoais especiais de ilicitude, plasmadas no artigo 28º (uma das mais antigas e importantes regras comparticipativas do sistema); pelos crimes de maus tratos, violência doméstica, tráfico de menores…_ matérias que veremos adiante.
Ora a este propósito parece-me indispensável focar um ponto, que talvez encerre a tentativa de esconjurar um mito. O mito do carácter propulsivo do Direito Internacional e também das suas decisões.
Recordo uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Perante a impossibilidade de algumas crianças belgas, a viver próximo da fronteira da Holanda, se deslocarem a uma escola que lhes ministrasse o ensino da sua própria língua, considerou o Tribunal que a decisão que recaíra a nível nacional sobre o caso, no sentido de as crianças procederem à deslocação,



VII

Casamento: Inexistência; Invalidades Matrimoniais
Relembramos, a terminar este ponto, o esboço de problemas relativos às invalidades cujo enunciado se apresentou. O propósito era o de chamar a atenção para o conceito de invalidade no Direito português, uma vez que se chamaria a depor a invalidade do casamento religioso.
Sendo esta a sequência usada, seguiremos com a apresentação dos tipos de invalidades que a lei consagrou no direito português. Não se tratará de as analisar com exaustão, mas de ver o núcleo de problemas normativos em que se inserem estas realidades que, no Direito da Igreja, assumem uma feição específica.
Há, como já foi afirmado, casos não coincidentes entre as invalidades do Direito Canónico e o nosso Direito Civil. Desde logo, as “nulidades” que o Direito Canónico contempla não têm transposição linear para o Direito Português. Por outro lado, existem situações que a lei nacional considera invalidadas e são incólumes perante a Santa Sé a um tal juízo.
Por outras palavras: veremos se são “parecidos de família” os casamentos anuláveis ou até inexistentes da nossa lei e os casamentos nulos segundo o Código de Direito Canónico.

Inexistência
O Casamento inexistente é a contra-imagem do seu desenho legal, o outro lado do espelho. É uma situação que exprime a não declaração de vontade núbil, por maior que esta vontade seja
O elenco do artigo 1628ª explicita este núcleo que deixamos aqui aflorado nos seus tópicos mais salientes.

A quer casar com B. Mas não o afirma ao funcionário do registo, porque algo lhe prende a atenção. Pode, também, não se dar conta de que é aquele o momento de proferir as palavras…

Cabem neste conceito as situações em que:
_ São do mesmo sexo os nubentes;
_ Não declaram a vontade;
_ Não o fizeram ante a autoridade competente.

Ocorre perguntar a razão pela qual insiste a lei em dizer-nos o que seja um casamento inexistente, quando na verdade sabe muito bem que, apresentado o conceito de casamento, de imediato ressaltaria a impossibilidade de subsumir ao mesmo, casos deste teor.
Sabe-se, também, que na origem desta regra esteve uma outra bem antiga, oriunda do Code Civil, que assim evitava a inclusão do casamento de pessoas do mesmo sexo; era o tempo da interpretação estrita da lei e sua letra, da concepção do juiz como a boca que de modo automático repete as palavras dessa lei; uma lei que não fora inclusiva da diversidade sexual.
Pergunta-se, porém, da oportunidade de ir por aí, hoje que há margem interpretativa bastante para compreender a fronteira das compatibilidades entre as normas, para proceder à sua análise sistemática.
Porque insiste o legislador?
Creio que para sublinhar a sanção que pretende usar. Essa sanção é inequivocamente a não produção de efeitos. A lei não abre mão de tal aspecto e por isso preserva a norma. Não se tratará de um caso de nulidade, o que sempre se poderia admitir, se o silêncio fosse a sua opção. Trata-se de colocar fora da esfera geradora de efeitos jurídicos a situação, sem apelo nem agravo.
Vou deixar um tanto de lado a questão dos casamentos urgentes. Com efeito, para eles vigora uma tolerância que faz excepcionar a regra da necessidade de um requisito formal para que o Casamento exista. A ordem jurídica nacional permite-os, honrando a vontade de quem pretende casar e sabe que pode suceder que a vida não lhe proporcione muito mais tempo para isso; ou que se encontra na iminência de parto Porém, posto que celebrado este casamento com menos solenidade formal, deverá ser homologado, logo que possível. De outro modo, esboroam-se os efeitos jurídicos do casamento urgente.
Pois afinal, a existência matrimonial que se exprime no artigo 1628ª é a decorrente de uma situação jurídica a que se suprimiram dados essenciais da construção legal de matrimónio: um negócio formal, entre pessoas de sexos diferentes, com uma dimensão de publicidade que exige ser a sua tramitação legalmente definida, sob pena de supressão radical da esfera jurídica. É certo que a lei atende a um aspecto que, neste domínio em que a intimidade, a esfera pessoal, fazem incursão, uma margem de possibilidade impensável em outros negócios jurídicos. Estou pensando nos casamentos urgentes, celebrados, por hipótese, sob o espectro da morte ou de parto.
Pergunta-se qual o sentido actual desta “iminência de parto” como pressuposto de casamento urgente. Afinal, não há estigmas por nascimento fora do casamento e quanto à prova da maternidade, far-se-á ela com toda a naturalidade, caso o casamento não exista.
Mas o legislador insiste, talvez, num respeito pela vontade de quem pretenda ter uma relação conjugal legalizada ainda nestes casos. Que podemos/devemos dizer? Perante a retracção própria do desconforto de opinar em face de uma expectativa tão difícil, apenas resta uma palavra: deste modo se perpetua, na lei, um sentido de respeito para com as relações conjugais legalizadas que em bom rigor se andou destruindo aqui e além, em múltiplos aspectos. É um sinal de assistematicidade do sistema, de desigualdade no tratamento das situações. È talvez, em dimensão muito real, o justo preço de uma mutação legal profunda, uma revolução algo surda dos institutos, que não pode correr a benefício da coerência.

Ex; Alda está prestes a ser mãe e a lei retira à expressão da sua vontade conjugal os requisitos que teria em condições normais; retira-a sob condição, até que a regularização do casamento possa ocorrer. Ou seja: poderá realizar um casamento informal, mas que será homologado logo que possível.
E, no entanto, se Aldina, unida de facto, pretender ver a sua União protegida, mas ainda não tenha perfeito os dois anos de convivência estável com o companheiro, não terá, na lógica e arsenal dos instrumentos da União de Facto, como proceder. Restar-lhe-ia casar, caso o pudesse e além do mais, quisesse. Pergunta-se; porque não cobre a lei com um manto de respeito, também, esta outra vontade?

Assim como admite a lei que seja firme em existência, e mesmo válido, casamento celebrado ante funcionário de facto, a menos que ambos os nubentes estejam cientes da qualidade do funcionário.
Quem é o funcionário de facto? Todo aquele que, sendo titular da designação, não possui contudo as qualidades para a prática específica destes actos.
A lei, aqui, distingue. Decide que, se o souberem os nubentes, o casamento é válido. Nem se coloca um problema de anulabilidade. Ou seja: a regra de formalidade exigida tem afinal efeitos lassos: posto que o casamento se realize ante autoridade será dado como regular, posto que alguma ferida tenha inquinado, incidente, no caso, sobre a qualidade do titular do poder para efectuar a celebração.

Numa palavra: o casamento inexistente é o reduto que exprime uma realidade oposta ao conceito legal do casamento. E não cabe no seu interior nenhuma outra. Não cabem as formas que se aproximam do casamento, posto que eivadas ainda de elementos de contrariedade à lei (casamento ante funcionário de facto), eventualmente, por condições excepcionais consideradas atendíveis.

Todos os outros casamentos existem, pois, e poderão perdurar, sem o anátema da invalidade. Não será o vício exprimível a todo o tempo, ou por qualquer pessoa.



Invalidades
A grande figura de enquadramento das invalidades matrimoniais que a nossa ordem jurídica contempla é a anulabilidade.
Uma anulabilidade cujos contornos são de tal modo específicos que os desenvolvemos agora.
Há, afinal, três características que marcam o regime das invalidades do Casamento e que se aplicam aos vários casos que as mesmas invalidades possam configurar.
Vejamos.

_ Possibilidade de convalidação, sempre que a invalidade, embora grave, conheça um fim e esteja ainda a decorrer o processo de impugnação do Casamento.
_ Diferente latitude dos titulares do direito de interpor acção de anulação;
_ Diferença nos prazos para tal propositura.

O exame da lei.
Casamentos em que se verificam causas de anulabilidade (artigo 1631º); as situações que o legislador toma em consideração
Será anulável o Casamento contraído com impedimentos dirimentes: vimos reiterando este aspecto.
Estes impedimentos inserem-se em mais de uma espécie.
Designam-se de impedimentos dirimentes absolutos e relativos.
Alguns impedimentos dirimentes relativos foram objecto de referência anterior, a propósito do Parentesco. Recordarão que se afirmou na altura que se reporta, a esse propósito, àquelas situações em que a ilegitimidade conjugal advém de um laço de parentesco próximo (linha horizontal ou 2º grau da linha colateral) ou de afinidade, tão só na linha recta.
Outros existem, contudo.
Encontrámos aí, pois, impedimentos dirimentes relativos. O problema que eles colocam não é o da invalidade do casamento de A com qualquer pessoa, mas o casamento de A com certas pessoas, parentes, afins, adoptados seus.

Ex: A casa com um irmão. A titularidade para intentar a acção encontra-se fixada no artigo 1639ª. O prazo tem sede legal no artigo 1643º.

A extensão da categoria dos impedimentos dirimentes relativos é, porém, maior.

Abrange:
_ A afinidade na linha recta;
_ A condenação de um dos nubentes pelo homicídio doloso, tentado ou consumado, como autor ou cúmplice, na esfera jurídica de cônjuge daquele com quem se realizou o casamento;
Chama-se a atenção para a titularidade e prazos de acção judicial contidos nos artigos 1639º e 1643º, bem como para o seu regime.

Há situações em que a qualificação “impedimento dirimente” vai ainda abranger os casos, não já de insusceptibilidade de aptidão para casar devida a uma relação de parentesco (relativa a pessoa determinada, pois) ou a relação específica com a pessoa do outro cônjuge (este foi o parceiro da vítima de homicídio tentado ou consumado, em autoria ou relação de cumplicidade), mas por igual, as situações de insusceptibilidade erga omnes:

_ Idade inferior a dezasseis anos;
_ Impedimento por demência notória (mesmo durante os intervalos lúcidos);
_ Por haver casamento católico ou civil anterior não dissolvido, mesmo que o assento do matrimónio não tenha sido lavrado no registo civil respectivo (artigo 1601º);

Ex: A tem uma doença que os médicos não diagnosticam como mental grave, mas que provoca distúrbios graves no comportamento, não obstante não se verificar constância desta anomalia. A lei engloba tais situações no núcleo daquelas que darão origem a impedimento matrimonial.

Para além destas situações, compete chamar ainda a depor outras em que se verificam falta ou vícios de vontade.



O consentimento
A lei presume a liberdade do consentimento (artigo 1634º).
Tanto o erro como a coacção relevam, sim, mas dentro dos pressupostos legais e só deles (artigo 1627º).
A vontade presume-se.
Configuram falta de vontade de casar aquelas situações em que se verifica, no momento da celebração matrimonial, falta de consciência do acto. Esta poderá ser provocada por incapacidade acidental (o caso que aliás, a lei refere) mas ainda por outros motivos (artigo 1635).

Sublinham-se as características do erro-vício contemplado no artigo 1636º Este, além do mais:
_ Deverá recair sobre a pessoa do outro nubente;
_ Deverá versar sobre uma qualidade essencial sua.

Mas que se entende por “qualidade essencial”?
O conceito de “qualidade essencial” é mais um conceito indeterminado. A origem está na Reforma de 77. À jurisprudência cabe analisar a sua verificação. Mas de um modo geral considera a doutrina que erro sobre aspectos mais relevantes, comportamento ao longo da vida, existência de doenças graves, cabem aqui. E tudo o mais será de problemática inclusão.
Este erro deve ser ainda compreensível, desculpável. Se o facto agora alegado era uma evidência, não é desculpável o erro.
Por fim, a propriedade do erro, com soluções divergentes na doutrina: a tese segundo a qual o erro não poderá recair sobre um requisito legal de validade ou de existência do casamento (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira e Antunes Varela); a tese segundo a qual o erro só não poderá recair sobre um requisito legal de existência do casamento (Jorge Duarte Pinheiro).


Coacção
Também a coacção, nos termos do artigo 1638º, é fundamento de anulação.
O artigo 1631º apresenta o regime destas situações.

Regras das invalidades:
O regime destas invalidades obedece a regras.
Assim:
Se o casamento foi contraído com algum impedimento dirimente, a legitimidade para invocar a invalidade é da titularidade do cônjuge mas também dos parentes na linha recta e ainda dos colaterais até ao quarto grau, herdeiros e adoptantes, bem como do Ministério Público.
Há uma razão a fundamentar esta extensão: o interesse público em não manter tal Casamento.

Mas verifica-se uma especialidade dentro deste grupo. Sempre que o motivo da anulabilidade é temporário, a lei admite que ela seja sanada. Para esse efeito, fixa a lei então um prazo para a propositura da acção; ou ainda, não admite que a anulação seja requerida a partir do momento em que deixou de se verificar a razão de ser da anulabilidade. É, se virmos o elenco legal, o caso das situações de demência notória, falta de idade nupcial, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica, casamento anterior não dissolvido.

Se o motivo da anulabilidade for permanente, não permite a lei que seja sanada. Acontece nos casos de parentesco ou afinidade sempre que funcione esta como impedimento, parentesco no 2º grau da linha colateral e condenação anterior por homicídio, no caso que a lei contempla. Neste último caso, a lei marca, curiosamente, um prazo curto para a propositura da acção: três anos.

Há casos em que a anulabilidade visa proteger o interesse de um dos cônjuges. Sendo assim, apenas este pode requerer a anulação. Contemplam-se aqui os casos de incapacidade acidental ou de falta de consciência do acto: erro sobre a identidade física do outro cônjuge; coacção física; erro vício; coacção moral.

Enfim, há casos em que só o Ministério Público pode propor a acção de anulação, dado que só o interesse público está lesado: o caso de falta de testemunhas na celebração.

Qual a razão de ser deste regime que, em última análise, procura reservar os efeitos do Casamento à esfera dos directamente interessados e apenas chamando à titularidade judicial a família, o Ministério Público?

Sublinha-se o cuidado de evitar tudo o que dissemine os efeitos de comportamento moral indesejável, de evento social a vários títulos desastroso. Aparentemente, dir-se-á que em nome da instituição se actua juridicamente, que esta tolerância exprime sólidos princípios institucionais. A posição do legislador evita o estigma que possa advir destas situações. O efeito de imitação social que o legislador pretende tem uma capacidade de imposição jurídica que a realidade, aliás, testemunha.


Casos:
Ex: Xavier faz saber a Eulália que todos os documentos que tem em sua posse sobre o passado criminal desta, e até agora ocultado, virá à tona, caso ela não case com Firmino, filho de X, que precisa de um apoio experiente e de uma mão forte na liderança da sua vida: Eulália, precisamente.
Ponderando entre o opróbrio do aviltamento social e a expectativa da situação económica do marido, Eulália preferiria a primeira; mas não quer “cair na lama” de uma sociedade pouco tolerante, em seu entender e casa.
Se, porém, Eulália casasse por outro motivo: ponderando, concluísse que a actual situação económica do futuro marido e a herança dos sogros são bem tentadoras, auguram um futuro apetecido.

Suponhamos que Gabriela se enamora de Hermano e não sabe que Hermano tem um passado turbulento: droga, crime organizado, militância terrorista…

Imagine que, ao saber a verdade, Gabriela se desinteressa desse aspecto: afinal, tem o padrão de vida que desejou, o marido é hoje uma pessoa integrada socialmente, adaptada a um correcto agir de acordo com os critérios aceites de convivência.

Um ano mais tarde, porém, conhece Ivo e enamora-se profundamente. E quer reaver o estado de solteira. Para isso, intenta uma acção de anulação do seu casamento com Hermano. Invoca ponderação recente do perigo que pode representar o comportamento anterior, traço de personalidade decerto, embora nunca anteriormente tenha pensado no assunto; nem quando soube o “passado criminoso”.

Casamentos em que se verificam Impedimentos Impedientes (artigo 1604º): a especificidade.
Bem mais “permissivo” é este regime, que compreende aqueles parentes mais distantes na relação genética e porventura, ainda cultural.
A propósito do Parentesco vimos estes impedimentos impedientes, também denominados de Impedientes.
Existem vários outros:
_ Falta de autorização para casamento de menores, quando não suprida;
_ Prazo internupcial;
_ Parentesco no 3º grau da linha colateral;
_ Vínculo de tutela, curatela e administração legal de bens;
_ Adopção restrita;
_ Pronúncia do nubente por homicídio, consumado ou tentado, contra o cônjuge do outro

Alguns destes impedimentos são susceptíveis de dispensa (artigo 1609º).
Os impedimentos podem ser denunciados (cfr. o artigo 1611º).


Nótula: Se A casou com B convencido de que este é o seu amigo Pedro, um conhecimento de férias, mas vem a concluir que afinal “Pedro” tem a particularidade de ser oriundo do planeta Alfa, é um ser com todas as características dos humanos, mas, de facto, não nasceu entre os humanos, é “como nós”, que situação se nos depara?
Sustentaria sem grande margem de hesitação que o casamento é inexistente. Por mais aproximada que seja a realidade de “Pedro”, certo é que o desconhecimento, não apenas acerca da sua realidade concreta, como da espécie em que se integra, suscitará pesos e medidas adequados a foros diferentes. Será respeitável nos termos dos seres humanos enquanto nada indiciar outros aspectos (perigo para terceiros, por exemplo), destinatário de todas as normas que dizem respeito ao reconhecimento e defesa dos direitos das pessoas. Na esfera familiar, cremos que seria destituída de sentido uma equiparação que levasse a encarar como possível a homogeneidade entre as relações da intimidade familiar e esta outra.

início do Casamento:
_ Preliminares no Casamento Canónico e efeito sobre o português
_ Informalidade progressiva
_ Promessa e efeitos
_ Convenções Antenupciais]










+
















VIII

Casamento Putativo
Por último, uma referência nesta fase ao Casamento Putativo (artigos 1647º e 1648º).
Sempre que um casamento inválido seja contraído de boa fé em uma das partes produz os seus efeitos, em relação a ele ou a terceiro, até à declaração de invalidade (mais precisamente, até ao trânsito em julgado desta). Seja qual for a esfera onde se actuou: patrimonial, pessoal…
Se porventura a boa fé se tiver estendido a ambos, assim será, por igual.
A boa fé significa aqui a “ignorância desculpável” do motivo que inquina o contrato. Mister será que olhemos a realidade: o meio circundante do agente; a sua condição pessoal, social; numa palavra, a sua circunstância, o “aqui e agora”. Pois, se casos existem em que é notória a atitude de desconhecimento do sentido do contrato celebrado, outras se verificam também em que este seria, em princípio, detectável e só não o foi por incidente, aspecto ocasional. Em suma. Caso os celebrantes de casamento inválido estejam ambos de boa fé, serão considerados válidos os actos jurídicos celebrados durante aquele tempo que nem por isso deixa de ser de irregularidade.





Se, porventura, a boa fé se colocar apenas em relação a um deles, será ele o beneficiário único da situação, bem como terceiros que estabeleçam relações jurídicas.
Protegidos, aqui, são as partes contratantes na correcção do acto que praticaram, escorado em sãos princípios. E são-no ainda terceiros que entabularam negociações, imbuídos do mesmo espírito.

Fazendo então o percurso de síntese acerca das invalidades matrimoniais, diremos que:
1. Atingem em primeira linha quem olha o casamento (seja permitida a imagem) do outro lado do espelho. Não como a lei diz que ele é, mas desfigurando o seu modelo, a sua configuração legal [NOTA: a lei confere o epíteto de inválido ao casamento inexistente, uma vez que isso mesmo resulta do artigo 1629º. Quem cada com pessoa do mesmo sexo; quem afirma casar mas não profere as necessárias palavras ou sucedâneos possíveis (gestual…, sempre acompanhado); quem não casa em tempo oportuno perante as autoridades competentes (logo que celebra o contrato; em caso de urgência, por regra devida a situação de parto iminente ou de morte iminente, nos termos que a lei requer, mas não se compadecem, em validade, sem uma homologação, nos termos da lei(;;
A inexistência do casamento, note-se, não é impeditiva da validade dos casamentos ante funcionários de facto, a menos que houvesse conhecimento, por parte dos nubentes, da situação criada. A lei tem o cuidado de nem considerar anuláveis tais casamentos e dá-os por válidos.

Mais complexa juridicamente é a restante panóplia das invalidades.
Encontramo-las na lei devidas a dois tipos de fundamentos: Impedimento dirimente e falta de vontade.

No primeiro caso, encontram-se aquelas situações de falta de idade núbil, demência notória, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica (artigo 1601º)
No outro caso, os parentescos, na linha recta e 2º grau da linha colateral, afinidade na linha recta, homicídio de um dos cônjuges na pessoa de cônjuge do outro (artigo 1602º).

A falta de vontade reporta-se a situações de vontade viciada por erro ou por coacção.

De sublinhar que há uma dualidade no plano das consequências jurídicas para o primeiro caso (artigo 1601º).
Com efeito, ao passo que a sua subsistência pode produzir efeitos graves_ mais, produzi-los-á em princípio_ não é impossível que se dê o caso de isso não acontecer.
Em que circunstâncias? Uma vez desaparecido o vício que se verificava.
Caso

Concluímos assim que a lei rodeia de maior probabilidade o deslaçamento do matrimónio inválido a partir de dois eixos. Por um lado, a titularidade para desencadear o fenómeno jurídico, que é mais ampla aí onde se considera mais grave a subsistência da situação, sem prejuízo de sempre o Ministério Público ser um dos detentores da competência. A partir de que critérios? Creio que de critérios que relevam da sua apreciação e nunca de “fenómenos de imitação”. Ou seja: no plano das considerações do Ministério Público, não tem lugar qualquer ponderação sobre o comportamento dos outros titulares do direito a interpor acção de anulabilidade.
Por outro lado, funcionará o factor tempo, que a lei considera em grandezas diferentes conforme o desvalor que atribui ao contrato celebrado.

Mas em todo o caso está o legislador atento a que, pese a invalidade que inquinou a situação, esta se celebrou não raras vezes entre agentes de boa fé (ambos, ou um deles) e produziu efeitos perante terceiros.
É a atenção a este factor que está na base do chamado Casamento Putativo.
O Casamento Putativo não corresponde, como é evidente, a uma forma de celebração matrimonial própria, diferente. É antes a expressão do reconhecimento do legislador perante certos casamentos que, posto que anuláveis e na iminência de que essa anulabilidade produza efeitos (porque foi arguida e lhe deu razão a entidade judicial) ainda assim tem em mente a injustiça que representará tratar como “não existente” em toda a extensão um fenómeno que as duas partes celebrantes, ou pelo menos uma delas, bem como terceiro ou terceiros que com elas tenham celebrado negócios jurídicos, intervieram.
Que faz então?
O mecanismo do Casamento Putativo consubstancia uma ficção jurídica. Tudo acontecerá, enquanto durou a situação de boa fé no seio do casamento inválido, como se este se transmutasse em válido. E depois? A partir daí, ou seja, fora das margens deste contexto, a invalidade impera.
Bem se compreende a necessidade de delimitar a zona de produção de efeitos do Casamento Putativo.

Ex: A casou com B e o casamento foi anulado. Quando a anulação ocorre, já A falecera e B herdara. Sucede que o tribunal considerou que B não estivera de boa fé. Sendo assim, não se dará o caso de ser B herdeiro de A.

A doutrina evidencia a este propósito os casos em que os efeitos produzidos decorrem de relações entre os cônjuges putativos e outras relações, também, mas conexas com aquelas. São estas que valerão face a terceiros.
Diferente é a situação em que A e B, protagonistas de um casamento que vem a ser anulado, celebram doação: A doa um apartamento a B.
O negócio jurídico não releva na perspectiva de terceiros.

Natureza do casamento putativo
Se observarmos a lei, vemos que esta autonomiza a figura do Casamento Putativo. Poderia, por hipótese, tratá-lo na corrente dos artigos que dizem respeito ao regime das invalidades, pois que consubstancia, afinal, nem mais nem menos do que um critério de delimitação de várias destas, em circunstâncias contadas, que referimos já. Porém, a opção é outra e o Casamento Putativo surge-nos lado a lado com as Invalidades, criando a ideia de que é uma espécie de casamento, ainda que dotada de um padrão muito peculiar.
A doutrina, em grande medida, vai por aquele outro caminho que também seguimos. Não é, creio, a solução mais correcta, ver o casamento putativo que não seja como critério que excepciona a invalidade geral de casamentos. É a invalidade como pano de fundo que mais depressa nos conduz à essência destas figuras, a qual reside no carácter excepcional da permanência de efeitos jurídicos, uma vez declarada a invalidade.
A tese contrária tem uma explicação, é certo, mas que não se articula à figura actual que encontramos na lei. É uma tese sustentada no princípio de que, posto que precariamente, aquele casamento existiu e tem por esse facto toda a dignidade essencial reconhecida ao matrimónio. Mas a tese não colhe: são motivos de ordem pública que estão na origem do seu afastamento da esfera jurídica; e estes motivos justificam que se encontre aqui um factor de separação face ao casamento normalmente celebrado, válido. Salvar efeitos decorrentes da boa fé ou do alheamento de terceiros face ao fenómeno não significa o mesmo que reconhecer no fenómeno um verdadeiro matrimónio.
Concluímos portanto. Não creio que o Casamento Putativo deva ter outra consideração legal que não a de uma ficção: uma excelente ficção jurídica, aliás. Foi com base na sua construção que se permitiu preservar, no caudal de invalidade de um Casamento que não subsiste por razões ponderosas, aquele núcleo em que a lei se tornaria injusta caso aplicasse todos os efeitos que na pureza dos seus princípios se antevêem. E o que acontece agora? Com a figura do Casamento Putativo, nunca o nubente de boa fé será prejudicado. Os efeitos benéficos que se puderam produzir na constância do contrato vão manter-se. Vão manter-se, porém, na esfera jurídica dele.

Ex: A, de boa fé, foi herdeiro de B, com quem celebrara um casamento inválido e que morre antes de decretada a invalidade do casamento. Como a circunstância o beneficia, vê-a permanecer. Caso, porém, estivesse ele de boa fé, e houvesse que proceder ao pagamento de uma dívida, o carácter desvantajoso da situação leva o legislador a não o onerar.

E se entabular relacionamento com terceiros?
Dependerá da circunstância. Caso esses terceiros celebrem com este nubente um contrato que apenas atenda à circunstância pessoal (escrever a biografia de alguém) os efeitos do casamento não são chamados a depor. No entanto, se o contrato disser respeito a bens que sejam conjuntamente administráveis pelos dois cônjuges, há um nexo claro de dependência face ao casamento, e logo, á pessoa do outro cônjuge, Assim, não se entenderá de outro modo que não pela produção de efeitos para terceiros, caso um dos contraentes esteja de boa fé e beneficie com a permanência dos efeitos produzidos.



+







IX


Deveres pessoais. O dilema das normas respectivas depois da última Lei do Divórcio


Até aqui, o Casamento na sua evolução tradicional. Mas é esta a evolução de estudo compatível com a realidade que se vive?
Diria que o novo padrão do Divórcio modifica muitos aspectos.
Quando falo em padrão do divórcio não refiro necessariamente a Lei que entrou em vigor no final de 2008. Claro que esta o cunhou de modo decisivo. Refiro, sim, mais longe, toda a modificação que opera no regime de bens que pode mudar mercê da destruição da sociedade conjugal e as suas consequências; e uma espécie de toque aditivo na realidade que vinha de antanho e era já, nos tempos mais recentes, uma inversão do modelo dos deveres pessoais anteriores.
Falo, claro está, dos deveres pessoais. A lei enumera-os virtuosamente e todavia, apõe cautela: os conceitos usados são por vezes normativos. A comunhão de leito, o núcleo essencial do casamento, é cada vez mais ténue, numa lei que não o logra conceptualizar e sabe até que ponto deve pactuar com excepções inevitáveis. O voluntarismo do casal impôs-se. As pessoas permanecem casadas se assim entenderem, a





despeito do incumprimento de deveres legais e muito para além deles. A realidade deste mundo e sobretudo, a produção de efeitos jurídicos, dependem de uma propositura de acção de divórcio. É a arguição do fim do casamento que traz à superfície a sua oportunidade como critérios de prova, no caso de apenas um dos cônjuges pretender manter-se casado.
Creio que nos aproximamos, de facto, do regime alemão, que impõe a declaração às partes de falta de condições para que a realidade conjugal subsista, mas não mais do que isso. E tudo o resto são temas da esfera de intimidade que o juiz não terá margem de acção para conhecer e ponderar.























B:-EXCURSO: INEXISTÊNCIA; INVALIDADES MATRIMONIAIS

Relembramos, a terminar este ponto, o esboço de problemas relativos às invalidades cujo enunciado se apresentou. O propósito era o de chamar a atenção para o conceito de invalidade no Direito português, uma vez que se chamaria a depor a invalidade do casamento religioso.
Sendo esta a sequência usada, seguiremos com a apresentação dos tipos de invalidades que a lei consagrou no direito português. Não se tratará de as analisar com exaustão, mas de ver o núcleo de problemas normativos em que se inserem estas realidades que, no Direito da Igreja, assumem uma feição específica.
Por outras palavras: veremos se são “parecidos de família” os casamentos anuláveis ou até inexistentes da nossa lei e os casamentos nulos segundo o Código de Direito Canónico.


Casamento: Inexistência, Invalidades
Não me parece viável a compreensão do regime de invalidades de formas de Casamento, designadamente de Casamento Católico, afloradas pela CRP e resolvidas pela lei civil em vários momentos, sem estarmos na posse de uma noção geral acerca das invalidades que perpassam o Casamento segundo a lei em vigor.
Por isso voltamos ao tema, com abordagem tópica mas que permita guiar o seu acompanhamento.
Remeto para a lei e para a doutrina citada o regime pontual, vertido ao longo dos preceitos do Código Civil, para esta matéria. Chamando, naturalmente, a atenção para o prazo internupcial exigido, quando este se impõe, bem como a sua justificação.
Vejamos primeiro os casamentos inexistentes (artigo 1628º).
Serão aqueles que tenham sido celebrados perante alguém que não tenha competência funcional para o acto, salvo tratando-se de casamento urgente;
O casamento urgente não homologado;
O Casamento que foi celebrado entre pessoas que não manifestara a vontade nesse sentido.
O elenco do artigo 1628ª explicita este núcleo que deixamos aqui aflorado nos seus tópicos mais salientes.
O casamento inexistente não produz efeitos
Casamentos em que se verificam causas de anulabilidade Cfr. Artigo 1631º).
Será anulável o Casamento contraído com impedimento dirimente;
Celebrado, por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de vontade ou com vontade viciada por erro ou coacção;
Sem a presença de testemunhas, nos casos em que a lei as exija.
[cumpre analisar com cuidado os artigos 1624º e seguintes, relativos a situações que configuram falta ou vícios da vontade]

HIPÓTESES A RESOLVER

Casamentos cuja invalidade decorre de falta de vontade de celebrar matrimónio:
Caso 1
Ex: Xavier faz saber a Eulália que todos os documentos que tem em sua posse sobre o passado criminal desta, e até agora ocultado, virá à tona, caso ela não case com Firmino, filho de X, que precisa de um apoio experiente e de uma mão forte na liderança da sua vida: Eulália, precisamente.


Ponderando entre o opróbrio do aviltamento social e a expectativa da situação económica do marido, Eulália preferiria a primeira; mas não quer cair na lama e casa.
Como se qualificará a situação? [veremos o problema de novo quando da análise do Casamento]



Caso 2
E se, porém, Eulália casasse por outro motivo: ponderando, concluísse que a actual situação económica do futuro marido e a herança dos sogros são bem tentadoras, auguram um futuro apetecido?
Idem, nota anterior

Caso 3

Suponhamos que Gabriela se enamora de Hermano e não sabe que Hermano tem um passado turbulento: droga, crime organizado, militância terrorista…
Releva este erro para efeito de invalidação?
Ibidem, primeiras hipóteses.


Casamentos em que se verificam Impedientes (artigo 1604º): a especificidade.

Bem mais “permissivo” é este regime, que compreende aqueles parentes mais distantes na relação genética e porventura, ainda cultural.
Caso
Se Teresa resolve casar com Urbano, sendo que se trata de sobrinha e tio, o casamento não está fora do horizonte jurídico.
Porém, em que termos? E que sucederá, caso não sejam promovidas antes as providências necessárias?
[A lei separa as situações em que a impossibilidade de casar incide sobre certas pessoas daquele casos que afinal estão na linha jurídica das invalidades negociais em termos amplos. Não estando ainda no âmbito da análise dogmática do Casamento, chama-se a atenção para a sistematização da Lei, que reflecte esta preocupação].



REVISÃO DE MATÉRIA

Casamento e União de Facto: o núcleo pessoal exigível

E abandono por um tempo este mundo do Parentesco para voltar àquelas formas de Família que se revelam menos ortodoxas. Penso nos pressupostos da União de Facto, por comparação com os do Matrimónio, a forma de união intersubjectiva por excelência.
A razão deste breve regresso deve-se ao necessário apuramento do grau de consolidação que se deve exigir à relação entre os unidos de facto, de modo a que as consequências jurídicas da União operem.
_ Suponhamos que Diana e Fernando casam, combinando à partida que interpoladamente viverão separados e se comportarão pondo de parte vínculos conjugais. Durante uma dessas fases, Fernanda Morre.
Não se põe em causa a subsistência do casamento, que entre ambos vigorava nos termos de uma vontade pessoalmente conformada e se submetia ao regime formal próprio.
Mas suponhamos agora que Diana e Fernando são unidos de facto, meramente. E que fizeram acordo idêntico. Quando morre Diana, tem Fernando direito, por hipótese, à casa de morada de família, como tendo vivido em União de Facto protegida?
Em princípio, parece correcto afirmar que sim. Pois terá sentido conferir menos plenitude de efeitos a este tipo de união, que se pretendeu mais informal, “descomprometida”, do que sucede com a união formal por excelência?
Direi que Diogo e Fernando casados assumem publicamente o seu compromisso _ na esfera pública, através do contrato que celebram. Isto projecta na comunidade um reconhecimento directo da situação/estatuto pessoal de ambos, de tal modo que, não manifestando o casal outra vontade. Será o Casamento e os seus efeitos que a sociedade esperará acolher.
Diana e Fernando, unidos de facto, exibem uma atitude de indiferença ante a esfera pública, ao menos, no que faz secante com os elementos essenciais da sua relação de União. O ónus de provar a existência de direitos decorrentes desta corre a cada passo, a cada momento da existência da União de Facto. É a opção do casal; é o modo de respeitar, em plenitude, as consequências jurídicas.
O mesmo tipo de argumentação se pode chamar a depor a propósito da famigerada aplicação do artigo 496º do Código Civil ao unido de facto sobrevivo.
Se bem recordam o exemplo, que não consta em pormenor destes “Sumários” mas foi discutido nas nossas aulas, questionámos a bondade de uma interpretação restrita, ou literal, da lei. Uma interpretação que permita ao unido de facto assumir o lugar de um cônjuge sobrevivo inexistente, muito à frente de parentes afastados, em nome da dor que com toda a probabilidade é muito mais intensa do que a dor de um daqueles.
Que dizer? É indiscutível a maior proximidade do espírito da lei deste unido de facto, do que a de parentes afastados. Por outro lado, o argumento demolidor do direito dos unidos de facto a perceber danos morais, que será a total “surpresa” dos destinatários do ressarcimento, a violação consequente do princípio da segurança jurídica, não tem uma densidade evidente. Com efeito, terceiros adstritos ao pagamento da indemnização dificilmente terão mais do que uma ideia remota acerca do núcleo dos visados: assim como a expectativa destes será lassa, na maioria dos casos.
Em que ficamos?
Diria que a lei não privilegia aqui, nem uma relação concreta de parentesco ou outra, nem de proximidade. Olha a existência da dor e do direito a compensá-la face aos principais visados. Publica ou privadamente assumidos, os unidos de facto estão aqui. Deverão perceber a indemnização, nos termos que a lei estipulou para o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens. Penso que as regras gerais do Código Civil em matéria de integração de lacunas (cfr. a “norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar de acordo com o espírito do sistema”) resolvem legitimamente o problema. Não será mister criar legislação específica para o caso: a solução decorre já da ordem jurídica portuguesa.
Direito da Família na Constituição (continuação)
Chama-se a depor, agora, o papel que a Constituição comete à protecção constitucionalmente imposta dos menores.
Começo em breve trecho sobre a procriação medicamente assistida, É certo que muitas vezes a sua localização problemática não surge aqui, antes a propósito do Casamento, ou de outras relações familiares. Compreende-se a referência biológica inerente (terá de haver uma decisão de progenitor ou progenitores) mas nada tem a ver com o eixo fundamental, a fonte de legitimidade desta procriação. Pois antes de mais, do que se trata é de aquilatar do bem fundado de gerar seres humanos em condições diversas das habituais, sendo evidente que persiste um quadro de desconhecimento, biológico desde logo e com evidentes repercussões de ordem pessoal, afectiva, a perpassar toda a sequência procriativa.
Pergunta-se, então, acerca da legitimidade de trazer para este mundo desconhecido ainda mais factores de desconhecimento, sobre a origem da pessoa e a sua subsequente situação; sobre os efeitos do “factor desconhecimento” e as suas consequências. Que garantia temos de dar por adquirido, procedendo assim, o respeito pela dignidade humana, ao permitir que acresça uma margem de desconhecimento acerca deste novo ser, margem que não decorre da álea da criação em geral, mas de outros factores que trazem consigo suspeita de complexidade e efeitos ainda insondáveis.
Creio que toda a discussão a fazer acerca das condições particulares que possam atribuir maior margem de favorabilidade a uns casos ante outros (cfr. casais que se provam impedidos de procriar e afirmam o impulso da maternidade/paternidade) não prescindirá esta reflexão prévia. Pois não se trata primacialmente de fundamentar um direito familiar, porventura situado na esfera recôndita dos direitos à maternidade e paternidade, à expressão dos afectos. O direito que antes do mais se ergue é o de cada pessoa e da sua circunstância. E posto que não podemos alterar aspectos essenciais de uma e outra, convirá, por igual, que os não pretendamos definir de acordo com as nossas mundivisões, padrões…
Já noutro plano, coloca-se o domínio dos direitos/deveres dos pais e encarregados da responsabilidade sobre a educação do menor. A lei, ao longo de muitas normas, que a Filiação exprime mas também a constituição firma, tal como as Declarações Internacionais, chega a um sistema de incumbências sobre cada educador. Este sistema cresce, a ponto de se reflectir sobre outros ramos do Direito. Uma mais forte consciência social das obrigações para com as crianças corrobora uma legislação densa noutros aspectos; estou a pensar no direito criminal perante os menores.
Também o artigo 36º da CRP desempenha um papel neste domínio, que se estudará mais à frente, pelo que se faz agora uma abordagem tão breve e remissiva.
































APONTAMENTOS


Aulas de Direito da Família, 2009/2010
















AUTOR

PROF. MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA











“A minha família é o povo do mundo”

Adelaide Teles, que foi autarca da Graciosa





















Apresentação do Programa.
Ao iniciar o Curso de Direito da Família parece-me fundamental, não só apresentar o objecto do seu Programa, mas ainda a justificação do mesmo.
O objecto do Direito da Família não é difícil de identificar nesta fase em que os alunos se encontram, nos últimos anos da licenciatura.
É uma disciplina que versa a realidade das instituições que a ordem jurídica e social contempla, no seio das quais as pessoas nascem, desenvolvem-se como seres humanos e exprimem afectos essenciais, bem como outros aspectos da personalidade. É o direito da esfera íntima.
É também o direito que estrutura modos de constituição ou incursão numa tal esfera, quando isso não pode ser contemplado pelas vicissitudes: morte dos pais ou parentes próximos, incapacidades dos mesmos…
Afirmei antes, quando tive ocasião de dar Aulas de Direito da Família ao 4º Ano, que inserido naquela fase, o Curso só teria sentido como uma disciplina de cúpula e de reflexão.
Terei admitido implicitamente que fosse possível um outro entendimento, menos crítico, da matéria. Terei sobretudo feito apelo à minha própria experiência, de quartanista desta Casa quando o enfrentei, à conclusão que então me pareceu evidente, de que a maturidade filosófica, social, jurídica, era incompatível com um estudo anterior.
Mas, menos de um ano passado sobre esse episódio não partilho tal opinião. Afinal, iniciamos a Filosofia do Direito nos tempos do 1º Ano e só ganhamos com a experiência formativa. A reflexão sobre os institutos sociais e os seus fundamentos, que o Direito da Família propicia, requer, sem dúvida, espírito crítico, capacidade de compreensão dos fenómenos sociais, políticos, capacidade de abstracção, maturidade para o ensaio inevitável de caminhos alternativos, sempre que uma solução mostra não satisfazer as solicitações cidadãs. Mas tal acontece em todo o Direito.
Onde está então a diferença?

O Tema do Direito Civil mais dinâmico nestes séculos
Diria que no modo como aqui somos interpelados. Pois em Direito da Família não é um instituto ou um acervo delimitado dos mesmos que se encontra sob a espada de Dâmocles da mudança. São todos, ou quase todos.
Dieter Schwab é um Autor alemão, um grande civilista, um nome maior do jusfamiliarismo. Quando confrontado com a missão de introduzir a este ramo escreveu que em nenhum outro lugar encontrava o Direito Civil tanta alteração ao longo do último século, em nenhum outro ramo fora tão favorável, também, à aceitação de tal mudança.

Da sociedade industrial aos novos direitos e às realidades ainda mais recentes.
Pois a Família de hoje não é a da sociedade rural, nem a da primeira sociedade industrial, sustenta. E, mais do que isso, evoluiu ao longo de décadas, mercê das Guerras, da nova consciência da dignidade das pessoas, da luta subreptícia umas vezes, frontal outras tantas, dos dois sexos pela igualdade na polis, na identidade dentro do agregado familiar. Evoluiu, enfim, na era dos novos direitos, mercê de reconhecimentos outros de direitos: dos homossexuais; dos embriões, com o desenvolvimento de tecnologias sofisticadas. Evoluiu com a diversidade dos papéis que desempenhamos durante o tempo e são desiguais mas promanam de uma experiência de vida que os tornam singulares: os idosos, os viúvos, os que recompuseram múltiplas vezes o seu modo de vida afectiva.
Sugiro que leiam Schwab, mas reconheço que bem podemos acompanhar as linhas mestras do seu pensamento de antemão.
O Direito da Família cura de uma realidade institucional que tem sofrido enormes mutações. Não é mais a Família em sentido biológico apenas, embora essa componente biológica seja essencial. Não preciso de recordar as consequências sociais negativas que resultam do abandono, do repúdio de um filho, de um parente próximo. Inscrita no código de valores que sufragamos desde logo em sede constitucional há uma axiologia que tem por base a realidade familiar próxima. E, subjacente à mesma, não está apenas (embora o esteja de algum modo) a solidariedade, o espírito de entreajuda, que invectiva a não abandonar um pobre, um indefeso. Há mais do que isso, ainda que se afigure difícil determinar o quê, qualificar o fundamento deste dever para com a Família.

A atitude: o “direito dos afectos”
Nos tempos mais recentes fala-se e escreve-se dobre a importância dos afectos no Direito. Estes afectos seriam o alicerce a partir do qual se pode erguer a rede de obrigações de ajuda entre pais e filhos, netos e avós, e muitas outras relações de verdadeira proximidade vivencial.
Mas a delimitação dos contornos dos afectos é um Sísifo. Em que consiste? É verdade que já Aristóteles sustentava uma ética de responsabilidade pelas emoções e pelo modo como as exprimimos em termos sociais.
Em todo o caso, a ideia releva de uma outra ideia anterior, que ganhou foros na doutrina anglo-americana e também europeia a partir dos anos 60. Trata-se da ideia da concepção do homem como ser cultural, social, em grande medida produto do meio que o recebe e do qual partem os influxos essenciais na construção da sua personalidade.
Esta ideia tem repercussões imensas na visão que se tenha da função educativa da Família (aqui muito diferenciada das teses tradicionais da construção da personalidade pelo arbítrio) e sobretudo, abre as portas a uma concepção familiar que muda. Pois não só a identificação de cada ser humano, mas por igual a do par humano ou de outra forma de agregado pela qual opte cada um, dependem de uma escolha social que nada, a não ser a opção de cada ser humano, condiciona. É este afinal o caminho que conduz à persistente tentativa de opção por formas institucionais moldáveis, extensíveis no seu campo de aplicação a outras situações. Quando se fala no matrimónio homossexual, na adopção por esse modelo de par, está-se neste ponto: clamando pela integração de um outro modelo de par na instituição matrimonial.
Mas será só isso que acontece? Ou, admitindo-o, é antes o Casamento que se altera, no sentido inicial com que se edificou sobretudo a partir do cristianismo, de união de carne e leito, de projecto de vida que comporta, senão a vivência no seio de um figurino sexual determinado, pelo menos um ritual de vida que o tem como referente e do que, afinal, apenas um pouco se afasta, quando assumidamente se afasta?
Chegam-nos neste tempo novas edições os Direitos das Famílias. Em Portugal, esteve em Abril a jurista Maria Berenice Dias, que escreve sobre o Direito das Famílias. Porquê? Porque quer acentuar a diferença, a pluralidade de perspectivas.

Os anos sessenta e as grandes mudanças
Creio que é claro para a Autora que é correcto, possível admitir perspectivas várias sobre o género, sobre as possibilidades de modelos de matrimónio e instituições afectivas abrangíveis por essa casa comum que seria a Família.
Não tenho, porém, a opinião de que a Constituição da República Portuguesa opte por tal caminho, vá por aí. Creio que a ideia de Casamento está entre nós cunhada pela separação firme entre os dois sexos, sem prejuízo de uma total falta de legitimidade para imputarmos ao legislador constituinte preconceitos impeditivos de outras construções jurídicas para situações diferentes. Justiça distributiva, sim, porque se entende que são diferentes os sexos.
E justiça distributiva que requer o estudo e conseguinte conhecimento das diferenças aí onde estas se evidenciam. Ora, como veremos adiante, há uma pluralidade de formas de modelação jurídica da realidade familiar entre nós: o Casamento, a União de Facto, outras formas de Relação Parafamiliar.
É verdade que uma é dominante e as outras se ofuscam pela parcimónia. Será este aspecto critério de justificação para um seu estudo esmorecido também?

Estratégias de estudo: tornar proeminente o que mais se evidencia e ocultar a outra realidade jurídica?
Não creio. Lembro Foucault, a ocultação dos temas que a sua supressão científica, ou minoração dogmática, vem provocar.
Ex: Imaginemos que se desencadeia uma onda de silêncio na doutrina em torno das matérias da Família; poderá suster-se o debate? É certo que não, pois este não se desenvolve apenas nos meios universitários.
Mais eficaz será a tendencial desvalorização científica. Mas, diferentemente do que ocorreu já, esta não se desenvolve apenas em sedes institucionais. E, sobretudo, os centros universitários, que proliferam, não dimanam o mesmo tipo de opiniões. É muito difícil a transposição prática da regra enunciada por Foucault, neste âmbito.

É certo que o casamento é o modo de Família mais expressivo e que as outras formais se subalternizam em dimensão. Mas não creio que seja igualmente certo que exista hoje uma simetria entre o carácter mitigado na experiência social das outras uniões para além do Casamento, e a importância que vem registando como tema de politologia, política legislativa também. Enfim: como tema que provoca a discussão acesa acerca do entendimento constitucional e se mostra susceptível de trazer para a agenda da opinião pública muito mais do que os temas “partidariamente correctos”, aqueles que um regime partidocrático impõe e para os quais, por regra, não se encontra na ordem social surto de resposta autónoma.
Assim, penso que a Família como tema de reflexão, a inclusão dos elementos do seu objecto, são determinantes. E por aí se começará, portanto.
Estamos em plena Dogmática Geral, portanto. Preferi dar ao primeiro Capítulo um outro título, Introdução às bases do Direito da Família. É que me pergunto se, afinal, teremos condições para neste modesto tempo que nos é destinado penetrar verdadeiramente em temas de dogmática especial com o apuro que esta requer. E, nesta fase primeira, afora o panorama da Família legal contemporânea, são as questões tradicionais que os ramos do Direito convocam que nos ocupam.

O inevitável influxo interdisciplinar
Assim: a Família na Ciência Jurídica, as ligações ao direito privado e a crescente ligação ao direito público, Constitucional e Penal. Hoje, estas relações são absorventes, muitas vezes esgotantes. Assim acontece, como veremos, com os temas de Direito Internacional, com as Convenções Internacionais que proliferam, relativas a Mulheres em risco (Tráfico, Escravatura) e a Menores, também aos Idosos. Não esquecendo a ligação ancestral do Direito da Família português ao da Santa Sé, que se modificou de modo importante com a Concordata 2004.
Mas as ligações ao direito privado permanecem. Não sei dizer em que medida proliferam, se proliferam. Os regimes de bens são múltiplos, a lei é permissiva, como veremos, de uma grande amplitude nesse domínio. Mas será, na prática, tão importante assim o regime de bens num Casamento que tende para a fragilidade, que surge no horizonte legal, vivencial dos nubentes com medidas de dissolução ágeis e que parece vocacionado para a precariedade? Não estou emitindo um juízo de valor sobre a opção legislativa. Mas olho as novas normas no diálogo que impõem com o direito anterior e pergunto-me acerca do carácter em parte semântico que este vem, em alguns aspectos, assumindo.
Claro que a Lei do Divórcio, entrada em vigor há menos de um ano, desempenhou aqui papel fundamental. Estudá-la-emos a seu tempo.
Ainda no âmbito privado, surge a ligação ao direito sucessório. Tão importante para alguns autores que se criou, designadamente na nossa Faculdade, uma disciplina de Direito da Família e das Sucessões.
Este Direito não mudava o conteúdo das normas vigentes, mas procurava centrar o núcleo de cada um dos Direitos em conexão com o núcleo do outro. Obnubilando os elementos que, tanto no Direito da Família, como no das Sucessões, relevavam dos contributos dos momentos liberais e de vanguarda da legislação, acentuava o seu carácter institucional. Por este modo, centravam os estudantes a atenção nos elementos em que a vontade dos progenitores, titulares de bens, se fazia incidir sobre o proveito dos membros do seu agregado. Membros face aos quais todos os demais adquirentes mortis causa de bens eram figuras alheias, de móbil concorrencial e compreendidas numa lógica hereditária que sublinhava a sua distância face ao fenómeno sucessório em questão.

Os problemas da sequência da matéria
A seu tempo veremos das consequências de uma tal compreensão.
Enfim, analisaremos as fontes essenciais do Direito da Família, a Constituição e o Código Civil. Se estivessem na Alemanha (suponham que haviam tido a dita de serem alunos de Schwab!...) encontravam com muita probabilidade já um Capítulo intitulado Enquadramento Constitucional, que inaugurava as fontes do Direito da Família. Hesito em ir por aí. Reconheço a supremacia dos princípios constitucionais, mas tenho também presente que a interpretação da Constituição se completa, nesta matéria, com um a plêiade de conceitos oriundos do direito civil O Código Civil fornece a primeira pista, logo no princípio do Livro IV, ao enunciar as fontes das relações jurídicas familiares. Estudar-se-á aqui, pois, o parentesco, o casamento, a afinidade, a adopção. Diria: numa primeira fase, o parentesco, o Casamento. São os conceitos que referenciam situações e instituições determinantes na compreensão da Constituição, de todo o Direito da Família.
Mas sob que perspectivas?
Vejamos em traços muito gerais o objecto das leis a trabalhar, os regimes jurídicos que nos vão ocupar e tentaremos surpreender a partir daqui um fio condutor.
Inicialmente, quando se estudava Direito da Família nas Faculdades de Direito, pegava-se no Código Penal (de Seabra, depois no Código Civil de 1967) e no caso deste último, abria-se logo o Livro IV. É verdade que nessa altura já se tinha aprendido o objecto do Livro da Família, como subramo do Direito Civil, ou mesmo tomado contacto com os conceitos de casamento, a propósito dos negócios jurídicos, e das relações familiares bem como da condição de menor, do poder paternal, estudando tantíssimos institutos nas cadeiras de introdução ao direito privado.

Mudanças nas fontes
Mas aqui o ângulo de observação é outro.
Exemplificando. Claro que quem contrai casamento cria laços familiares, constitui uma família. Mas que características tem esta?
Até aqui, referimos a pluralidade da Família na perspectiva de um possível desdobramento de formas de manifestação. Agora, porém, o foco da análise é diferente. Trata-se de ver a família não através da descrição dos seus factores constitutivos, mas sim do desempenho social que exibe, independentemente do modelo sexual. Ou melhor: atendendo a que, na sociedade dos nossos tempos, este outro problema coloca-se essencialmente em relação às famílias tradicionais. A elas afinal nos devemos dirigir, por uma questão de realismo.
É uma família autocrática, exprime a autoridade de um dos seus membros, aquele que tem mais poder intelectual, financeiro, mediático? Faz sentido dizer que estas pessoas contrataram, como afirma o Código, ou o acordo que celebram tem outro sentido?
E se duas pessoas decidirem viver juntas e não casar? Há vínculos jurídicos reconhecidos pela lei apesar desta situação, que há décadas se denominaria de ignomínia (“um escândalo”, na picardia de Eça de Queirós, mas sem prejuízo de recordarmos que o actual Código Civil ainda não abriu mão, como veremos, da expressão concubinato), um concubinato, uma imoralidade com algum reflexo jurídico?
Vemos então que o anátema social existe, quer em razão do modelo de vida sexual, quer das formas de organização interna. Uns aceitam a igualdade plena dos cônjuges, dos unidos de facto, outros rejeitam-na e persistem em quadros familiares que exibem paradigmas anteriores. A autoridade do marido/homem paterfamilias é uma relíquia que perdura em vastos meios.
Claro que não pode ser assim, pois há uma lei sobre uniões de facto, o que mostra que colhem a respeitabilidade do legislador, reflexo seguro do respeito social. Mas as reticências mantêm-se. Há quem considere a lei um erro. Independentemente de formular agora juízos sobre ela, uma coisa parece certa: há hoje mais lei entre o céu e a terra do que o Livro IV do Código Civil. Ora, deve esta matéria albergar-se na nossa disciplina? Se provarmos que se deixa cobrir por um denominador comum, a resposta será afirmativa. Mas não basta ser legalista e argumentar com a existência de uma lei. O legislador pode ter criado um regime obsoleto, ou terminologicamente indutor em erro. E que fazer nesse caso? Só se detivermos uma matriz dogmática segura poderemos opinar. Ora isso implica um conceito material de Família para efeitos de Direito.

Um outro regime legal de Família?
E o parentesco, que importância tem para além das relações mais estreitas que marcam o núcleo familiar nos nossos dias? Faz sentido conferir o poder paternal a um tio que vive noutra cidade ou mesmo noutro país e mal conhece o sobrinho? Não seria mais realista recorrer de imediato, em tais casos, a instâncias da comunidade, experientes, pedagogicamente apetrechadas para ajudar uma criança, um jovem, disponíveis para acompanhar os seus conflitos? Ou antes dá-lo de adopção a pais de vocação que o desejem? Ou explorar as potencialidades que a nova Lei do Apadrinhamento Familiar desde ontem nos oferece? *
Mas olhando o próprio casamento, à primeira vista, o reduto da estabilidade dogmática da nossa matéria. Deverá ele continuar sendo o casamento de pessoas de sexo diferente ou abre-se a constituição, a sociedade portuguesa, a uma inflexão neste domínio? E onde encontrar a sede da resposta: na Constituição, num sentimento social evidente, ou aceitar que subsistem dúvidas, cabendo saber de que grau: grande, poucas…?
E será que anda bem o legislador em aceitar que se dissolvam com facilidade as sociedades conjugais, ao fim de um ano, como admite o Decreto que a Assembleia da República, após o veto presidencial, e não obstante o mesmo, tendo vindo a converter-se em Lei por decisão da Assembleia da República (Lei do Divórcio) Decerto que este veto, político, exprimiu a posição do Presidente e mais do que a sua própria, a posição de um espectro de que se entende representativo, o que aponta na direcção de que a nova Lei irá, a entrar em vigor, quebrar nexos importantes na sociedade portuguesa.

Actual conceito de Família
Quem é esta Família que a um tempo se alarga e o retrata na lei, que se demite da vocação à perpetuidade e o quer retratar mais incisivamente na lei, que legisla em nome e no interesse dos menores e tantas dúvidas tem por resolver a propósito das decisões que toma?
É a personagem central da nossa cadeira. Interpelada por nós, estudantes, docentes, e interpeladora, já que requer opinião para os seus contornos que vêm mudando em crescendo. Recorde-se que a Lei das Uniões de Facto mudou, mas mantém-se agora inalterada desde 2001. Não obstante, verificou-se tentativa recente no sentido do seu alargamento. E, apesar de não ir por aí o sentido imediato do caminho legislativo, far-se-á uma referência. Pois, afinal, é o sentido pulsante de um espectro social que aí se exprime e sendo-o, convém proceder à sua ponderação. Os temas centrais são os que referimos. Vendo bem, é todo o Direito da Família que eles convocam, pois não é possível trabalhar isoladamente os vários institutos.








II

Características contemporâneas do Direito da Família
Direi pois que duas características marcam o recente Direito da Família, instabilidade e mudança legislativa efectiva, arrisco creditar que tantas vezes algo precipitada.
Mas tomaremos um ponto de referência, já que o nosso âmbito é dogmático, e a história vem a propósito na medida em que prove o problema, a reacção ao problema.
O ponto vai ser a Reforma de 77. Com ela não nasce o Código Civil, mas renasce o mundo do Direito da Família adequado à Constituição de 76.

A história recente
Vejamos o que acontece.
Entrara em vigor a Constituição de 76. Com ela, surgia, entre os Direitos Fundamentais, o direito à igualdade perante a lei, o direito a constituir família, dentro e fora do casamento e o direito a contar com um regime igualitário dessa mesma relação matrimonial, ainda que o sistema formal adoptado para contrair casamento não tivesse sido o mesmo, o que acontecia, no caso dos casamentos católicos, que a Constituição reconhece, agora de novo, após a revisão da Concordata com a Santa Sé.
Quando olhamos esta Reforma recordamos nomes muito importantes da Faculdade de Direito de Lisboa, e desde logo, o da Senhora Profª. Isabel de Magalhães Collaço, que presidiu, o da Senhora Doutora Maria de Nazareth Lobato Guimarães e o da Dra. Leonor Beleza, então assistente de Direito da Família e especialista da matéria junto da Comissão da Condição Feminina.
Lendo o preâmbulo da Reforma na Parte que respeita ao Direito da Família, que é aliás uma leitura essencial nesta fase primeira do Semestre, verificamos que os temas que marcam a Reforma são o tema da igualdade e seus reflexos na Família, bem como a proibição de discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento, tal como, ainda, a questão do divórcio e as novas modalidades e pressupostos da sua concretização.
Escrevia-se no texto do preâmbulo: “Deve, de resto, notar-se que na última década se tem assistido em quase todos os países europeus a profundas alterações do direito da família, determinadas pelo triunfo do princípio da igualdade entre os cônjuges e pela revisão de muitas das soluções tradicionais em matéria de filiação.
As soluções agora adoptadas puderam assim basear-se em larga e recente experiência de sistemas jurídicos próximos do nosso”.
Mas a afirmação continha muitos laivos de modéstia, pois que esta Reforma de 77 exprimia, diferentemente do movimento que percorria muitos outros Direitos em sede de Família, a necessidade de ultrapassar soluções inconstitucionais e implantar na ordem positiva o Estado de Direito. Foi por isso uma Reforma funda, comparada com as suas congéneres de outros países.
Desde logo, o princípio da igualdade entre os homens e as mulheres vem determinar a sua não discriminação na sociedade conjugal. Marido e mulher lideram esta sociedade conjuntamente, o que vale por dizer que será inconstitucional uma norma (contida, por exemplo, em Convenção Antenupcial, em acordo celebrado antes do Casamento, que estudaremos adiante) de acordo com o qual o marido delegue na mulher, ou o contrário (seria este contrário, presumo, o mais previsível, já que era a realidade correspondente à experiência anterior) a orientação dos assuntos da família, o modo de educar os filhos, os princípios de vida a que deveriam respeito, como por exemplo a escolha da casa de morada…A lei retoma o filão constitucional, ao estipular que ambos os cônjuges irão reger a vida comum. Por outro lado, o papel de ambos é tido em igual dignidade, mesmo na sua expressão financeira. A lei desinteressa-se de saber se os rendimentos obtidos provêm do trabalho de um ou de ambos, para efeitos sucessórios. Aí, também o cônjuge sucessivo que não tenha trabalhado fora de casa e não tenha sequer participado no montante hereditário através de bens próprios, adquiridos por qualquer via (doação, herança…) estará na primeira classe dos sucessíveis, ao lado dos filhos e mesmo em situação de vantagem face a estes, já que é titular do estatuto de herdeiro legitimário ou forçado e detém pelo menos um quarto dos bens que correspondem à massa desta fatia hereditária.
Por outro lado, valerá, como fundamento de invalidade do casamento, o erro sobre a pessoa do outro cônjuge, desde que corresponda a qualidades suas essenciais e além disso, o divórcio passa a ser possível, não apenas nos casos de incumprimento dos deveres conjugais, como ainda se porventura um dos cônjuges não assentir em assentir num mútuo consentimento, desde que a separação se verifique há pelo menos seis anos. Atentando a que o Código de Seabra apunha aqui um prazo de dez anos, a diferença é decisiva, direi que socialmente algo “labónica” ainda, mas favorecedora de possibilidades e indicativa de que a lei não persiste em impor a solução do “casamento para a vida” a quem não comungue desse projecto ou não parta de ideias em tal sentido.
Ora pegámos na Reforma de 77. Certamente porque foi a mais importante que ocorreu a marcar o essencial do Direito que ainda vigora.
Mas também porque não só por acção, como por omissão, ela marca a agenda dos primeiros temas contemporâneos do Direito da Família.

Um Debate na Faculdade de Direito e uma Reforma jusfamiliar
Quando penso na Reforma de 77, recordo um texto, um livro, que foi publicado poucos anos antes da entrada em vigor daquela. Um livro que li na adolescência e (permitam a nota pessoal) ainda hoje acredito que foi um grande responsável pela opção que depois fiz: Direito.
Trata-se da publicação do primeiro grande debate sobre estes temas a que a Faculdade de Direito abriu as suas portas em 1968 e no qual participaram figuras de vários domínios, mas entre eles, juristas empenhados na Reforma, naquele tempo.
O livro é “A mulher na Sociedade Contemporânea”, uma publicação da Associação Académica de Direito de 1969.
Se (como espero) o percorrerem, verificarão que os grandes temas jurídicos então eleitos são relativos ao estatuto da Mulher, como cônjuge, como mãe. Eu assinalo aqui os de Elina Guimarães, que faria uma análise histórica sobre o estatuto da mulher dentro do casamento, perante o marido e os filhos. Elina Guimarães chama a atenção para que sendo, “dentro da sua época”, o Código Do Visconde de Seabra (1867) uma legislação “aberta”, persistia, em sede de situação jurídica das mulheres, em manter duas grandes ordens de fundamentos de incapacidades discriminatórias das mulheres. Por um lado, as que provinham logo do próprio sexo; por outro lado as incapacidades em razão da família, como as que diziam respeito à mulher casada e à mãe. Sobre estas últimas, focava a perda da nacionalidade que o casamento com estrangeiro provocava (e que só verificada uma situação de perda absoluta de qualquer nacionalidade podia ser repristinada, mediante um processo de todo o modo complexo); o dever de obediência ao marido, chefe da família, o dever de o acompanhar para todo o lado, podendo até dar-se o caso de ser obrigada a regressar pela força ao domicílio conjugal. A administração dos bens competia ao marido, mesmo a respeitante aos seus próprios bens. E, recordando a Lei do Divórcio, segundo a qual os fundamentos para a separação de facto eram iguais para ambos os sexos, nem por isso deixou de apontar o dedo ao novel então Código Civil de 1967, dizendo então: “…peço vénia …para declarar que o art.º 1674º do novo Código, fulcro da situação conjugal, é detestável: ‘o marido é o chefe de família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum’”.
Era, suponho, constrangedor já naquele tempo, reconhecer aqui, e ouvir de uma das mais antigas e prestigiadas ex-alunas da Faculdade, que estava em vigor a norma segundo a qual o marido podia requerer a entrega civil da mulher no lar conjugal, caso esta o abandonasse sem “fundamentação justa”.
A Dra. Maria da Conceição Homem de Gouveia voltou ao tema do estatuto jurídico da mãe para advertir que “o poder paternal regulado pelo novo código Civil [de 1967] deverá ser interpretado extensivamente, para poder adaptar-se às realidades sociológicas”. Ou seja: não era, no entendimento da Autora, inequívoca a interpretação da lei segundo a qual o estatuto da mulher mãe ombreasse com o do marido em matéria de exercício do poder paternal.
Mas do meu ponto de vista, o texto verdadeiramente premonitório que o livro que venho citando contém é de uma escritora, Sophia de Mello Breyner Anresen. Sophia intitulou a intervenção de “A Mulher na Cidade do Homem” e começou por dizer que não vinha falar de direitos mas de vocação feminina, se é que “existe uma vocação”.
A verdade, porém, é que falou de direitos da maneira mais incisiva. Recordou o Evangelho, onde entre Marta, a fazedora de coisas materiais e Maria, a teórica, a contemplativa, fora Maria a que “tivera a melhor parte, pois foi ela que “ascendeu à contemplação do divino”. No entanto, continuava Sophia, “as sociedades vêm tratando a mulher como se fundamentalmente ela fosse Marta”.
Sophia terminava recordando que “a maternidade é missão e responsabilidade”. E que por isso, através dos filhos que tem, conclui-se que a história da mulher não é a sua história: “pois não existe o problema da mulher, mas sim o problema da humanidade. E é por isso que o Feminismo é um caminho errado e ultrapassado. Aliás sempre à roda das mulheres se criaram falsos problemas”. E acrescentava também: “Assim muitas vezes se tem oposto vocação maternal e vocação criadora. Mas a maternidade é plenitude e não mutilação, é maioridade e não menoridade. E a maternidade que é escolha e vocação é também escolha e responsabilidade”.
Eu admiro o carácter premonitório destas palavras, porque creio que elas contêm a universalidade que os Direitos Humanos projectam. Ora a dignidade das mulheres, a igualdade, surgem pouco depois na Constituição de 76. Menos de uma década.

O ensino do Direito da Família
E na Faculdade de Direito?
O Direito da Família ficou, naqueles anos que se seguiram à entrada em vigor da Reforma, entregue à Srª Drª Leonor Beleza, incumbida da regência de vários anos.
Houve, porém, uma fase em que o Professor Castro Mendes assumiu esta incumbência, com a colaboração de Miguel Teixeira de Sousa. Deve-se-lhes um fôlego decisivo na cadeira e sua evolução científica.
Só anos mais tarde a disciplina seria entregue aos primeiros doutores na área, depois da Reforma que a Faculdade sofreu mercê do trabalho de uma Comissão Revisora. Carlos Pamplona Corte-Real e, posteriormente, Jorge Duarte Pinheiro.

O maior ganho da Reforma: estatuto das mulheres, estatuto dos jovens.
Por aqui nasceu a Reforma. Ou seja, pelos temas matriciais do Direito da Família, pelo estatuto do pai de família, que aqui sai de primeiro plano no palco e assiste á entrada de outro personagem. Que pela primeira vez não é o único protagonista.
E os filhos?
Os filhos são, aqui, os menores ou os incapazes, aqueles que se submetem ao poder paternal. Indo mais longe, poderíamos falar dos adoptados.
Reflictamos rapidamente sobre o contexto em que a sua situação se modifica.
Claro que todos os seres humanos são ganhadores quando os direitos fundamentais se impõem. Seria dislate afirmar que não têm eles um papel relevante nesta nova geração jurídico-familiar. Têm-na, o que a igualdade entre todos, independentemente do nascimento, dentro ou fora do casamento, logo reflecte. Com a Constituição de 76 termina a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos Têm-na ainda, quando se implementa o seu interesse na determinação de aspectos fundamentais da sua vida. Porém, não são eles, os menores, os destinatários de um acervo legislativo imediato, ou com o impacto fundamental.
Em parte por esse motivo, o descontentamento e a inquietação neste nosso Direito continuam. Recordo que faço prova da disciplina num tempo (anos 80) em que se procurava já ver o texto de 77 com um olhar avaliador. “É uma Reforma demolidora, desagrega um projecto, muito mais do que constrói outro”, lembro-me de que sustentei na altura.
Mas a esta distância não penso assim, redimo-me da análise injusta que fiz então. A Reforma de 77 não é vocacionalmente demolidora de um edifício legislativo.
Por isso, antes de falar dos filhos, insisto ainda neste ponto do estatuto da mulher, afinal, no estatuto de um dos titulares do poder paternal.
Edificou um Projecto, permitiu traduzir com mais autenticidade, no Direito, as opções da vida e da experiência familiar que existiam, ou pretendiam muitos, em Portugal. Pretendia-se igualdade entre todos os membros, reflexo em cada solução jurídica do princípio da dignidade. Pretendia-se maior abertura à possibilidade de exprimir o projecto de vida que o casamento reflectia, ao invés da obrigatoriedade de uma retórica, absurda, imposição de algo às avessas. Pode decidir-se mal ou bem, mas tem-se o direito de tomar a decisão e a Reforma reconheceu-o. Mais: teve consideração pelo empenho de cada cônjuge dentro do casamento e assentiu em que o divórcio não era apenas uma questão de imagem social, era para muitos, sobretudo para muitas mulheres, a perda de uma referência em instituição. Elas a quem não fora reconhecido um papel cívico activo e que muitas vezes tinham entrado na família do marido aos 14 anos, a idade núbil então, em nome da sua alegada maturidade. Sem experiência profissional, tantas; sem experiência de integrar mulheres nos seus quadros, muitíssimos empregadores. Vedada mesmo a oportunidade de acesso a várias profissões, era preciso reconhecer a medida fortíssima em que o mundo de muitas mulheres portuguesas era a sua família, na melhor das hipóteses, aliada a uma vago sonho de alternativa que quase nunca concretizavam. Este mundo desaparecia entretanto e a Reforma de 77 foi muito realista no seu contributo para esse desaparecimento, ao mesmo tempo que tinha em conta o novo papel social e profissional, mas sobretudo, a nova dignidade e cidadania activa das mulheres: em matéria de titularidade de bens e na sua administração, de compromisso na edução dos filhos partilhada em co-responsabilidade, em matéria de definição das classes de sucessíveis, onde o cônjuge sobrevivo passou para o primeiro plano.

Estatuto das mulheres, estatuto das crianças: ganhos relativos
Mas não deixa de ser verdade que este pensamento jurídico estruturado, entre nós e internacionalmente, sobre as mulheres e o Direito da Família não tem a mesma vocação acolhedora quando pensamos nas crianças, como a não tem em sede de estatuto dos idosos. E refiro a questão das crianças e dos idosos lado a lado com o estatuto das mulheres porque, e apenas porque, estamos falando de personagens que o universo da família integra, ou seja, estamos vendo que direitos lhes são reconhecidos, em que medida o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos se cumpre, por um lado e em que medida se estruturam diferenças de carácter jurídico e função protectora dos que em certa fase se mostre mais carentes. Neste universo e sob estes pontos de vista, o estatuto das crianças e dos idosos era, tal como o das mulheres, carente de atenção do legislador. Não esqueçamos porém que o problema dos direitos das mulheres, o problema da igualdade de género, é sempre e muito diferente. É transversal a todas as faixas etárias, como o é a etnias, raças, culturas…Uma coisa é a discriminação em função da menoridade, outra ainda, a discriminação que acresce sobre uma criança do sexo feminino. Consciente de que é assim, escrevia a Dra. Leonor Beleza logo após a entrada em vigor da Constituição de 76: “ Parece-nos incorrecto o tratamento do sexo exactamente ao mesmo nível de outras realidades. É que, por um lado _ e sem contraposição com a ascendência, o território é de origem ou a língua _ o sexo é um elemento essencial na vida da pessoa humana; é-se e ser-se-á necessariamente diferente ser homem ou mulher, mesmo que a situação actual de atribuições estereotipadas a um e a outra venha a desaparecer” (“O Estatuto das Mulheres na Constituição”, Estudos sobre a Constituição, 1977).
A Autora defendia a tese segundo a qual a questão das desigualdades em razão do sexo acrescem pela especificidade que incorporam a todas as outras desigualdades sociais e são, por isso, mais difíceis ainda de lidar, de tentar debelar. Tese que, aliás, continua a fazer caminho, pesem as dificuldades que se lhe deparam tantas vezes, talvez pelo nível de abstracção que tem inerente, talvez, também, pela necessidade de transcendência que impõe, ou seja, sair de si próprio(a) e da sua circunstância e olhar o outro, ver o que marca um sulco às vezes bem subtil, nem por isso presente, na vida, no Direito, claro.

Filiação e Menores: a diferença
As crianças começam então, nos anos 70, a ver despontar os primeiros instrumentos internacionais a seu respeito. Os idosos, esses aguardam ainda uma Carta de Direitos, que terá como sempre, em relação a instrumentos do tipo, um papel sobretudo simbólico. Na verdade, se é muito meritório acentuar o seu papel como personagens do Direito da Família, este acentuação tem implícito o reconhecimento de conter uma espécie de vanguardismo ainda e eu pergunto-me às vezes se não se dará o caso de, pesem as intenções jurídicas também, maravilhosos que lhe estão inerentes, não se tornar o que seria um risco terrível, algo perverso.
Mas o que nos importa saber, afinal, é a medida em que outras matérias entram no Direito da Família. Referimos o casamento e a propósito dele o estatuto de ambos os sexos e o das crianças.
Diria que esta dimensão das crianças está mais incrustada nos problemas que ocupam o Direito do que possa à primeira vista imaginar-se. Pois a humanidade inerente a cada criança determina o seu estatuto na família e há com certeza reflexos em várias instituições que deverão ser atendidos.
È, porém, certo que há muito de contemporaneidade na descoberta das crianças enquanto titulares de direitos. Eu arriscaria dizer que isso é mais visível no caso dos direitos das crianças do que no caso dos direitos das mulheres. Aliás, já vimos que se reflectiu na maneira como são construídos os estatutos de filiação, proscrevendo uma forma mais prestigiada que outra e como também se olha na lei o poder paternal, tendo em conta os interesses do menor.
Porém, este dado é bastante recente na cultura europeia. E não se dirá que tem mais ou menos a mesma gestação que se encontra para o aparecimento dos direitos das mulheres. Na realidade, penso que tem uma gestação mais tardia e também mais lenta.

Os Menores na Família
Há quem afirme que a cultura europeia encara a criança como um homúnculo até ao século XVI. A pintura depõe muito nesse sentido: figuras infantis apenas nas proporções, já que em tudo o mais se assemelham a homens e mulheres. Esta forma expressiva que a Arte toma transpõe-se para a vida real, ou mais precisamente, é um seu reflexo. Não havia, entende-se, uma percepção social e normativa da criança nas suas particularidades, como ser humano em formação e carente de um processo educativo que ao Direito, designadamente, competisse conformar.
O Humanismo possuiu todas as condições para, olhando o Homem por outro prisma, contemplar também os seres humanos em formação e educação.
Ora, a realidade mostra que este caminho não foi percorrido. É verdade que têm uma parte forte de razão as teses que afirmam que durante muito tempo foram as crianças usadas como meio de superação de frustrações dos adultos a cargo de quem estavam, os pais, naturalmente, incluídos. Mas, se é certo que surgiram entretanto algumas obras demonstrativas da importância que se vinha conferindo à missão educativa, esta era entendida como a educação para a chefia da família, a defesa dos seus interesses e subsistência, financeira e na projecção social. Será a educação daquele que detendo a chefia do agregado, participará activamente na vida da polis democrática que emerge com a Revolução Francesa.
É verdade que a consciência progressiva dos Direitos Humanos, o seu processo de sedimentação proporcionaram um outro enquadramento dos problemas dos menores. Entre a época em que o pai de família podia a seu alvedrio entregar o filho a uma instituição devido a alegado comportamento ilícito, subrogando-se aos tribunais (um poder que o Código de Napoleão vem indeferir em 1810), afinal e esta época em que os Tribunais de Menores assumem uma intervenção tutelar educativa, ou de protecção, como última instância, vai um fosso muito importante.
Esse fosso, exprime-o bem o caminho legal percorrido entre o Código de Seabra e o Código Civil de 1967, que em muitos aspectos é considerado, como vimos, altamente inovador.
Concluiríamos então que o tempo actual é um tempo que finalmente centrou devidamente os problemas dos menores, e que, se dúvidas ou arrimos de lacuna legislativa subsistem, são matéria a completar através das adequadas reformas legislativas.
Não compartilho todavia deste ponto de vista. Creio que há ainda um caminho, também de compreensão sociológica da situação dos menores, em que as opiniões divergem; e que estas teses têm reflexos jurídicos. E por isso há aspectos a clarificar, a corrigir.

Teses recentes
Penso desde logo na controvérsia que hoje separa os entendimentos comunitaristas e voluntaristas sobre os direitos das crianças.
Segundo a concepção comunitarista, os destinatários de políticas públicas devem ser consideradas no carácter de membros da comunidade, pelo que a consideração de um ser humano, ou de um grupo de seres humanos, dentro da família, se compadece com este tipo de análise considerada adequada pelos comunitaristas. Resta, porém, saber em que medida a família tem capacidade de resposta a todos os problemas e realidades humanas que decorrem da personalidade, designadamente do menor. Creio que uma resposta afirmativa é irrealista, redutora. É verdade que os menores se desenvolvem dentro de pequenas comunidades e nelas se procede a uma parte essencial do seu processo de socialização. Sendo assim, têm razão os comunitaristas ao sustentar que será a família uma realidade essencial a considerar neste domínio. Não só porque no seu interior se reconhecem direitos, mas sobretudo porque é legítima representante de muitos interesses e direitos dos menores perante toda a sociedade.
Mas aqui termina a parte aceitável do comunitarismo.
Pois ele padece dos problemas próprios de todas as correntes que, integrando a pessoa numa comunidade, lhe esbatem ou mesmo tendem a anular a autonomia essencial em cada momento da vida. O homem é um ser comunitário mas sem que isso impeça ou muito menos exclua a sua dimensão de ser único, e esse reconhecimento é a grande conquista dos Direitos Humanos que esta tese arrisca comprometer.
Em segundo lugar, creio criticável ao comunitarismo ser ele muito vago ao sustentar a ideia segundo a qual a integração das pessoas na sociedade familiar permite que seja esta representativa, em última instância, e de forma plena, dos seus direitos. Como, através de que mecanismos? E sobretudo, como comprovar que o ser humano é um ser institucional em todo o sentido?
Mas a tese comunitarista é uma tese que se reclama dos Direitos Humanos, seguida por muitos autores e não poderá ser ignorada. O sentido da crítica é evitar descambar num silêncio comprometedor. De facto, não defendo as conclusões comunitaristas sobre os menores como democraticamente possíveis, compatíveis com a Constituição.
Já as teses voluntaristas singram pelo modelo oposto. De acordo com elas, e recorrendo ao argumento de se poderem mais confortavelmente reclamar dos Direitos na sua expressão clássica, direi real, como direitos pessoais e essencialmente compreensíveis nessa óptica, os direitos dos menores são considerados na sua expressão de direitos individuais. A conclusão, porém, deixa muito a desejar. O voluntarismo pondera os direitos dos menores mas para concluir que as crianças não têm a capacidade de autonomia plenamente desenvolvida. Sendo assim, aos pais competirá tomar a defesa dos seus direitos. E isto vale por dizer que terão legitimidade para os interpretar em todas as circunstâncias, com a ressalva, com certeza, dos casos de incapacidade do próprio progenitor ou de quem o represente.
A tese não se adapta à realidade biológica, social das crianças. Reconhece-se hoje que estas são seres em evolução, sim, mas municiadas com um conjunto de direitos que exprimem uma personalidade existente na infância. E sobretudo, é-lhes reconhecida a dignidade, também social, que indefere a ideia desta tese.
Enfim, as correntes que hoje insistem em entender que a personalidade se constrói através da afirmação participativa do menor na sociedade, para o que contribui a sua afirmação dentro, também, do agregado familiar e as consequências que deverão ser reconhecidas a tal afirmação.
São teses realistas e apelativas. O problema que colocam é ainda assim difícil. Trata-se de saber a quem compete tomar posição, caso os menores não colham na opção de um dos seus progenitores, ou de ambos, uma solução compatível com o seu próprio projecto e detenham já idade bastante para que se torne relevante, pertinente ouvi-lo.
Estas reflectem-se já nos instrumentos internacionais, se bem que de modo não muito assertivo.

Os diplomas internacionais: dimensão simbólica ou eficácia evidente?
Assim, a Convenção Europeia dos Direitos das Crianças não torna claro o papel que deva cometer-se realmente à criança neste processo de decisão. Concretizando: posto que o menor não se mostre de acordo com os pais em relação a aspectos da sua realização e desenvolvimento, como são os respeitantes ao ensino que irá ter e à educação religiosa que lhe será ministrada, como decidir? Compete ao juiz tal decisão? A verdade é que o juiz, tendo por si a vantagem da isenção face a possíveis interesses que as opções dos pais reflictam, não tem decerto um conhecimento do menor que lhe permita tomar com grande à vontade posição no processo decisório. Sempre se poderá dizer que tem o juiz a possibilidade, mesmo o dever, de se fazer acompanhar na formação deste processo decisório pelo conselho de família, por técnicos de psicologia, pedagogos qualificados. Mas este aspecto, que aliás já a lei em vigor contempla, não contém sortilégios: Há aspectos educativos de grande melindre sobre os quais sempre, em última instância, se coloca a alternativa entre a outorga aos pais ou a quem os represente e a ênfase reconhecida à vontade em sentido diverso do menor.
A lei portuguesa tem feito esforços grandes no sentido da integração social dos menores quer na Família, quer no mundo social, através de adequados meios de acesso à cultura, à Educação. Há uma noção muito clara, que a lei reflecte, de que os pais têm aqui um papel, senão insubstituível, ao menos primordial, Pretende-se dizer com a afirmação que os pais deverão liderar sempre que possível em conjunto, o processo educativo. Que esta liderança corre à margem das rupturas conjugais que porventura ocorram entre eles. Enfim, que a sua substituição deve dar-se, a benefício do menor, em alguém que mantenha uma relação de proximidade, na medida em que seja detentor de condições para o efeito (materiais; afectivas).
Muitas vezes se cometem erros. A preocupação de entregar a criança à mãe biológica, posto que capaz de prover ao seu sustento e manifestando apetência afectiva para o efeito, ainda há pouco tempo faria correr torrentes de opinião…na verdade, correu mal naquele caso. Mas não pode julgar-se a decisão anterior sem os elementos completos, decerto complexos, que a rodearam. Em princípio, o Tribunal que entrega a criança à sua mãe biologia e que deseja a criança é uma decisão acertada. Ou, por outro ângulo? Que alternativa melhor se encontraria?
Enfim, a propósito dos menores e do seu reconhecimento social e jurídico, gostava de vos dizer que, não obstante a importantíssima movimentação jurídica que se está a verificar nestas últimas décadas em torno da consciência disseminada dos seus direitos, não compartilho a ideia desresponsabilizadora e maniqueísta que permite um juízo maniqueísta sobre o “passado” e um presente que caminha em direcção do mirífico…Infelizmente, sou um tanto menos optimista. Prefiro reconhecer que há uma consciência social e sobretudo, instrumentos jurídicos que representam um progresso incomparável.

Um direito personalista nas decisões
Os nossos Tribunais de Menores fazem muito pelos direitos das crianças, como veremos Mas, caso se proporcionasse escolher um quadro representativo das crianças na Europa eu não escolhia Rubens, também não escolhia Picasso ou Dali, nem sequer Paula Rego e as suas fantásticas, misteriosas meninas! Escolhia Velasquez. Tomava Las Meninas. Claro que não vamos discutir o quadro, saber qual o irrealismo que ele junta à realidade. Mas basta ter em conta que a consistência que ali existe (ali, onde tudo é volátil, susceptível de várias interpretações: para onde olha o pintor? Que retrata o espelho no fundo da sala, o Rei e a Rainha ao nosso nível, sentados a posar para o retrato? Porque observa o homem lá atrás a cena?) parte de uma família. O que dá consistência e unidade é a família do Rei Filipe IV. A Infanta Margarita irrompe na sala onde o pintor se encontra e faz, parece, uma birra: está farta de ser pintada por aquele homem, desde bebé. Todos tentam persuadi-la: as aias portuguesas (“Las Meninas”, a irmã, Teresa, talvez o Rei e a Rainha que porventura olham para nós, reflectidos num espelho. Talvez, ainda, Velasquez…). É uma família muito prosaica que dá consistência ao quadro. E é uma família que acarinha uma criança, não a ameaça por não querer posar pela enésima vez. Há sentimentos que perduram. Nisto se traduz um papel decerto pouco consistente no passado, mas representativo da nossa cultura acerca da infância.
Ora este ponto abre as portas a uma realidade que tem de ser devidamente realçada neste início do estudo do Direito da Família. Trata-se de saber que pontos da vivência das pessoas, que revestem a qualidade de pais, filhos, educadores, menores de idade, idosos, devem ser do âmbito do Direito da Família. E se porventura há segmentos deste processo e da sua expressão jurídica que devam exorbitar o Direito da Família.
Ex: Recordo a este propósito um Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. No caso, colocava-se, aparentemente, “só” uma questão escolar, “só” um problema de direito á educação. Um número de crianças belgas não tinha, nas imediações de casa, escola que ministrasse o ensino da língua familiar, o francês. Preocupados, os pais vieram requerer uma escola diferente para os seus filhos, ou, em alternativa, professores adequados a suprir a lacuna. O flamengo era a alternativa e em casa não falavam flamengo. As autoridades do país invocaram a possibilidade de as crianças aprenderem francês nas imediações…deixando de viver o quotidiano em suas casas. Colocada a questão ao Tribunal Europeu, entendeu este que não se verificava uma necessidade insusceptível de ser suprida pelos pais, através de expedientes como a escola alternativa…e longe de casa. Perpassa na fundamentação da decisão, entre outros aspectos também complexos, uma grande promiscuidade entre as possibilidades materiais da família, que pareciam reais nas várias situações, e a plena desconsideração do direito da criança a um acolhimento afectivo na sua casa, no seio de uma família adequada. Esta confusão entre a importância do afecto e a importância das vantagens económicas é gritante na decisão. Contudo, foi o veredicto.

“Para onde vamos? Para casa, sempre para casa…”
Ou antes, se afinal domina aqui a mesma tendência que vemos perpassar muitos ramos do Direito. Uma dificuldade cada vez mais acentuada em criar núcleos de compartimentação entre o que e “coisa privada” e “coisa pública”. Pois a realidade é que há muitos aspectos do Direito da Família que se fazem permear por influência notável do direito público também. Desde logo, as regras e princípios constitucionais que o conformam, os tratados internacionais que lhe dizem respeito. Mas, muito mais do que isso. Os direitos da Segurança social, do Trabalho, da Administração Pública, fazem aqui a sua incursão. Claro que a opção do legislador por considerando bens comuns os bens adquiridos a título de rendimento do trabalho na constância do matrimónio, mas sem prejuízo de outorgar a sua administração ao cônjuge que os aufere e incluindo, pois, a possibilidade de alienação dos mesmos. Ora este aspecto decorre do sentido jurídico-laboral do salário a que não é indiferente a ordem jurídico-familiar neste ponto. Por outro lado, quando a lei das Uniões de Facto admite o regime de férias, faltas e licenças laborais aos companheiros, mesmo na legislação referente à Administração Pública, estará a olhar de novo a realidade familiar na perspectiva familiar, num segmento em que interesses de ambos os direitos intervêm. O direito da segurança social intervém por sua vez na outorga de pensões de sobrevivência e na definição do respectivo critério a familiares e unidos de facto. E assim por diante.
Concluímos assim que, se uma época existiu em que falávamos com propriedade de um direito laboral da família, securitário social, fiscal, etc., hoje entram em cena direitos com expressão familiar cujo acervo de consequências jurídicas passa em grande parte por outras esferas ou ramos do Direito. Concretizando: a propósito das Uniões de Facto, há com certeza um modelo a que estas têm de obedecer, sob pena de não se subsumirem as situações em questão à categoria. No entanto, uma vez reconhecida a existência da União de Facto, vemos que as suas principais consequências são atinentes a outros ramos do Direito.
Ora, isto não acontecia, não acontece com institutos clássicos, como o matrimónio, a filiação, a adopção… Há uma realidade emergente que entra no Direito da Família por via do reconhecimento de proximidade face às matérias que este contempla. No entanto, uma vez entrado, o cerne dos temas de que cura o Direito da Família a seu respeito abre uma janela gigantesca sobre outras realidades jurídicas. Muitas destas realidades são de direito público e têm a pretensão de assegurar as pessoas que fizeram tais opções de vida no mundo laboral ou em segmentos seus, no mundo da segurança social, da saúde, no plano da habitação.

Indicação de sequência. Justificação.
Muda, pois, o Direito da Família, sofre uma espécie de crise de identidade não assumida. Na realidade, sob a capa de uma aparente certeza que se transmite, a de que é fácil e urgente integrar neste domínio a parte que claramente lhe compete, constitui quinhão seu, alberga-se a realidade inversa: o que falece são os critérios de fronteira entre o que é ainda Direito da Família e aquilo que, sendo direito que emerge de relações de tipo familiar, não tem os problemas próprios do Direito da Família. Mas, ainda se perguntará e não terão sido esses problemas que mudaram, não se dará o caso de ser este afinal o caminho de uma reformulação conceitual e material do conteúdo?
Porque não há como dar por adquirida uma resposta sem o estudo, direi que é este o nosso objecto. Determinar, de entre as matérias incluídas nos programas tradicionais e as matérias que clamam por inclusão, entre o casamento e a União de Facto, tanto na sua expressão legislativa (que o direito da Família toma como filha, não sei se adoptiva, ou mesmo natural) como na expressão de maior força normativa pela qual tantos clamam (casamento entre homossexuais, reconhecimento dos mesmos direitos que os conferidos ao matrimónio), entre o direito dos menores na sua vertente familiar directa, por vínculo de filiação ou de adopção, e a sua afirmação social mais ampla, entre os direitos dos idosos, de novo incluídos no agregado familiar mas analisada a sua situação como pessoas fora dele, há uma resposta específica do Direito da Família que nos leva a dizer: são tudo problemas que integram este domínio jurídico.
É por isso que a forma de constituir Família, por muito que mude a configuração do leque que a nossa ordem jurídica admite (monoparental, convencional; famílias que, regendo-se por outras regras, coexistem no nosso espaço e requerem normas próprias…); por mais que o conceito de filiação apele ao papel activo, interveniente, dos pais, ou antes o deixe deslaçar um tanto; o mesmo em relação aos idosos.
E depois, o influxo, as formas como outros ramos do Direito actuam aqui. Afirma-se crescer a violência dentro da Família? Há logo quem agite a necessidade da intervenção penal. No entanto, dentro do Código Civil, pouca é a importância que o legislador atribui a certos crimes que identifica, contra um dos cônjuges, contra familiares próximos.
A turbulência social e normativa da Família não é uma caixa de desculpa para as indefinições. Pelo contrário, impõe uma atitude interventiva. É a medida desta que implica, por igual, saber quais as fronteiras: dos deveres recíprocos;
Eu reconheço que, se muitas serão as dúvidas sobre a pertença correcta, dogmaticamente certa, ao Direito da Família, este constitui hoje, no estudo universitário, a sede de encontro com os problemas equacionados. E nesse sentido, não creio que lhes devamos fechar a porta do nosso objecto.



Ordem de sequência
Partimos assim para a análise do objecto tradicional da disciplina, tal como o Código Civil o enuncia. Veremos que relações familiares existem e quais são as suas fontes.
O Código Civil recebeu, como foi dito, grande influência constitucional em 77. Sendo assim, era desde logo importante analisar o modelo de Família na Constituição. Mas sê-lo-ia em todo o caso, já que a Lei Fundamental determina, molda os grandes institutos e não teria qualquer sentido proceder a um exame do Direito ordinário alheio a este cadinho da aferição constitucional.
Era tradição chamar a depor, a este propósito a dignidade das pessoas para enquadrar os direitos de todos os membros de qualquer agregado familiar, tal como os princípios da igualdade perante a lei, cujos reflexos são determinantes na estrutura jurídica do Matrimónio ou das Uniões de Facto, como ainda as relações parafamiliares em geral. Mas hoje como já dissemos, acrescem outros pontos. Desde logo, a extensão do regime do casamento, o problema da sua aplicabilidade a outras formas de sociedade familiar. Porque o tema convoca a Constituição, será estudado a propósito dos princípios constitucionais. Antes do regime dogmático incluído na Lei, é um problema constitucional sobre que compete tomar posição.
Seguimos com o estudo do Direito Matrimonial. O casamento e a forma de união heterossexual mais adoptada em Portugal. De forma espontânea, as pessoas optam pelo casamento como forma de institucionalizar relações estáveis e duradouras.
Porém, a existência do Matrimónio Católico, adoptado por muitos portugueses suscita, em função de uma difícil interpretação do texto da Concordata 2004 com a Santa Sé, articulado com o texto constitucional, algumas dúvidas de constitucionalidade, para sectores da doutrina. O tema será abordado, antecipadamente face ao Casamento Católico, nos princípios constitucionais. Refiro a questão da constitucionalidade da norma do Código Civil relativa ao regime do casamento rato e não consumado.
O Semestre passado foi atravessado pela entrada em vigor de (mais) uma alteração ao regime jurídico do Divórcio. Foi um tempo de intranquilidade feliz: de acordo ou contra, uma geração depôs sobre a matéria. E deixou-nos a responsabilidade de continuar. Reputo a questão do maior interesse. Porventura, tanto quanto consegui aperceber-me até agora, não sobretudo pelas soluções que veio directamente impor, mas sim devido aos propósitos legislativos menos evidentes. O que se pretende? Inverter o sentido “ideológico” do Divórcio em Portugal, tornando-o extensivo a mais situações, acrescidamente flexível? Ou por outras razões ainda? Será o tempo de ensaiar uma resposta.
Termina-se com os direitos das crianças, dos jovens, dos idosos.
Os primeiros conhecem uma nova lei, do Apadrinhamento, que se reputa de grande importância e da qual se esperam frutos.
Quanto aos últimos, subsistem, para mim, algumas dúvidas sobre o lugar da sua abordagem temática. Tenho por claro, todavia, que algum deverá existir e que a sensibilidade jusfamiliarista abre as suas portas à compreensão dos institutos que aqui se encontram. Tentar-se-á, nesta sede, olhar o direito dos jovens nos segmentos que nele me parecem merecer mais destaque: a questão dos jovens em risco e muito especialmente, dos jovens em risco de delinquência ou de serem vítimas de crime.

III

O objecto do Direito da Família.
Da proximidade entre as formas juridicamente contempladas à tese da heteronomia; Direito da Família e direito das famílias.

1. Questões preliminares.
Procuramos agora o objecto jurídico da Família. O problema é complexo e é-o em crescendo. Por um lado, há um substrato cultural proveniente da realidade da vida que conduz a uma corrente de opinião maioritária a este respeito, como conduz por igual a uma visão muito partilhada sobre o sentido das realidades que, existindo na lei, se afastam dos paradigmas tradicionais. A Família, para a generalidade das pessoas, não estará muito distante da fórmula quase poética com que um autor americano a retrata. É o lugar onde nascem os filhos e se enterram os








maiores, um lugar inconfundível com qualquer instituição que se mostre transcendente ao plano da intimidade que biológica e culturalmente construímos.
E esta Família sulca-se, na Lei, por dois conceitos que retratam instituições indispensáveis ao nosso plano de abordagem. Penso no Casamento.
Depois, com o tempo, recebeu a ordem jurídica portuguesa novos parâmetros, que hoje se acolhem nas Leis 6 e 7 de 2001, de 11 de Maio. As Uniões de Facto adquirem importância crescente: aumentaram um tanto e sobretudo, alargou-se o debate sobre a sua legitimação. Esse debate, permeado de argumentos de vária ordem, é também (para nós, é essencialmente) um debate jurídico.
Quem, partindo de um núcleo familiar, constrói o seu próprio paradigma, por aproximação ou distanciamento à realidade matriz, opta em Portugal pelo Casamento. O Casamento é o modelo a partir do qual se reproduz a institucionalização dos padrões de vida e de afectos entre nós. A generalidade dos portugueses não prescinde dele, quando opta por laços de união mais intensos.
Quando se pondera o instituto do Casamento vem à ordem do dia o conceito de Parentesco.
E o mesmo vai suceder a propósito da União de Facto, sustentada por uma afectividade em que a libido tem um papel preponderante e maioritário.
À primeira vista, não se vislumbra qualquer relação directa entre ambos, Casamento e Parentesco, e menos ainda entre a tríade que engloba Parentesco e Uniões de Facto.
Mas logo nos damos conta de que não é assim. Há relações de Parentesco que condicionam pela negativa Casamentos, Uniões e Facto protegidas por lei. Diríamos, que as inviabilizam à luz do Direito. Este, desde já, um ponto essencial de atenção.

E assim se justifica a necessidade de os não separar nesta fase; de os chamar a depor conjuntamente.

O Parentesco (artigo 1578º CCivil) traduz-se num vínculo familiar. A lei define-o como o laço que liga duas pessoas que descendem uma da outra, ou ligadas por um ascendente comum. Em todo o caso, a sua chamada neste ponto da exposição afigura-se essencial. Pois o parentesco decorre as mais das vezes de uma relação matrimonial ou familiar de outra ordem.
Nasce-se por regra no seio duma União matrimonial ou de Facto. É a circunstância de sermos filhos, netos, irmãos de alguém que nos confere o direito a perceber uma inserção no núcleo por eles integrado, a receber educação, alimentos. Quando a Família é desconhecida, ou rejeita um dos seus membros carentes (idoso, criança) a devolução do problema à normalidade possível passará pela intervenção das autoridades e deverá ser, por estas, sindicada subsequentemente.
Por outro lado, cumpre ter em conta os obstáculos à constituição de relações matrimoniais que decorre de um parentesco próximo. Por razões eugénicas, de moral social, pais e filhos não casarão, nem receberão reconhecimento protector das uniões de facto que porventura estabeleçam entre si. A mesma regra vale para todos os parentes na linha recta, que em breve identificaremos.

O Parentesco na pré-compreensão das instituições familiares
Indo mais longe, veremos adiante que muitos outros direitos decorrem e se preterem pelo parentesco, de acordo com estas balizas apontadas, e que são muitas vezes fundamentadas no decoro (moral social). Estou a pensar no casamento entre tio e sobrinha (colaterais no terceiro grau, como também veremos), vedado por razões que não são apenas estas, de ordem biológica, mas que exigem ponderações advenientes do laço de sangue, aliás muito próximo.
Por outro lado, o Casamento é a fonte mais ampla de novas relações de parentesco, sem prejuízo de o serem também as formas de União não matrimonial que a lei contempla, como em breve veremos. Mas decorrem mais formas de parentesco do Casamento. Pela tradicional vocação de estabilidade da relação matrimonial é no seio dela que se desenvolve o núcleo mais alargado de família; que as gerações familiares se entrelaçam e identificamos filhos, avós, netos, sobrinhos…
Vejamos então o conceito de Parentesco um pouco mais.
A lei define-o, dissemos, como o vínculo que une duas ou mais pessoas que tenham um progenitor comum. Na contagem dos graus de parentesco, que agora antecipamos rapidamente e adiante estudaremos, acabaremos por concluir quanto é essencial a determinação do seu carácter ascendente ou descendente. E quanto é determinante o critério da contagem dos graus.
[O esquema da relação vertical a que se acaba de fazer referência identifica-se em primeiro lugar (primeiro esquema), entre os gráficos que se apensaram ao texto desta Aula. A possibilidade de o fazer deve-se à utilização de esquemas utilizados para este efeito em vários Manuais que, contemporâneos de uma Família mais alargada do que a dos nossos dias, concediam ao tema uma grande relevância. E devo-o muito especialmente à ajuda empenhada dos meus alunos…]
Parentesco na linha recta descendente: estabelece o relacionamento entre pais e filhos, avós e netos, bisavós e bisnetos…Há sempre um progenitor de que todos provêm. A contagem do grau depende do número de pessoas relacionadas, omitindo um dos progenitores. Por esta via concluímos que pai e filho são ascendente/descendente no 1º grau; bisneto/bisavô ascendentes/descendentes no 4º grau.
[Na “árvore” apresentada no último gráfico, que combina várias modalidades de parentesco, encontramo-lo de novo].
A situação reconfigura-se quando não existe uma cadeia horizontal de descendência, mas todos os parentes referenciados provêm de um mesmo ascendente comum.
Assim, se A e B são filhas de C, A e B não estão “em cadeia” na relação familiar. No vértice, sustentando a ligação entre as duas, está o/a progenitor/a C. A e B são colaterais no segundo grau: subo a linha, contando com A (1º elemento da cadeia), tenho em conta B (2º elemento) e não procedo à contagem de C. Se porventura A tiver um descendente, D, a relação entre este e B, colateral em 2º grau de A, é de colateralidade no 3º grau. E o processo de contagem foi o mesmo. Alargando, imagina-se a relação entre os descendentes directos de A e B (D e E). São estes, colaterais no 4º grau. Se recorrermos à linguagem corrente, diremos que tio e sobrinha, referidos supra, são colaterais no terceiro grau, mais um grau, portanto, face à colateralidade dos irmãos. Diremos que os “primos direitos” da linguagem corrente são colaterais no quarto grau. E por diante…Sendo que em regra a lei permitirá a produção de efeitos jurídicos até ao 6º grau da linha colateral, ao passo que na linha recta esses efeitos não se cerceiam nunca. Há casos de produção mais ampla de efeitos na linha colateral. Mas serão vistos em sede própria, sob pena de uma grande e inútil dispersão nesta fase.
[Os esquemas que surgem em segundo e terceiro lugar reportam-se, claro está, a situações de colateralidade].
Encontrarão muitas vezes exercícios que pedem identificação do tipo e grau de parentesco entre familiares que a linguagem comum refere por nomenclaturas variadas: cunhados, segundos primos, terceiros primos, concunhados…Não se trata, contudo, de linguagem legal. Penso que é mais útil para essa clarificação um dicionário da Língua Portuguesa. A nós, interessa-nos balizar a situação real das pessoas na família e depois, proceder ao enquadramento jurídico. A minha geração ouviu, há muitos anos, a linguagem dos 2ºs primos, dos sobrinhos netos… Acredito que os jovens cuja socialização não ocorreu em famílias alargadas terão outro tipo de interesses familiares.
A relação de filiação, sempre importante, ocupa o centro da atenção legislativa e isso corresponde à realidade. Dentro de um enquadramento matrimonial ou outro é uma relação que suscita a emergência de direitos e obrigações a todos os progenitores. Não é a circunstância do seu enquadramento legal, é a circunstância da ligação familiar que os torna titulares de direitos e deveres fortes em relação aos descendentes. A Constituição impõe este reconhecimento do Menor e dos seus direitos à margem de factores relacionados com a vida e opções dos pais Artigo 36º CRP, que se estudará adiante, a propósito da Família na Constituição). É da sua dignidade e interesses que cura o legislador.
Temos, pois, que a uma instituição familiar dominante, o Casamento, correspondeu a moldagem essencial do vínculo de Parentesco e de tal modo, que muitos aspectos se repercutem nas outras realidades familiares.
Também daqui decorre a importância destas instituições, que agora abordamos.
A União de Facto, consagrada hoje na Lei 7/2001, depois de um processo de constituição algo turbulento, dá testemunho de que é assim.

Também a Afinidade, na pré-compreensão das relações familiares

Não é possível o matrimónio entre afins na linha recta. Esta regra de parca aplicação deve contudo ser mencionada nesta sede. Além do mais, traz à colação a regra segundo a qual a afinidade cessa pelo Divórcio e constitui alteração de monta entrada em vigor com a Lei do Divórcio. Afirma-se a existência de Afinidade pelo vínculo que liga um cônjuge à família do outro, operando a contagem dos graus e linhas nos termos usados para o Parentesco.


Direito da Família ou Direito das Famílias?
Introdução
Colocamos então o problema central neste eixo da constituição das relações familiares por casamento, união de facto ou ainda, segundo a Lei 6/2001. Saber se é linear a verificação de que procedem de um denominador comum ou a sustentação de que entre todos haverá diferenças qualitativas importantes. A sustentação de que são formas de relações familiares ou antes, de que se trata de realidades desprovidas da necessária conexão para um tal entendimento. Enfim, uma outra alternativa. Saber se, posto que se rejeitasse a subsunção de todas elas a um denominador comum de Direito da Família, era ainda possível concluir que o legislador assentara num entendimento polissémico da realidade familiar, de tal modo que em vez de um direito da família, capaz de conglobar as relações que nos surgem no Livro IV

da Família, nas Leis 6 e 7/2001, teríamos antes um direito das famílias, cada uma dotada da sua fisionomia autónoma, mas sempre reconhecidas como realidades com a dignidade própria de um instituto com o cunho familiar.
Ex: Tentemos ver através de uma situação da vida o alcance que a diferença, que à primeira vista é tão só conceitual, pode assumir.
Para quem se proponha criar um novo modelo legislativo sobre Uniões de Facto atenta ao modelo do “direito da família”, continuará a estruturar normas que, sendo inclusivas de pessoas do mesmo sexo, situação que a actual Lei prevê, ainda assim marque diferenças entre casais homo e heterossexuais no domínio da titularidade de direitos/deveres, direitos parentais. No caso actual, a possibilidade de adoptar menores está vedada a estes casais. Representaria uma evidente mudança de paradigma familiar que passasse a acontecer de outro modo, mantendo-se em simultâneo o casamento tradicional.

O Direito da Família, como aqui se sustenta, exprime uma leitura retrógrada?

O sentido do paradigma “direito da Família” na ordem jurídica portuguesa.

À primeira vista, fica-nos a ideia de que recentrar a análise dogmática no direito da família tradicional pode significar que desconsideramos outros caminhos, rumos que entretanto se empreendem.
O objectivo está muito longe de ser esse. O olhar que se tentou usar para compreender as exigências de uns sectores, as reticências de outros, entre nós, não significa cercear a continuação; era inútil, em última análise ilegítimo.
Continuamos, sim, a olhar a Família à luz de um modelo tradicional. Talvez isso corresponda a uma tentativa de estar ao lado de muitos, na luta por um modelo forte, o que rege no essencial a ordem jurídica. Vejo, aliás, a questão em grande parte por esse lado.

Porém, a situação mais marcante diria respeito, entre nós, à proliferação de casais com tradições diferentes, resultantes de etnias diversas. Como agiria a lei? No sentido da aceitação? Teríamos um direito das famílias.
Verifiquemos então os traços da dogmática geral de cada figura chamada a depor.

2.O Matrimónio

A Constituição é o baluarte da sua consagração, o que importa desde logo uma referência que se erga a partir dos seus alicerces.
Não nos permitirá ela, contudo, avançar muito em sede de densificação do conceito legal de casamento. Embora exista doutrina em sentido contrário, que verbera a índole aberta e susceptível de abarcar outras tipologias de casamento para além da lei ordinária, a verdade é que sempre se confronta essa discussão, que depois faremos, com o problema de saber em que medida esta eventual ampliação do conceito para além dos limites em que a lei ordinária (Livro da Família, Código Civil) o recorta é injuntiva face ao legislador ordinário, ou representa um quadro de referência mais amplo das suas possibilidades de actuação legiferante. Um quadro que se mostre permissivo de outros modelos de casamento mais amplos, assentes em pressupostos que rompam o espartilho do actual regime vertido no Código Civil.
Olhemos, pois, o recorte do Código Civil.
O artigo 1575º parece muito conclusivo a este respeito.
Afirma que o Casamento:
_ É um contrato;
_ Celebrado entre pessoas de sexo diferente;
_ que constituirão através dele uma “plena comunhão de vida”;
_ celebrado nos termos e disposições deste código.

É a norma tão clara quanto parece?
Procuremos sindicar cada uma das afirmações assinaladas.
“O casamento é um contrato”. Qual a dimensão de uma asserção como esta? Responderia, antecipando uma discussão que abordaremos, como disse, mais tarde. Creio que o é, e creio sobretudo que a lei portuguesa não permite uma sua consideração diversa. A tese, aventada por certos autores, de que os afectos se não contratualizam, parece-me deslocada nesta sede. Não é argumento consistente. Pode aceitar-se um projecto de vida do qual decorre abdicar de um modelo de vivência e optar por outro, tenha lugar sem que isso implique a preclusão da liberdade ou do direito à liberdade. Diria que a consideração do homem como “ser com os outros”
(de raiz multimoda no pensamento, sustentável através da filosofia tomista, sobretudo pelos fichteanos, mas em bom rigor desenvolvida por todos os cultores do idealismo kantiano. Aliás, presente, creio, em Kant, na tese segundo a qual o númeno é um arquétipo, enquanto o homem fenoménico surge após o contrato social e não dispensa a sua compreensão os laços de reconhecimento e interacção recíprocos)
é, alias, incompatível com outra conclusão que não passe pela compressão natural de direitos que, pela sua natureza, apenas se exprimem através de um processo de concessão permanente. Não ver isto é assentar num individualismo totalmente destituído de suporte na realidade. Enfatizo: nem o mais empedernido Kant, na sua tese “numénica”, vai por aí; coloca, lado a lado com os postulados da razão pura, a relacional idade como postulado da razão prática. O contrato de intimidade é afinal um contrato de socialidade. Esquecer isto é esconder a cabeça ao argumento que a realidade impõe. Um erro sem saída.
A vida que exprime nas suas relações formas de intimidade é necessariamente concessiva de um modelo incompatível com a titularidade estática dos direitos e deveres de cada um.

_ o casamento é uma relação entre pessoas que nos termos da lei pretendem empreender uma plena comunhão de vida.
O conceito é bastante obscuro, creio. Pois, se por um lado terá visado afastar a obrigatoriedade de uma relação amorosa sexual, moldada no cadinho daqueles ditames que a Igreja Católica estrutura para o Matrimónio enquanto sacramento, a verdade é que não contrapôs claramente um sentido. Antes admite vários. Haverá casamento válido desde que o projecto de vida comum implique vida conjunta, lealdade recíproca. E se é certo que a ligação sexual e o intuito procriativo estarão presentes na maioria dos casos, não hão-de estar necessariamente. E porque esta porta que agora se abre, relativamente ao que era antes imposto pelo Matrimónio católico, é muito ampla, o seu carácter problemático ergue-se como um tributo à plasticidade da nova figura.
_O casamento obedecerá aos termos das disposições deste Código.
De novo, a infixidez assumida marca esta última passagem do excerto. Significará que não pretende agora o legislador avançar mais sobre o sentido do casamento, objecto e fim. Que admite a sua evolução de acordo com princípios e regras que a lei venha a considerar dignas de contemplação doravante.
A verdade, porém, é que assim abre a lei a porta a qualquer regulamentação, o que vale por dizer, a toda a espécie de alterações ao regime em vigor, ainda que adulterando a sua configuração básica. O limite à regra é longínquo no horizonte: não poderá ser inconstitucional. Mas pode ser derrogadora do matrimónio na sua actual configuração. Este aspecto, que se previu em 1977, está bem patente na distância profunda que marca a precariedade, ou fragilidade, progressiva, da relação matrimonial desde então até à entrada em vigor da actual Lei do Divórcio. A partir dela, não só o fim do casamento pode ocorrer por vontade das partes findo o mais curto período de vigência da sua história, como termina tendo por consequência, entre outras, uma alteração ao regime de bens que pode determinar uma perda patrimonial expressiva face às expectativas que se verificavam no momento da celebração e durante todo o decurso da relação pessoal até esse momento. E, se dúvidas podem ocorrer acerca da opção no plano da constitucionalidade, cumprirá em todo o caso conceder na certeza de que é uma possibilidade anunciada pelo próprio conceito legal de casamento.
Deixámos para último lugar a diferença sexual que a lei impõe. Diria que não constituía tema, no momento em que se reaprecia o conceito matrimonial, a questão da união legal entre pessoas do mesmo sexo. Indo mais longe, afirmar-se-á que tema central era então a igualdade social e o seu reconhecimento entre pessoas de sexo diferente. Por esta, como se viu, se clamara, esta se consagrara. O problema de saber em que medida seria legítimo o casamento de pessoas do mesmo sexo colocava-se, decerto, porque o tema tem a mesma universalidade e a mesma recorrência. Mas não tinha na época a amplitude de discussão ou mesmo de preferência na opinião pública.
Não deixarei de recordar um tema emblemático da discussão jurídica que agora se fazia. Tratava-se de recordar Ana de Castro Osório e a sua obra.
Com a implantação da República, no dealbar do século XX, a escritora Ana de Castro Osório, fortemente implicada na preparação do regime republicano, viera a publicar O Direito da Mãe. É uma obra de leitura simples. Conta a saga de uma jovem mãe de família pertencente aos meios burgueses que vivia o drama de compartilhar a vida com, um companheiro cujo espírito devasso lhe trouxera doenças venéreas; doenças que contaminavam agora a prole. Ela, a mãe de família, pretendia salvar a família, mas debatia-se com uma sociedade hostil e uma lei contrária aos seus intentos. Afinal, a Lei do divórcio, filha dilecta da República, salvara a situação.
Por 1977 a obra é recordada, mas cumpre fazer uma advertência. O Código que sai da Reforma não deixa de considerar esta situação entre os erros essenciais sobre a pessoa do cônjuge, caso a situação existisse já quando se contrai o casamento e fosse desconhecida da outra parte, por motivos compreensíveis. Só no caso da superveniência do problema marital se estaria ante uma situação reclamando a aplicação do regime da extinção da sociedade conjugal através do Divórcio.
Mas o facto de a discussão trilhar por este caminho é bem reveladora dos objectivos intrínsecos ao debate sobre o casamento e seu conteúdo. A distância a que a sociedade portuguesa se encontrava do debate actual, inclusivo do tema da homossexualidade, grita neste silêncio que rodeia o tema.
Concluímos, pois, que o Casamento, enquanto conceito legal, é frágil na construção e efeitos precípuos.
O que o mantém então? A pré-compreensão social, sem dúvida. Uma ideia que se sobrepõe às ambiguidades e às lacunas legislativas em nome de experiência, vivência e sentido dos âmbitos de mudança socialmente desejados ou pelo menos tolerados.
Ao fim e ao cabo, exprime-se aqui a capacidade de coesão, o potencial de tolerância numa sociedade em que a ruptura de concepções, ideologia e hábitos sociais entre as várias classes sociais, entre católicos e laicos, se erguia num núcleo essencial do instituto e rejeitava a hipótese de mutação radical.


3.Do casamento a outras formas de Família

Ora esta “força atractiva para o casamento” é determinante no processo de compreensão da relação que vem estabelecer-se entre ele e as relações familiares que a Lei paulatinamente integra.
Na génese destas relações não resultantes do casamento mas juridicamente produtoras de efeitos está um preceito da Reforma de 77, o artigo 2020º. Nos termos deste, o unido, pessoa solteira, viúva ou separada judicialmente de pessoas e bens terá direito a perceber alimentos da herança, posto que deles prove necessidade e os venha reclamar. Em linguagem sucessória diremos que não é este unido de

facto um herdeiro legitimário ou forçado, ou sequer um legatário, mas um mero credor da herança.

Ex: Suponha-se que A morre e deixa, nos termos da lei em vigor ao tempo, alguém com quem vivera em regime de união sem contudo ter esta sido legalmente configurada. Em tal caso, o unido de facto tem direito a perceber alimentos da herança, se bem que dentro das suas necessidades e não, em proporção adveniente da realidade da herança, do seu montante.

A norma do artigo 2020º, que conheceria forte reacção no seu tempo inicial, só anos depois recebeu um impulso decisivo, com o diploma de 1995. Decisivo, porém, no sentido de enfatizar a importância das uniões de duas pessoas, de sexos diferentes ou do mesmo sexo, revelar-se-ia a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio. Foi então que pela primeira vez se institucionalizaram, de forma sistemática e mais ampla, tipologias de direitos de que seriam titulares os sujeitos de uma União de Facto protegida.
Tanto quanto sucede com o artigo 2020º, a Lei continua sendo aqui rigorosa nos pressupostos de reconhecimento dos direitos envolvidos. Mister é que os unidos de facto estejam vivendo em comum há pelo menos dois anos. Se compararmos hoje o tempo legalmente requerido para que ocorra uma acção de divórcio litigioso, veremos que estes dois anos parecem marcar o legislador, que, afigurando-se normas algo instrumentais, técnicas, ao serviço de uma segurança exigível neste âmbito, vemos que o legislador se obstina nestes dois anos, porventura, à míngua de um critério equitativo para o feito. E apenas por esse facto, a saber, ausência de ponderações transportáveis para um discurso justificador racional, chamo a atenção para a persistência numa norma técnica. Perguntando se será este o melhor caminho; sobretudo, se é adequado o processo de legiferação nesta matéria que sobretudo requer justificação de pendor valorativo.

Ex: Dois anos, afirma a lei. Porquê? Não seria hoje mais simples a contagem de um prazo inferior, posto que se provasse ter a União em causa sido consistente, assumida? Imagine-se a hipótese de um par idoso, que vive em comum o último ano de uma vida marcada, nessa fase derradeira para um deles, por fortes emoções, decisões complexas…Qual a justificação dos “dois anos”? Probatória?
Não seria, aliás, de devolver à jurisprudência a margem de aplicação, decorrido o primeiro ano?

Com efeito, a lei das Uniões de Facto possui os seus traços de diferenciação:
_ O processo de constituição é informal e também o será o processo de dissolução. Por isso, a prova do momento de constituição e extinção é tão difícil; por isso suscita tantas dificuldades a sustentação do decurso de dois anos, pedra angular no processo aquisitivo dos direitos decorrentes da União, sobretudo por morte de um dos seus membros (artigos 2º, 3º, 8º);
_ A União de Facto aceita-se entre pessoas do mesmo sexo (artigos 1º, 7º). Os direitos, porém, sofrem aqui uma compressão. Sucede que os unidos do mesmo sexo não poderão adoptar (de novo, artigo 7º);
_ Os direitos que a Lei consagra são sobretudo de natureza social e laboral: gozo de férias em conjunto, com articulação dos correspectivos mapas para o efeito, direito à casa de morada de família, finda a união, posto que prove o membro abandonado ou sobrevivo não possuir outro local de residência e durante período que a lei determina, como igualmente determina as condições do exercício do direito (artigos 3º, 4º, 5º, 6º).
A Lei não apresenta um critério de determinação do grau de proximidade entre os unidos, a sustentar a relevância e a própria existência da União. O critério, em todo o caso, decorre da ideia que percorre a Lei 6/2001, sobre as Uniões Parafamiliares e bem assim, o espírito básico do casamento. Trata-se de um projecto de vida em intimidade e partilha material e espiritual, não de carácter fortuito antes com foros de persistência. Não serão concebíveis, naturalmente, uniões de facto sobrepostas, cumulativas, por parte da ou das mesmas pessoas. O legislador dispensa referências ao ponto restritivo, já que os princípios gerais de Direito balizam esta proibição e a sustentam, aliás, do mesmo passo.
Chamo a atenção para este aspecto, aliás cada vez mais complexo. Será que poderemos apreender os traços jurídicos da União de Facto através de um conjunto de deveres pessoais entre os unidos?
Uma hipótese que acode é a comparação com o casamento. Dir-se-ia então que talvez esses deveres pessoais do casamento fossem o padrão a ter em conta neste outro caso, ainda que com uma exigência de menor intensidade (um dever de respeito”menor”; um dever de assistência “menor”) ou então, suprimidos alguns e deixados sobreviver outros.
Mas não creio. A contra-imagem da União de Facto não é o Casamento. Justamente, une-se de facto, as mais das vezes, quem pretende uma alternativa ao casamento e não um casamento com…”capitis diminutio”.


Comparações entre os vários tipos de instituições familiares

Mister se torna pois estabelecer comparação entre os núcleos essenciais dos direitos e deveres consagrados para as situações matrimoniais e as outras, a fim de poder concluir acerca da afinidade essencial entre os agregados a que aludimos e a lei contemplou. Afora diversidades evidentes e bem vincadas, compete apurar acerca da existência de um estro de comunicabilidade com que sempre se considerou inerente à união entre duas pessoas e que o casamento exprimia sem suscitar discussão.
Façamos então uma comparação das diferenças essenciais entre casamento e uniões informais e procure-se um tertium comparationis.
_ a mutação relativa à possibilidade de inclusão de uniões entre pessoas do mesmo sexo, que irrompe na Lei 7/2001. Antes não era apenas omissa, representava um caminho claramente ao arrepio dos princípios sociais vigentes e dominantes;
A diferença constitui ponto obrigatório de reflexão. Por um lado, a possibilidade de miscigenação de duas formas de sexualidade paradigmaticamente distintas suscita a ideia de que, diferentemente da opção legislativa de 77 e suas antecessoras, se faz agora incursão num mundo de afectos ou pelo menos de formas de intimidade em que a libido de alguma forma se deixou esbater. Não terá pelo menos uma presença dominante. Assim, o legislador permite um modelo de convivência nos antípodas da sua manifestação habitual, tal como acentua a precariedade das relações íntimas entre duas pessoas.
O tipo de afecto que a lei agora reconhece não tem o mesmo condicionamento biológico nem a raiz cultural antes conhecida. A sua consideração numa mesma ordem de padrão familiar, mesmo em sentido amplo, inicia um processo de alteração do núcleo familiar. Por outro lado, marcando pontos numa direcção de sentido inverso, a proibição de adoptar já referenciada e imposta a casais com esta fisionomia indicia a sua desconsideração como lugar de integração de seres em processo de desenvolvimento, identificação social.
Mas não é líquido que a ordem de argumentos do legislador nesta sede proibitiva da adopção em tais casos seja um argumento no sentido de afastar do enredo familiar os tipos de instituições em questão.
Não se afigura argumento no sentido de irradiar do modelo familiar as famílias homossexuais uma tal proibição.
Por um lado, o afastamento da adopção que a lei impõe pode_ é argumento sustentável _ atender apenas ao interesse dos menores; pode representar uma medida de cautela, preventiva, face ao seu direito ao desenvolvimento pessoal. Ou seja: na dúvida entre a perfeita sanidade decorrente de uma situação assim e perigos eventuais para a estruturação da personalidade, o legislador opta pela prudência de uma solução “típica” e não entrega o menor a um quadro familiar que duvida potencie malefícios, ainda que subtis, à estruturação da criança, do jovem. Isto não significará, contudo, a negação da intimidade da relação em causa e muito menos, a sua homologia com as formas de convívio amoroso ou afectivo tradicional. Também marido e mulher poderão perder o exercício de responsabilidades parentais sem que isso questione a sobrevivência do casamento que celebraram.
Aliás: veremos que a procriação não é escopo do casamento. Nem em idade fértil, nem em qualquer outra fase da vida…O legislador não rodeia o problema de eterna carência de solução, relativo ao casamento de pessoas idosas (um forte argumento esgrimido, veremos, pelos homossexuais que clamam pela semelhança entre a sua situação e esta outra).
_ A vida em União de Facto configura-se juridicamente como um alter ego da vida matrimonial. A celebração despe-se de solenidade, prescinde de publicidade. Os órgãos públicos não estão aqui presentes. E isto transforma o decurso de dois anos, o prazo necessário, como vimos, para o seu carácter legal protegido, uma verdadeira probatio diabólica.
É curiosamente a Lei sobre Medidas de Protecção de Pessoas que Vivam em Economia Comum a que mais se aproxima da explicitação do critério fundamentador. Afirma a necessidade de “uma vivência em comum de entreajuda e partilha de recursos” a criar o núcleo das duas figuras que então irrompem.
É certo que nesta última situação da Lei nº 6, os membros do agregado não têm uma relação afectiva do tipo indiciado no caso das Uniões de Facto. Mas em todo o caso a linguagem dos afectos nasce legislativamente, depois do Livro da Família e fora do seu âmbito, aqui.
Pergunto, a terminar: e a diferença entre direitos e deveres na União de Facto e no Casamento?
A resposta afigura-se linear. Sendo a União de facto uma realidade institucionalizada que se baseia na vontade de construir um agregado familiar menos forte nos seus efeitos do que o agregado matrimonial, compreende-se que haja reflexos desta opção em todos os aspectos. E



os pessoais terão aqui uma proeminência evidente. Deveres como o de coabitação, fidelidade, cooperação, assistência, respeito, serão inerentes à relação dos unidos de facto; porém, com uma densidade inferior. Situam-se entre os deveres gerais de urbanidade de que alguns deles decorrem e os deveres conjugais, mas situam-se num plano diferente, mais esbatido. Quando se devam considerar quebrados? Sempre que o comportamento em apreciação manifeste forte probabilidade de ruptura do laço construído. Esta a diferença fundamental face ao casamento. No plano daquele, admite-se que mesmo após uma ruptura de deveres tenha o casamento condições para se manter, cabendo ao eventual interessado em intentar acção de ruptura a prova de que o comportamento foi não apenas episodicamente lesivo, mas destrutivo, da sociedade conjugal. Em sede de União de Facto, a destruição da mesma presume-se, ante terceiros, logo que se manifestem comportamentos que indiciem desconformidade com os deveres básicos. Pois o respeito de que a lei rodeia a vivência no recato de uma esfera privada tem como contrapartida que, a nível público, valha tudo aquilo que os fautores da União deixam transparecer. A segurança jurídica sustenta-se nesta exigência.





Aula nº 4

O problema da extensão dos efeitos jurídicos das Uniões de Facto na doutrina actual

Introdução
Poderá afirmar-se que a nossa ordem social aceita as regras legais em vigor em clima de identificação, sintonia com o seu conteúdo. A discussão marca a diferença entre aceitar ou não um regime mais denso para as formas de união homossexual. Não se questiona de um modo geral que produzam efeito as Uniões de Facto, assim como os efeitos que produzem.
Mais: os debates recentemente ocorridos no campo político, social, jurídico, deixaram transparecer uma mensagem de receptividade, por parte dos representantes das forças partidárias com legitimidade conferida para o efeito, de propor legislação mais abrangente, mais ambiciosa neste plano.
Chamo a depor, a título de exemplo, uma das grandes diferenças. Verifica-se no plano sucessório. O unido de facto sobrevivo não é sucessível, no sentido rigoroso da expressão; e mesmo o seu entendimento enquanto “legatário legítimo”, que mais adiante ponderaremos, a propósito das relações entre os direitos da Família e Sucessões, mais não consegue do que deixar transparecer a enorme debilidade da sua situação após a morte do companheiro.

Ex: Suponhamos que A vivia com B, que entretanto morre. A União de Facto durou mais de dois anos e a casa de morada pertencia ao falecido.
De que direitos em relação a essa casa de morada é A titular?
E deveremos considerá-lo um sucessível de B?

Diferentemente do cônjuge, ele não surge como herdeiro. Recebe coisa certa (um usufruto da casa de morada) e datada. A expressão que procura dignificar a sua situação, a adjectivação do legado como legítimo, colhe efeitos ao arrepio desse seu propósito: há, de facto, voluntarismos que se mostram contraproducentes e este é decerto um deles. Legatário legítimo de segundo plano? E em termos práticos; ganha-se alguma coisa com isso?
Já a integração deste unido de facto entre os sujeitos elencados no artigo 496º do Código Civil se afigura, não só mais fácil, como de uma justiça evidente.
Ex: A, unido de facto a B, assiste ao acidente de viação em que este morre, o que lhe provoca grande transtorno, e, na sequência do evento, solicitar ressarcimento por danos morais invocando o preceito, quid júris?

Aqui, em sede de indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima, o direito cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e a vários outros parentes, seguindo uma lógica de proximidade (linha recta; proximidade na linha colateral). De fora está o unido de facto. Deveria ser assim? A jurisprudência já abordou o problema. Creio que o sentido da norma permite incluir aquele que viva em situação idêntica à do cônjuge, integrando-o por extensão analógica nesta cadeia do artigo 496º. Afinal, o ponto essencial que aqui se contempla é o ressarcimento que o Direito reconhece como direito, àqueles cuja proximidade advém da relação familiar e sofrem a perda do ente perdido. Este critério de justiça que chama a depor a afectividade não terá como afastar o unido de facto sobrevivo.
Claro que uma interpretação estrita do texto da lei não iria nunca por aí. Trata-se de um tema polémico, juridicamente. As premissas enunciadas são apenas um enunciado dos tópicos da argumentação.
Por último, aventa-se um argumento de não menor interesse. A par deste critério de justiça aventado, coloca-se a segurança de terceiros, as expectativas que incidem sobre os obrigados a indemnizar. Ora, pensando a defesa do seu direito, seremos tentados a concluir que, não colhendo a lei os unidos de facto nesta sede, não se justifica que o venham a ser, onerando quem não contava com este acervo de credores.
Mas, ainda assim, creio que corre a melhor solução do lado do alargamento dos destinatários do direito ao ressarcimento. Pois não se admite com “pré-aviso” quem é destinatário do direito de compensação, mas apenas se cura da existência deste direito dentro de um acervo aliás amplo de contempláveis.
As situações referidas são paradigmáticas da dificuldade do enquadramento legislativo do regime da União de Facto perante outros institutos legais. Não pretendem, como se frisou, esgotar o problema, mas demonstrar em todo o caso que ele é hoje muito relevante, identificando alguns dos seus ponto

O pensamento da Igreja Católica sobre as Uniões de Facto nos primeiríssimos anos do milénio
Coloco a questão porque ela corresponde a uma evolução sensível verificada nos últimos anos. Com efeito, já neste milénio a Igreja Católica verberou contra as Uniões de Facto. Os textos de reflexão que se publicaram não se dirigiam a legislações concretas. Visavam o problema em termos ecuménicos e alertavam para os, em seu entender, malefícios daí decorrentes.
Chamo-vos a atenção para duas objecções que são importantes do ponto de vista da argumentação jurídica.
O primeiro respeita à filiação. Em nome dos direitos dos filhos, menores, sustentou o pensamento católico que a União de Facto redundaria numa violação da sua dignidade, já que os privaria do processo de desenvolvimento no âmbito da família socialmente legitimada pelo reconhecimento social e capaz de se assumir como tal.
E mesmo aí onde o argumento não surge com este sentido enfático, enunciam vozes de grande relevo argumentos em prol da necessidade de dotar a família cujo processo de constituição obedeceu a critérios formais. João Paulo II escreveu páginas belíssimas e de grande valor teórico e argumentativo sobre o ponto.
Creio que o argumento é “forçado”. Parece-me, com efeito, que a dignidade humana e seu reconhecimento não dependem de uma identificação do modelo social em que a educação é conferida. Dependerá, sim, da circunstância de ser tal educação conferida, num quadro social adequado, que poderá assumir perfis variados. Trata-se de planos diferentes, outorgar educação e enquadramento institucional desta educação; reconhecimento do direito dos menores a um ambiente que confira meios salutares de desenvolvimento e identificação estrita desse meio com a família em sentido biológico.
Mas o argumento fulcral aventado desenvolve-se, creio, noutra direcção. Trata-se da suspeita da consistência (pela tendencial precariedade; pelo circunstancialismo muitas vezes eivado de factores pontuais e que rapidamente correm o risco de se diluir) das Uniões de Facto, por regra comparativamente superior às fragilidades do casamento.
A realidade portuguesa mostra, em todo o caso, que opta pela União de Facto um acervo importante de pessoas que ultrapassou a idade fértil. Que nos casos em que isso não acontece, a opção é sustentada em muitos casos por uma decisão que se enquadra em termos de maturação e até cultura que levam a presumir a reflexão, ponderação acima de muitas outras situações. Enfim, que os casos de pobreza e sobretudo miséria que nos antípodas destes, ditam muitas Uniões de Facto, não veriam alteração nas consequências sobre a educação dos filhos só através da mediação do matrimónio.
Afigura-se, enfim, muito problemático este esgrimir do argumento de que a União de Facto não só não possui um espaço ético próprio, como ainda, que redunda, nos casos em que se verifique procriação no seu seio, uma violação dos direitos do menor assim nascido.
Há um espaço ético próprio para a UF. Decorre do direito à liberdade, do direito a não casar, posto que assim o entenda exercer qualquer pessoa. O casamento é uma opção sacramental, não é um dever implícito a cada católico. Quanto aos filhos nascidos em União de Facto, não impenderá sobre eles, num Estado que não sustente esquemas férreos de censura, o anátema da origem. A lei portuguesa obriga, como adiante se verá, a que a circunstância que rodeia o nascimento seja depurada, no acto de registo, de qualquer explicitação das circunstâncias que a envolveram.

O caminho das Uniões de Facto: entre a expansão e a cristalização/retracção
Porém, irradiar o argumentário aqui expendido não significa esvaziar as Uniões de Facto de um fundamento ético e social sólido. Diferentemente, trata-se de, através de um breve excurso pela sua evolução, descortinar em que medida devem ser analisadas enquanto contributos para a coesão familiar na sociedade. Em que medida uma sua consideração axiológica sustentada no enquadramento que lhe proporciona a doutrina mais conforme à consideração e defesa dos Direitos Humanos, aos princípios sociais em que a ordem essencialmente se escora, permitirão, não apenas a sua sobrevivência enquanto plano familiar, mas, ainda além disso, o seu eventual desenvolvimento enquanto fontes de efeitos jurídicos novos. Estes novos efeitos dependerão da estabilidade da instituição, da sua aceitação geral, do grau de consenso que se logre gerar a seu respeito.
Ora, sabemos a que ponto é mérito do legislador contemporâneo traduzir a mensagem positiva das Uniões de Facto sociais. Acrescentaria: foi, antes, mérito da fisionomia com que estas se estabeleceram impor-se normativamente com veemência.
A lei falava, pejorativamente como dissemos, de concubinato. Hoje a expressão evita-se sempre que envolva calúnia. O critério de avaliação modificou-se e considera-se “errado”, ao arrepio de bons costumes é o uso de expressões que revelem essa hostilidade deslocada.
Mas é preciso ir mais longe e ver em que medida um núcleo de boas práticas, bons princípios, esteja contribuindo para o incremento jurídico das Uniões de Facto.

O problema nas soluções jurídicas mais debatidas acerca dos deveres pessoais. O regime jurídico e as suas pistas

Tomamos alguns pontos de reflexão a partir do seu regime jurídico. Há aspectos deste regime que já foram apontados. Sistematizamos agora outros cuja importância é evidente.
Trata-se dos deveres pessoais. A lei não desenvolve aqui, contrariamente ao que vemos acontecer em sede de Casamento, direitos e obrigações de feição pessoal obrigando as partes envolvidas. À primeira vista, decorre da interpretação sistemática do diploma que o objectivo terá sido irradiar tais deveres: de lealdade, coabitação, assistência…
Mas a conclusão seria precipitada.
Desde logo, porque o legislador antecipa ponto de vista adverso, ao afirmar que a cessação da coabitação porá termos à União de Facto. Mas o problema fundamental situa-se em relação aos outros deveres pessoais. Terão eles, pergunta-se, densidade equivalente à que exibem no Casamento?
Vejamos o dever de assistência, uma vez que a lei parece clarificar aqui o seu critério.
Há um dever de assistência na União de Facto que justifica o gozo em comum de férias, a entre - ajuda legalmente favorecida pelas leis laborais quando é necessário acompanhamento na saúde pelo unido de facto. Apenas estas regras demonstrariam a força vinculativa do dever de assistência que inspira a lei, por muito frágil que a sua garantia se revele.
É certo que esta injunção não se imporá nos mesmos termos a todos os deveres pessoais. O dever de lealdade é um dever que dificilmente concebemos excluível na UF; em todo o caso admitirá uma densidade menor: não é garantido que tenha de a possuir nos termos por regra identificados para o casamento. Resta, porém, saber se a actual legislação matrimonial, após a integração dos fundamentos e procedimentos que rodeiam o Divórcio, continua a ir no mesmo caminho. O encurtamento dos prazos de vigência de instituições traz consigo uma correspectiva fase de assumida turbulência, que aqui ocorrerá naquele prazo confinado de dois anos, findo o qual se pode requerer o termo da sociedade conjugal. Pergunta-se, então, como aceitar uma apodíctica “lealdade” prolongada e estável, se a lei permite mutações tão profundas no espaço de dois anos?
Há uma pré-compreensão da lei actual a favorecer, creio_ terminando este nosso breve ensaio de colocação do problema _o alargamento dos direitos que as Uniões de Facto conglobam. Foi em nome da sua dignificação e do reforço de garantias sociais que o legislador ousou avançar. Creio que esta realidade é argumento correcto no sentido da conclusão de que a enumeração continente destas normas, o artigo 3º, estará muito longe de ser uma norma fechada. Vejo-a como norma abrangedora de uma enumeração exemplificativa dos direitos dos unidos de facto. Em todo o caso, não perdendo o horizonte da diversidade que separa este diploma e o do Matrimónio.
É uma manifestação de tibieza, este arrimo argumentativo? Acredito que possa ser interpretado assim. Mas considero que em boa hermenêutica, não deve.
Há, na raiz da União de Facto, várias espécies de opções de vida, sabemo-lo. Alguns unidos de facto não têm a cultura da institucionalização dos laços afectivos na esfera pública. Outros optam por uma fase experimental. Enfim, há casais que não prendem a experiência do casamento e por razões que relevam das suas opções de vida, com as quais não temos o direito de lidar. Um segundo, terceiro (primeiro, mesmo) casamento pode trazer problemas financeiros, sucessórios, mas também no plano do convívio familiar quotidiano. Por opção não casam estas pessoas, o que é obviamente respeitável. Mas sendo assim, ocorre perguntar com que legitimidade impor, portas dentro das uniões mais lassas que voluntariamente constituam, um modelo decalcado do modelo matrimonial. É certo que no plano jurídico o modelo matrimonial constitui um quadro rector. Mas um quadro rector não deverá confundir-se com um leque de soluções de equiparação. No núcleo fundamental das relações pessoais compreende-se que a relação conjugal tenha pressupostos mais fortes. Dir-se-á mesmo: representaria um contra-senso admitir que os não tivesse. Pois a diferença das opções faz presumir uma concomitante diferença de consequências e seria um erro deturpar esta cautela interpretativa, no cadinho de uma equiparação precipitada e por isso, grosseira.

Casamento e União de Facto: o núcleo pessoal exigível em sede probatória
E abandono por um tempo este mundo do Parentesco para voltar àquelas formas de Família que se revelam menos ortodoxas. Penso nos pressupostos da União de Facto, por comparação com os do Matrimónio, a forma de união intersubjectiva por excelência.
A razão deste breve regresso deve-se ao necessário apuramento do grau de consolidação que se deve exigir à relação entre os unidos de facto, de modo a que as consequências jurídicas da União operem.
_ Suponhamos que Diana e Fernando casam, combinando à partida que interpoladamente viverão separados e se comportarão pondo de parte vínculos conjugais. Durante uma dessas fases, Fernanda Morre.
Não se põe em causa a subsistência do casamento, que entre ambos vigorava nos termos de uma vontade pessoalmente conformada e se submetia ao regime formal próprio.
Mas suponhamos agora que Diana e Fernando são unidos de facto, meramente. E que fizeram acordo idêntico. Quando morre Diana, tem Fernando direito, por hipótese, à casa de morada de família, como tendo vivido em União de Facto protegida?
Em princípio, parece correcto afirmar que sim. Pois terá sentido conferir menos plenitude de efeitos a este tipo de união, que se pretendeu mais informal, “descomprometida”, do que sucede com a união formal por excelência?
Direi que Diogo e Fernando casados assumem publicamente o seu compromisso _ na esfera pública, através do contrato que celebram. Isto projecta na comunidade um reconhecimento directo da situação/estatuto pessoal de ambos, de tal modo que, não manifestando o casal outra vontade. Será o Casamento e os seus efeitos que a sociedade esperará acolher.
Diana e Fernando, unidos de facto, exibem uma atitude de indiferença ante a esfera pública, ao menos, no que faz secante com os elementos essenciais da sua relação de União. O ónus de provar a existência de direitos decorrentes desta corre a cada passo, a cada momento da existência da União de Facto. É a opção do casal; é o modo de respeitar, em plenitude, as consequências jurídicas.
O mesmo tipo de argumentação se pode chamar a depor a propósito da famigerada aplicação do artigo 496º do Código Civil ao unido de facto sobrevivo.
Se bem recordam o exemplo, que não consta em pormenor destes “Sumários” mas foi discutido nas nossas aulas, questionámos a bondade de uma interpretação restrita, ou literal, da lei. Uma interpretação que permita ao unido de facto assumir o lugar de um cônjuge sobrevivo inexistente, muito à frente de parentes afastados, em nome da dor que com toda a probabilidade é muito mais intensa do que a dor de um daqueles.
Que dizer? É indiscutível a maior proximidade do espírito da lei deste unido de facto, do que a de parentes afastados. Por outro lado, o argumento demolidor do direito dos unidos de facto a perceber danos morais, que será a total “surpresa” dos destinatários do ressarcimento, a violação consequente do princípio da segurança jurídica, não tem uma densidade evidente. Com efeito, terceiros adstritos ao pagamento da indemnização dificilmente terão mais do que uma ideia remota acerca do núcleo dos visados: assim como a expectativa destes será lassa, na maioria dos casos.
Em que ficamos?
Diria que a lei não privilegia aqui, nem uma relação concreta de parentesco ou outra, nem de proximidade. Olha a existência da dor e do direito a compensá-la face aos principais visados. Publica ou privadamente assumidos, os unidos de facto estão aqui. Deverão perceber a indemnização, nos termos que a lei estipulou para o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens. Penso que as regras gerais do Código Civil em matéria de integração de lacunas (cfr. a “norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar de acordo com o espírito do sistema”) resolvem legitimamente o problema. Não será mister criar legislação específica para o caso: a solução decorre já da ordem jurídica portuguesa.



Por último, um paradoxo. Acrescento um ponto que tanto quanto o avalio, é uma irrelevância. É o caso de alguém cuja UF teve início antes dos 16 anos e os perfaz agora. Penso que uma condição ilegal…não deixa de ser uma condição ilegal. Atribuir-se-lhe-á todo o benefício da irrelevância.
Temos de assentar em que o eixo comparativo com o casamento decorre da recepção, que devem as UF fazer, das normas em que se mostra ponderado o interesse público e pessoal. Bem como da recepção das regras de natureza análoga, que por essa analogia, e só por ela, merecem o benefício da inclusão pela UF. É o caso dos direitos pessoais, na medida em que se aproximem dos fins que a sua inserção contempla no casamento. A ponderação patrimonial é mais suscitada pelo acicate do caso concreto, mais “tópica”, afinal.
Creio serem estes os parâmetros a atender. E, na cúspide, resultados socialmente estáveis.



Aula nº 5

Fontes Constitucionais: preliminares
E analisada a Família enquanto objecto do Curso, revertemos à matéria das suas fontes.
Segundo parte muito expressiva da doutrina, pegamos agora e só agora nos primeiros tijolos da casa. Pois a Constituição é a cúspide do sistema e cumpre olhá-lo a partir dessa localização cimeira.



Não fazemos aqui a opção dominante em muita doutrina jusfamiliar. Penso, a título de exemplo, na apresentação que muitos estudos alemães fazem: é a matéria do enquadramento constitucional que apresenta aí foros de primazia, é dela que se parte para o subsequente estudo de outras matérias, como o Casamento, a Filiação. Se forem analisar qualquer Manual de Direito da Família recente, encontram esta estrutura.
Mas a realidade que examinam é outra e tem, neste ponto, divergências que me parecem importantes. A Constituição Alemã é uma norma fundamental da Democracia, tal como a nossa Constituição de 76. Porém, o lastro jurídico familiar não tem, nesse Direito, as características que vemos congregar na ordem jurídica portuguesa. Não se verifica o mesmo quadro de articulação entre o casamento civil e as regras canónicas a que sempre, ao longo dos séculos (pensando tão só na identificação do país, no dealbar da Monarquia) marcou a ordem jurídica matrimonial. Esta articulação exprimiu significações, consequências jurídicas diferentes, no tempo da sua vigência. Mas existe em linha de continuidade; uma continuidade à luz da qual é compreensível a incorporação de elementos que influenciarão, quer a instituição Matrimónio, quer a interpretação de algumas das normas ora colocadas em vigor, sem que isso distorça um processo hermenêutico escorreito.
Relembramos, pois, em jeito de síntese, porém, que a favor de uma consideração simultânea, às vezes dialéctica, dos conceitos de Família/Casamento depõe, entre nós, a especificidade da história dogmática. A Constituição de 76 rompe com o regime ditatorial e suas manifestações e nesse sentido, aduzimos, é uma 1ª Constituição Histórica da Democracia. Mas muitas instituições de antanho marcam ainda o seu significado: porque se lhes sobrepôs um sentido que perdurou além daquele de natureza política; porque se deixam permear da realidade cultural do país.
Estão neste caso todos os conceitos em que a identificação entre sentido social, religioso e jurídico se manifestavam em pontos fulcrais. O casamento português é um representante dilecto desta estirpe.
É certo que sempre, ou quase (direi: sempre, após a entrada em vigor do Código de Seabra) tenderam casamento católico e civil (laico) para a separação, mas num quadro social de convergência em que o primado jurídico do casamento católico se faz sentir com toda a pujança. É igualmente certo que a Constituição esbate este quadro, tal como impõe uma recriação das normas matrimoniais no plano de uma identificação laica que trará consigo a articulação com novos direitos e seu cumprimento (dignidade de todos os seres humanos; igualdade perante a lei; emancipação dos menores enquanto personagens dentro, também, do quadro familiar).
Porém, apesar deste influxo do gume que sulca a importância dos Direitos Humanos, permanece uma raiz na pré-compreensão do instituto, impeditiva de um olhar jurídico isento e mais, correcto, sobre o casamento, fora desta sua articulação social de antanho.
E por isso só agora a ela vamos. Assumindo, naturalmente, a incumbência de retirar todas as consequências que a fonte constitucional impõe.
A compreensão dos modos de incidência do Direito Canónico sobre o Casamento supõe o enquadramento deste enquanto instituição jurídica complexa e caracterizada por um regime jurídico cujos meandros se impõe descortinar.

Os pressupostos do Casamento na Constituição

Assim, diremos que o contrato de casamento não é apenas solene, é igualmente submetido a um regime normativo muito denso que adapta as suas possibilidades de aplicação de acordo com vários circunstancialismos. Não só a forma de celebração impõe mecanismos

próprios, como é certo estar vedado em muitas circunstâncias a possibilidade de casar. Há assim impedimentos absolutos, ou seja, que se impõem sempre e face a todas as outras pessoas, como impedimentos relativos, que advêm de relações particulares entre algumas dessas pessoas.
Concretizando: a demência, a menoridade abaixo dos dezasseis anos, são impedimentos absolutos. Está em causa, como fundamento da recusa legal, um aspecto inerente à personalidade do eventual nubente, aspecto esse que o legislador identifica como inultrapassável em todos os seres humanos e face a todos os seres humanos. Casar abaixo dos 16 anos foi possibilidade abertas às raparigas, em nome de alegada maturidade; mas contra os meios de evolução da sua educação em todos os sentidos, da sua preparação social e profissional. Era uma espécie de transferência de tutelas, a patriarcal e a marital, ou, mais problemática ainda, a inserção abrupta num meio familiar novo, sob a influência de um triângulo “suspeito” nas configurações e consequências: marido sogro e sogra.
Mais complexa será a possibilidade que a lei igualmente veda de admitir o casamento de seres humanos com perturbação mental, ainda que, segundo a lei, que pede aqui de empréstimo a expressão do Direito Canónico, “durante um intervalo lúcido”.
A lei do Estado não permite ir por aí. O casamento de portadores de anomalia psíquica não esmorece em gravidade pela circunstância de ocorrer durante estes intervalos. Nem razões eugénicas, nem o diagnóstico do doente permitem sustentar em confiança e segurança acrescidas uma tal relação. Por isso, não a aceita a lei.
Mas há impedimentos de outro tipo, que se tornam de ponderação mais apelativa pela relação social que têm inerente. Refiro os impedimentos relativos, aqueles que não arredam o matrimónio de todas as suas possibilidades de celebração, mas apenas, daquelas possibilidades que envolvam determinadas pessoas
A poderá casar. É maior de 16 anos, imputável. No entanto, jamais celebrará, segundo a lei, casamento com seus pais, avós, ou quaisquer outros ascendentes ou descendentes na linha recta. Como está impedido de casar com os irmãos (colaterais no 2º grau) e, em princípio, com sobrinho ou tio (colateral no 3º grau).
Parece clara a opção: intervêm a moral social, as razões eugénicas no sentido desta proibição. E, no entanto, resta-nos uma reflexão a este respeito. Imaginemos, quer o parentesco na linha recta que em dada situação se verifica não é socialmente reconhecido, e muito menos o foi alguma vez pelos nubentes, que sempre viveram apartados do convívio respectivo, não tendo qualquer conhecimento da real situação jurídica que os entrelaça. Quid Juris?
A lei não excepciona tais casos. Eça de Queirós, (também) aqui, manteria a sua actualidade: Carlos Eduardo e Maria Eduarda da Maia não poderiam encontrar paliativos legais para o seu relacionamento amoroso, pois a inocência não lhes retirava a qualidade familiar e as implicações jurídicas decorrentes.
Razões para um discurso legal justificador? Moral social, receio de operar derrogações que possam desvirtuar a linearidade de uma regra cuja existência contém a plasmagem de um princípio e inerente, um aviso a que o legislador não permite concessões.
E a relação entre tios e sobrinhos? A verificação estatística mostra a que ponto se revela parcimoniosa na lei portuguesa. Estes casamentos, raros, não parecem esconjurar, na desmotivação legislativa, o aspecto eugénico. Mas muito dificilmente seriam concebíveis fora do âmbito de uma família alargada.
Temos, pois, um acervo de fundamentos da invalidade matrimonial que mostra não ser esta uma sede em que a lei portuguesa vinca um modelo de autonomia face às demais. Inversamente, o modelo é comum, dilui-se, nos seus principais traços, dos modelos que encontramos em outros países da União Europeia, de Língua Latina na América.
O problema estará então em saber que elementos destas regras são submetíveis à consideração dos nossos tribunais, ou antes, totalmente devolvidas aos tribunais eclesiásticos.
A Constituição refere que a lei civil é o lugar de acolhimento das normas de constituição, dissolução e efeitos do casamento. Parece que a porta se abre ao Direito Canónico através de uma subtileza argumentativa. Pois que o processo preliminar de constituição e as suas consequências seriam um alliud que se arreda deste critério de submissão.
Mas será assim? As condições de validade marcam a fisionomia jurídica de qualquer negócio jurídico. O processo de reconhecimento da sua eventual validade é crucial neste plano. Não vejo como sustentar que os efeitos da constituição do casamento devam separar-se dos restantes efeitos da relação matrimonial.
No entanto, dois aspectos são chamados a depor agora, em sede de outorga ou não do juízo da oportunidade de um critério inválido aos tribunais judiciais.
Em primeiro lugar. Os critérios fundantes desta validade são homogéneos. Assim acontece na ordem jurídica portuguesa desde o século XIX, vigorava o Código de Seabra. Já aludimos a este ponto, sobre o qual convém tornar. Será a lei ordinária a influenciar o Direito Canónico neste ponto, cristalizando um fenómeno de diálogo entre o braço civil e o braço eclesiástico em que este não deixava por isso, sabemo-lo, de deter a parte mais importante.
Ora, esta influência permeia o Direito da Igreja, permite que venha imbuir-se, neste ponto, de uma afinidade laica. Não haverá razões, muito tempo depois da aplicação inicial do critério, para suspeitar da identidade essencial que exibe face ao direito português.















Aula nº 6
Fontes Constitucionais do Direito da Família (continuação)

o casamento civil e católico no Código de Seabra à República

Recordam as personagens que a marcaram no Direito das Mulheres, ou melhor, na perseguição do sonho por esse Direito que não chegaram a conhecer: Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Angelino, mais recentemente, Elina Guimarães. E Isabel Telo de Magalhães Collaço.

A República, a Lei do Divórcio, os “desencantos”

Imaginamos e acertamos se pensarmos as mais antigas do grupo, que viveram a implantação da República, rejubilar com o divórcio católico. Ele é decretado em 1910, num intuito que foi apresentado como significativo passo de aproximação aos direitos das mulheres, ao reconhecimento da sua cidadania.
Sucede, porém, que se esse foi alguma vez o objectivo do Divórcio, ficou por aí. Não se reconheceram consequentemente o direito de voto das mulheres, nem muitos outros. No fim da vida, Ana de Castro Osório proferia palavras amargas contra o movimento político republicano, em que tanto acreditara.
Concluímos, pois, que da Lei do Divórcio fica na sociedade portuguesa a expressão de um arrimo de hostilidade para com a Igreja. A sociedade, essa continuou casando catolicamente por vezes às escondidas, sendo difícil vislumbrar as cifras reais do casamento católico nestes anos que duram até 1940.

Concordata com a Santa Sé, 1940
Mas é aí que, com a Concordata celebrada com a Santa Sé, o Estado Novo depõe o regime republicano e altera a situação.

_ O primeiro ponto em causa na ordem de considerações é o divórcio católico, agora proibido. Compreende-se que é e será a questão fulcral neste contraponto entre as diferentes aplicações dos direitos católico e laico e as hierarquias que exprimem ante a sociedade. Proibindo o divórcio católico, num país católico onde a própria tradição favorece a opção matrimonial, faz-se sentir a força real de um sistema normativo. Neste caso, o da Igreja. Essa proibição acontece.
_ Em outras matérias, semelhantes, aliás, às que entrevimos ao tempo do Código de Seabra, manifesta-se a importância do casamento civil. O regime de invalidades continua a merecer a aceitação da Igreja, como acontece com o regime de impedimentos.
_ Desta vez, porém, a reacção da sociedade portuguesa faz-se sentir com outro fulgor. Pelos anos 50 proliferam separações, seguidas de uniões de facto no seio das quais nascem filhos “fora do casamento”, “ilegítimos”, nos termos da Constituição e da lei. A situação atinge aqui e além o povo, os mais humildes, mas impende fortemente sobre uma classe que, não abdicando do seu catolicismo, milita os princípios de uma nova Igreja. Exprime-se o clima do Concílio Vaticano II. A sociedade portuguesa inconforma-se.
A literatura vai por aí. Luís de Stau Monteiro escreve um livro que incomoda. Outros se seguem.

O Acto Adicional, 1975

_ Vimos que o 25 de Abril descomprime este plano de desfasamento entre o poder novo e a Igreja na sua expressão de 1940. Entra em vigor, em 1975, o Acto Adicional à Concordata e repõe a possibilidade de decretamento do divórcio pelos tribunais portugueses.
Esta nova situação reveste uma particular importância, porque não é apenas a alteração que o Acto Adicional à Concordata produz que vem trazer problemas intrincados à inesgotável teia de relações complexas entre as leis da Igreja e do Estado. Com efeito, a entrada em vigor da Constituição da República de 1976 vem impor, no artigo 36º.2, a submissão ao legislador laico das matérias relativas ao processo de constituição, efeitos e dissolução do casamento por divórcio. E, se a questão da dissolução surgira entretanto resolvida, o mesmo não corre a benefício de várias outras. Sabe-se que o Código Canónico contém a figura do casamento rato e não consumado, cujo efeito não passa pela invalidade mas pela dissolução. Tudo está em saber qual a atitude do Estado português: aplicar automaticamente a norma, aceitar o acrisolamento do seu regime no universo do direito matrimonial da Igreja, ou antes impor a voz do direito português, rejeitando assim uma tal aplicação e consequente reconhecimento.
Sabe-se que a matéria logo dividiu a doutrina.
_ Os argumentos mais relevantes aduzidos em favor da autonomia da Igreja e da sua capacidade para impor as suas normas adveio dos autores próximos da tese segundo a qual a importância da Igreja na sociedade portuguesa não decorre apenas da Constituição, mas de uma tradição ancestral e de um peso secular condicionadores e fundamentadores a um tempo de um regime específico face a outras entidades estaduais, e fundamentadoras de um regime que seria de clara preponderância nessa hierarquia necessariamente merecedora de reconhecimento.
_ Noutro sentido, ouvem-se também vozes. E agora não há legitimidade para sobrepor, ante a clareza do texto do artigo 36º e sobretudo, ante a importância reconhecida à Santa Sé, configurada entre os Estados com quem tem relações o Estado português, nenhum elemento que traduza supremacia sua face aos demais estados com os quais Portugal se relaciona. Sendo assim, não se aplicariam na ordem jurídica portuguesa decisões que não passassem pelo crivo da lei nacional.

A Concordata 2004
O tema não perde actualidade e está na raiz da Concordata 2004 que vem a ser celebrada.
A Concordata 2004 marca no ponto que nos importa, a realidade jurídica matrimonial, um marco decisivo. É certo que não foi a ordem jurídica portuguesa alterada durante tempo algo longo após a sua entrada em vigor. No entanto, se dúvidas subsistiam acerca do influxo do direito nacional sobre o da Santa Sé, estas dissipam-se agora.
Reconhece-se que, pelo menos doravante, será a entidade portuguesa legitimamente envolvida a curar dos problemas relativos a todas as invalidades matrimoniais, mesmo todas as católicas, posto que se pretenda que produzam efeitos na ordem jurídica portuguesa.
A compreensão deste aspecto atinge-se estabelecendo a comparação com o regime que esteve em vigor até à Concordata e que aliás a procedeu.
De acordo com esse, a matéria relativa a certas invalidades matrimoniais era de competência reservada dos tribunais eclesiásticos. As decisões subiam, de acordo com os procedimentos, até à cúspide, ao Tribunal Apostólico, posto o que seriam reenviadas por este a um tribunal civil português. Aqui, a função que competia ao nosso aplicador era muito parcimoniosa. Deveria, segundo a lei, limitar-se à transcrição da decisão proferida, à sua divulgação.
Este, em síntese, o regime que desenvolveremos infra.
Este regime, profundo gerador de assimetria entre a função jurisdicional da Santa Sé e do Estado português, não só passava uma certidão de menoridade a este último. Era a própria função do Tribunal, órgão de soberania, que surgia desvirtuada. Um tribunal julga, decide. Não tem nenhuma afinidade com a sua missão de soberania transformá-lo numa entidade de registo de sentenças provindas de outros tribunais. O reconhecimento na ordem jurídica portuguesa de qualquer decisão da Santa Sé, posto que assente nos critérios que muitos autores sempre sufragaram, compatibiliza-se com uma manifestação prévia ao processo. Mas nunca se compreenderá que os tribunais da nossa ordem jurídica desvirtuam as funções que constitucionalmente lhes competem.
Compreende-se portanto a inflexão legislativa. Que ocorre cinco anos depois, em todo o caso, o que bem dá conta da resistência à mudança neste particular. Agora, o processo de dispensa passa pelos tribunais portugueses, sede da sua apreciação, para que valham na ordem jurídica nacional.
A lei, utilizando o sistema em presença, adopta como ponto de ancoragem a qualidade estadual da Santa Sé. Porque esta é um Estado se justifica que tenha a sua produção normativa o regime próprio dos tratados internacionais. Aliás, isso mesmo acontece, na nova versão do artigo 1626º.
Dir-se-á que o problema não é discutido no terreno constitucional. Aliás, não surge a menor referência a tal respeito. Em bom rigor, é o momento pactício que firma a Concordata 2004 que vem pôr cobro à querela, aceitando a Santa Sé uma tramitação diferente, com sinergias cometidas ao Estado português, na matéria em questão.

O Artigo 1626º e as suas duas versões

Procurando sistematizar a matéria em apreço nesta sede, elencaria:
_ Um regime que atribui à Igreja a apreciação de invalidades do casamento e bem assim, de um fundamento que exorbita tais invalidades, pondo fim à sociedade conjugal sem ser por divórcio ou morte: o casamento rato e não consumado, assim decretado Pela Santa Sé. Este regime, que colocava toda a margem de apreciação e decisão no foro religioso, determinava para o Estado português uma incumbência diminuta: transcrição, accionamento dos mecanismos de produção de tais efeitos.
_ Este regime plasma-se no artigo 1626º até este ano (2009) e por sua causa ergueram-se vozes de discordância face à sua adequação constitucional.
_ Com a Concordata 2004 e mais precisamente em decorrência do artigo 16º da mesma, a ideia legitimadora pela própria Santa Sé de um seu confinamento nesta sede faz-se ouvir. E será a Concordata, ela própria, a verberar a actuação dos tribunais nacionais em matérias que cabem no âmbito de aplicação da sua soberania.
_ Mas hão-se, como dissemos, passar alguns anos (2004-2009) até que o Estado legisle.
Razões? Não as avento aqui. Olhámos a matéria no sentido de compreender o Casamento face à Constituição. Afinal, esta mudança coloca ainda um problema constitucional _ equipara o Direito que se aplica aos casamentos religiosos aos tratados internacionais. Ou seja: permite-se olhar a Santa Sé como um Estado entre os outros!
_ Mas não deixemos de reparar que foi a Santa Sé a permitir esta nova tramitação dos casamentos na Concordata 2004, artigo 16º. Ou seja. Diferentemente do que acontecera no passado, é agora o Estado da Santa Sé que antecipa um problema da comunidade a que aspira aplicar-se e aceita uma resolução. Vemos, decerto, uma atitude notável no modo de lidar com o problema: não se impôs um regime ao Estado português, católico mas que ao mesmo tempo não abdica de certas regras suas. Vemos harmonização, respeito por valores básicos nacionais. Uma atitude comunicativa que marca em crescendo as grandes instituições que sabem da vantagem enorme em favorecer o contacto, a tolerância. A Igreja dá aqui um exemplo de grande impacto à comunidade internacional.

Ao exarar a jovem norma do artigo 1626º, o Estado português insiste em terminologia que, vincando a desconformidade entre a lei em vigor e o preceito já aceite, outorgado pela Santa Sé em 2004, nem por isso abdica de sublinhar a manifestação de soberania que a lei doravante conterá.
Com efeito, os pressupostos da nova norma são, de acordo com o Decreto – Lei 100/2009, assentes na desconformidade que ora se regista entre a Concordata e a situação em vigor.
Em abono do carácter pacífico que grassa na sociedade portuguesa sobre a matéria cita os tribunais: vêm-se estes recusando a dar seguimento ao processo de revisão de sentenças estrangeiras.
_ Enfim, assume a lei o papel activo dos tribunais portugueses, a requerimento dos interessados;
_ Altera igualmente o Código do Registo Civil (artigo 7º.3), impondo que as decisões averbadas aos assentos sejam aquelas que tenham passado o crivo do processo de tramitação;
_ Admite, por último, a possibilidade de a Igreja se assumir como parte requisitante ao Tribunal civil a notificação das partes, peritos, de diligências de probatório ou outras, sendo as margens de indeferimento do pedido muito parcimoniosas.
(estamos, claro, analisando o artigo 1626º na versão em vigor).

_ E, afinal, que casos são estes de que estamos falando, a que se virão a aplicar estas regras?
1. Os casos de nulidades do casamento católico, uma invalidade que a ordem jurídica portuguesa não congrega. Mas recebe, em contrapartida, inexistência, anulabilidade. Já, como se referiu, por igual o casamento rato e não consumado corresponde a uma realidade qualificada pela Igreja e desconhecida pela ordem jurídica portuguesa.
2. Um pouco à frente (de seguida) apresentarei o elenco das invalidades do nosso Direito, para que vejamos o universo semelhante, no Direito português, a este aqui em causa. O mesmo acontecerá sobre casamento rato e não consumado, muito importante para os católicos, porque permite pôr fim ao casamento católico sem a qualificação de divórcio atribuída à situação e mesmo, sem o seu enquadramento portas dentro das invalidades, uma vez que existe uma discrepância óbvia entre a figura e estas últimas.
3. A diferença, pois, entre o tratamento jurídico do casamento nulo e rato mas não consumado consiste no seguinte. Antes da Lei 100/2009, a Igreja apreciava o processo, o qual subia à sua cúspide e depois, era devolvido ao Tribunal da Relação mais próximo, que ficaria incumbido de proceder à sua transcrição. A actuação dos tribunais portugueses era passiva, neste domínio.
4. Hoje, não há como fugir à regra de que o juiz nacional é juiz da oportunidade da norma, da sua aplicação ao caso configurado. E, se porventura se opuser, ela não terá como ganhar voz activa pelo processo.

Mantém-se, no plano dos princípios, a questão: cedeu a Santa Sé em razão da especificidade do caso ou foi mais longe do que isto?
Diria que foi mais longe, mas no sentido já apontado: a vinda ao encontro do reconhecimento de uma verdadeira “margem de apreciação” pelos entes internacionais da realidade dos Estados com que estabelecem relações. É uma decisão casuística? Porventura. É, acima de tudo, uma solução geradora de consenso dentro de uma lógica que não violou princípios fundamentais, de parte a parte. É uma decisão moderna, no plano jurídico.

O sentido normativo da decisão concordatária e da decisão do Estado Português; Síntese do regime apresentado.

Ocorre, a quem enfrenta este tema em Direito da Família, questionar do interesse em tanto escrúpulo de desenvolvimento da interpretação destas normas. Porquê, afinal?
Peçamos ajuda a quem de Direito. A própria lei.
De acordo com a Concordata, em nome dela, consideravam-se à margem de qualquer juízo de oportunidade laica as decisões em razão de nulidade do Casamento. Ora, sendo que a nossa ordem jurídica, de entre o acervo de casamentos inválidos, os não contempla, conclui-se facilmente que a Igreja chamava a si a apreciação de casos ditados pela sua normatividade específica. Depois, surge a categoria do “casamento rato e não consumado”. Trata-se de uma modalidade de termo do Casamento, mas muito específica. Vejamos:
_ Prevista nos Cânones 1142 e 1697 do Código de Direito Canónico;
_ Dispensa pedida ou por ambos os cônjuges,
Ou
Só por um deles mesmo contra a vontade do outro, para obter a dissolução do casamento;
E este casamento foi validamente celebrado.
Porém, é um casamento por regra não consumado.
O ponto está em que a não consumação comporta excepções. Incompatibilidade de caracteres, separação durante vários anos; delito muito grave que um tenha cometido; e por diante.
Perguntar-se-á: não é mais ágil o divórcio?
É-o juridicamente, mas não tem o mesmo efeito no seio da comunidade dos crentes. Daqui, a opção de muitos católicos por esta figura.

Ora, até hoje, ela transitava, como se disse, pelos tribunais eclesiásticos. Subia à cúspide; e só mais tarde, após a decisão derradeira, intra-eclesiástica, era devolvida aos tribunais civis para que a tornassem operacional.
Foi este o sistema que mudou com a novel lei, o Decreto-Lei 100/2009. Os tribunais portugueses têm voz activa, poder decisório na matéria.

Se bem atentarmos, decorre do artigo 16º.1 da Concordata 2004 que “As decisões relativas às nulidades e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas competentes, verificadas pelo órgão eclesiástico de controlo superior, produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo competente tribunal do Estado…”
Ou seja. A paridade entre o texto do artigo 16º e o regime ora em vigor é muito evidente.
Concluindo e observando: o requerimento pode ser apresentado apenas à instância religiosa. Produzirá efeitos junto da Santa Sé, a decisão proferida. Porém, a produção de efeitos em Portugal está dependente da segunda solicitação, junto das autoridades judiciais portuguesas.

EX: António e Betina celebraram casamento católico em 2002. Este casamento foi considerado inválido pelo Direito Canónico.
A nulidade em questão veio a ser “desconsiderada”, não avaliada pelos Após a decisão do Supremo Tribunal Pontifício, concluiu-se pela ilegitimidade dos tribunais laicos para apreciar a questão.
Colocado o problema agora, reconfigura-se a situação. O que sucede, depois de Maio de 2009, é a necessidade de uma apreciação pelos tribunais portugueses da matéria. Não obstante, os tribunais eclesiásticos reservaram-se o direito de acompanhar este processo de revisão e confirmação da sentença. É assim que sempre poderão aduzir material probatório, requerer a audição de testemunhas…

Advertência: o Casamento não é a fonte por excelência de relações familiares na óptica da Constituição. Esta torna bem claro que outras formas constitutivas de Família existem e que não há fundamento para proceder a discriminações entre qualquer delas.

O que acontece é que, pela sua imensa densidade legal, pela doutrina que transporta consigo, a realidade matrimonial opera uma quase dissipação das outras realidades familiares. A verdade, no entanto é que o legislador não afirmou que só o Matrimónio, ou o Matrimónio em primeiro lugar, surgem como fontes de relações familiares. Não é dito em qualquer lugar, muito menos no artigo 36º, que deste modo deva ser interpretada a Constituição. Ora, há assim que tomar em consideração a igualdade entre as várias instituições que aparecem ao lado do Casamento, hoje reconhecidas, apesar de modo parcimonioso, pela lei e desenvolvidas pelo direito jurisprudencial, pela discussão que se adensa nos meios doutrinários. Recordo Esopo, a Fábula do homem e do lesão que passeavam por um caminho, quando encontraram a estátua de um leão dominado por um homem. Vendo-os, comentou o homem viajante: “Por aqui se prova a superioridade do Homem face ao leão”. Ao que o Leão respondeu: “Não! O que por aqui se prova é que os leões não são escultores…”.
O legislador constituinte esculpiu relações de igualdade entre modelos de famílias, do mesmo passo que esculpiu relações de igualdade entre todos os intervenientes na Família; crianças e sua circunstância, de formação de personalidade e direito ao afecto; mulheres e nova expressão familiar, profissional, com inerentes tensões, conflitos, que solicitam reconhecimento e tratamento jurídico adequado; idosos integrados em agregado do qual possam depender, financeira ou afectivamente, e correspectiva exigência de resposta jurídica. Em que medida um ou outro dos casos aflorados integre o Direito da Família é outro ponto. Que a igual relação de respeito constitucional deva ter-se em conta, sem dúvida.
Quando analisamos este artigo 36º encontramos a história da afirmação de duas realidades. A implantação dos direitos das mulheres à igualdade, concretizando o artigo 13º do Código Civil. Por outro lado, os direitos dos menores.
Por uma questão de ordem, analisamos primeiro a referência inicial da Constituição.

A lembrança que aqui se faz do direito à igualdade entre os dois sexos é muito parcimoniosa. Pois foi já afirmado que constituiu o grande sintoma da modernidade do Direito da Família que aparece após o 25 de Abril de 74. Aparece depois na Constituição em 76 e irrompe, como é sabido, com a Reforma do Código Civil de 77.
Tem projecção fora do casamento: em todos os sectores da vida social. No Casamento e nas outras realidades familiares que depois despontam, evidencia-se com a ausência da liderança por um chefe masculino e pela projecção dessa igualdade na educação dos menores dentro da Família. Não é o pai que decide os aspectos da vida do menor e sua educação, essa decisão é partilhada e não depende da condição económica ou cultural de nenhum deles. No entanto, sabe-se em que medida continua a existir uma concepção pouco densificada desta partilha educativa que a lei impõe. Muitas vezes, os tribunias deparam-se com tentativas de transpor para a educação dos menores, para a titularidade dessa educação, o reflexo de conflitos entre o casal: financeiros, sim, mas também de ordem sentimental. Nesta medida, projecta-se numa entidade soberana mas estranha ao círculo familiar e ao conhecimento de elementos fundamentais para decisões sustentadas _ o juiz_ muitos aspectos que deveriam ser resolvidos dentro de um grupo restrito e tanto quanto possível isento.
Mais adiante aventar-se-ão os caminhos de uma solução que se afigura muito complexa por agora.

Direito da Família na Constituição (continuação). Os menores na Constituição

E, chegados a este ponto, chamamos a depor o papel que a Constituição comete à protecção constitucionalmente imposta dos menores.
Começo em breve trecho sobre a procriação medicamente assistida. É certo que muitas vezes a sua localização problemática não surge aqui, antes a propósito do Casamento, ou de outras relações familiares. Compreende-se a referência biológica inerente (terá de haver uma decisão de progenitor ou progenitores) mas nada tem a ver com o eixo fundamental, a fonte de legitimidade desta procriação. Pois antes de mais, do que se trata é de aquilatar do bem fundado de gerar seres humanos em condições diversas das habituais, sendo evidente que persiste um quadro de desconhecimento, biológico desde logo e com evidentes repercussões de ordem pessoal, afectiva, a perpassar toda a sequência procriativa.
Pergunta-se, então, acerca da legitimidade de trazer para este mundo desconhecido ainda mais factores de desconhecimento, sobre a origem da pessoa e a sua subsequente situação; sobre os efeitos do “factor desconhecimento” e as suas consequências. Que garantia temos de dar por adquirido, procedendo assim, o respeito pela dignidade humana, ao permitir que acresça uma margem de desconhecimento acerca deste novo ser, margem que não decorre da álea da criação em geral, mas de outros factores que trazem consigo suspeita de complexidade e efeitos ainda insondáveis.
Creio que toda a discussão a fazer acerca das condições particulares que possam atribuir maior margem de favorabilidade a uns casos ante outros (cfr. casais que se provam impedidos de procriar e afirmam o impulso da maternidade/paternidade) não prescindirá esta reflexão prévia. Pois não se trata primacialmente de fundamentar um direito familiar, porventura situado na esfera recôndita dos direitos à maternidade e paternidade, à expressão dos afectos. O direito que antes do mais se ergue é o de cada pessoa e da sua circunstância. E posto que não podemos alterar aspectos essenciais de uma e outra, convirá, por igual, que os não pretendamos definir de acordo com as nossas mundivisões, padrões…
Sobretudo, creio importante suscitar a necessidade de distinguir dois planos muito evidentes nesta matéria. Por um lado, o direito essencial do novo ser, a sua dignidade, que constitui o primeiro ponto a reter na matéria. Por outro lado, o Direito a constituir uma Família, que em regra é chamado a depor nestes casos. Tem-se tal direito, sempre, na medida das possibilidades, da realidade que é a de cada pessoa. Nunca, sobrepondo-o ao direito de nenhum ser, nunca, instrumentalizando um ser humano ou uma realidade que a lei identifica já como dotada dos elementos essencialmente constituintes da humanidade e por isso identifica nos seus termos.
Acentuando o ângulo pelo qual as portas se abrem ao meio de procriação mencionado, vemos que se trata de estabelecer uma ponderação, a saber, entre o sentido do direito à dignidade e o direito a exercício da vontade.
O direito à dignidade resulta aqui, como decorre do exposto, muito pouco evidente. Afinal, a dignidade de um ser que ainda não existe, não foi sequer gerado, seria sempre causador de perplexidade. E acresce que, neste caso, pode dar-se o caso de vir a ser procriado com um destino imediato benévolo: no seio de uma família dotada de excelentes condições de acolhimento, por hipótese.
Discutir esta legitimidade de assim procriar parece mesmo depor contra a causa do direito a uma vida digna!
Mas quem é o ser gerado ou gerável, de que falamos? Alguém que tem a sua circunstância completada num segundo, na ponta de um bisturi, ou o homem ou mulher que vai viver depois viver a contas com as suas vicissitudes genéticas, as suas atribulações sociais? Alguém que, à álea do ser humano em geral, acopla a álea de uma diferença que não podemos antever em que medida depõe a seu favor ou reverte contra ele.
E vejamos o outro ângulo, o da vontade. À partida, é a vontade bem intencionada de gente afectuosa, com instintos bons, uma gente altruísta e cheia de carinho. Mas não podemos confundir os planos. Se a legitimação da vontade fosse uma legitimação ética, diria que eles têm legitimidade para serem destinatários de procriação assistida. Porém, não é o caso. A legitimidade da vontade supõe aqui a demonstração de que ela sobreleva outros interesses. Ora, em primeira linha, temos os interesses dos menores e só liquidada essa discussão se passaria a este segundo ponto. Sucede que não a vimos ainda liquidada.
Neste contexto, afigura-se-me juridicamente problemático um juízo favorável à solução adentro da ordem jurídica.
Questão diferente é a da atenção, do cuidado conferido ao novo ser uma vez procriado.

Já noutro plano, coloca-se o domínio dos direitos/deveres dos pais e encarregados da responsabilidade sobre a educação do menor. A lei, ao longo de muitas normas, que a Filiação exprime mas também a constituição firma, tal como as Declarações Internacionais, chega a um sistema de incumbências sobre cada educador. Este sistema cresce, a ponto de se reflectir sobre outros ramos do Direito. Uma mais forte consciência social das obrigações para com as crianças corrobora uma legislação densa noutros aspectos; estou a pensar no direito criminal perante os menores.



Também o artigo 36º da CRP desempenha um papel neste domínio, que se estudará mais à frente, pelo que se faz agora uma abordagem tão breve e remissiva.
Mas em todo o caso refiro dois pontos obrigatórios.
Por um lado, a prolixa enumeração de deveres que o Código Civil atribui aos titulares do poder paternal/responsabilidades parentais. Serão semânticos? Talvez, em certa medida. Nem por isso deixam de ser indicadores de um rumo: a árvore dos direitos, dos bens pessoais, cresce através dos direitos dos Menores. É meritório que isso aconteça; é revelador de que, em algumas décadas, ultrapassámos o quadro da “família subjugada pelo chefe de família” e o quadro da “família a tender-se moldada pela emancipação das mulheres” para uma Família mais ampla e reconhecedora de todos os seus membros.
Por outro lado, estes poderes/deveres, ou direitos/deveres estendem-se vertiginosamente ao código pela: pelas “situações de garante”; pelas circunstanciais pessoais especiais de ilicitude, plasmadas no artigo 28º (uma das mais antigas e importantes regras comparticipativas do sistema); pelos crimes de maus tratos, violência doméstica, tráfico de menores…_ matérias que veremos adiante.
Ora a este propósito parece-me indispensável focar um ponto, que talvez encerre a tentativa de esconjurar um mito. O mito do carácter propulsivo do Direito Internacional e também das suas decisões.
Recordo uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Perante a impossibilidade de algumas crianças belgas, a viver próximo da fronteira da Holanda, se deslocarem a uma escola que lhes ministrasse o ensino da sua própria língua, considerou o Tribunal que a decisão que recaíra a nível nacional sobre o caso, no sentido de as crianças procederem à deslocação,



VII

Casamento: Inexistência; Invalidades Matrimoniais
Relembramos, a terminar este ponto, o esboço de problemas relativos às invalidades cujo enunciado se apresentou. O propósito era o de chamar a atenção para o conceito de invalidade no Direito português, uma vez que se chamaria a depor a invalidade do casamento religioso.
Sendo esta a sequência usada, seguiremos com a apresentação dos tipos de invalidades que a lei consagrou no direito português. Não se tratará de as analisar com exaustão, mas de ver o núcleo de problemas normativos em que se inserem estas realidades que, no Direito da Igreja, assumem uma feição específica.
Há, como já foi afirmado, casos não coincidentes entre as invalidades do Direito Canónico e o nosso Direito Civil. Desde logo, as “nulidades” que o Direito Canónico contempla não têm transposição linear para o Direito Português. Por outro lado, existem situações que a lei nacional considera invalidadas e são incólumes perante a Santa Sé a um tal juízo.
Por outras palavras: veremos se são “parecidos de família” os casamentos anuláveis ou até inexistentes da nossa lei e os casamentos nulos segundo o Código de Direito Canónico.

Inexistência
O Casamento inexistente é a contra-imagem do seu desenho legal, o outro lado do espelho. É uma situação que exprime a não declaração de vontade núbil, por maior que esta vontade seja
O elenco do artigo 1628ª explicita este núcleo que deixamos aqui aflorado nos seus tópicos mais salientes.

A quer casar com B. Mas não o afirma ao funcionário do registo, porque algo lhe prende a atenção. Pode, também, não se dar conta de que é aquele o momento de proferir as palavras…

Cabem neste conceito as situações em que:
_ São do mesmo sexo os nubentes;
_ Não declaram a vontade;
_ Não o fizeram ante a autoridade competente.

Ocorre perguntar a razão pela qual insiste a lei em dizer-nos o que seja um casamento inexistente, quando na verdade sabe muito bem que, apresentado o conceito de casamento, de imediato ressaltaria a impossibilidade de subsumir ao mesmo, casos deste teor.
Sabe-se, também, que na origem desta regra esteve uma outra bem antiga, oriunda do Code Civil, que assim evitava a inclusão do casamento de pessoas do mesmo sexo; era o tempo da interpretação estrita da lei e sua letra, da concepção do juiz como a boca que de modo automático repete as palavras dessa lei; uma lei que não fora inclusiva da diversidade sexual.
Pergunta-se, porém, da oportunidade de ir por aí, hoje que há margem interpretativa bastante para compreender a fronteira das compatibilidades entre as normas, para proceder à sua análise sistemática.
Porque insiste o legislador?
Creio que para sublinhar a sanção que pretende usar. Essa sanção é inequivocamente a não produção de efeitos. A lei não abre mão de tal aspecto e por isso preserva a norma. Não se tratará de um caso de nulidade, o que sempre se poderia admitir, se o silêncio fosse a sua opção. Trata-se de colocar fora da esfera geradora de efeitos jurídicos a situação, sem apelo nem agravo.
Vou deixar um tanto de lado a questão dos casamentos urgentes. Com efeito, para eles vigora uma tolerância que faz excepcionar a regra da necessidade de um requisito formal para que o Casamento exista. A ordem jurídica nacional permite-os, honrando a vontade de quem pretende casar e sabe que pode suceder que a vida não lhe proporcione muito mais tempo para isso; ou que se encontra na iminência de parto Porém, posto que celebrado este casamento com menos solenidade formal, deverá ser homologado, logo que possível. De outro modo, esboroam-se os efeitos jurídicos do casamento urgente.
Pois afinal, a existência matrimonial que se exprime no artigo 1628ª é a decorrente de uma situação jurídica a que se suprimiram dados essenciais da construção legal de matrimónio: um negócio formal, entre pessoas de sexos diferentes, com uma dimensão de publicidade que exige ser a sua tramitação legalmente definida, sob pena de supressão radical da esfera jurídica. É certo que a lei atende a um aspecto que, neste domínio em que a intimidade, a esfera pessoal, fazem incursão, uma margem de possibilidade impensável em outros negócios jurídicos. Estou pensando nos casamentos urgentes, celebrados, por hipótese, sob o espectro da morte ou de parto.
Pergunta-se qual o sentido actual desta “iminência de parto” como pressuposto de casamento urgente. Afinal, não há estigmas por nascimento fora do casamento e quanto à prova da maternidade, far-se-á ela com toda a naturalidade, caso o casamento não exista.
Mas o legislador insiste, talvez, num respeito pela vontade de quem pretenda ter uma relação conjugal legalizada ainda nestes casos. Que podemos/devemos dizer? Perante a retracção própria do desconforto de opinar em face de uma expectativa tão difícil, apenas resta uma palavra: deste modo se perpetua, na lei, um sentido de respeito para com as relações conjugais legalizadas que em bom rigor se andou destruindo aqui e além, em múltiplos aspectos. É um sinal de assistematicidade do sistema, de desigualdade no tratamento das situações. È talvez, em dimensão muito real, o justo preço de uma mutação legal profunda, uma revolução algo surda dos institutos, que não pode correr a benefício da coerência.

Ex; Alda está prestes a ser mãe e a lei retira à expressão da sua vontade conjugal os requisitos que teria em condições normais; retira-a sob condição, até que a regularização do casamento possa ocorrer. Ou seja: poderá realizar um casamento informal, mas que será homologado logo que possível.
E, no entanto, se Aldina, unida de facto, pretender ver a sua União protegida, mas ainda não tenha perfeito os dois anos de convivência estável com o companheiro, não terá, na lógica e arsenal dos instrumentos da União de Facto, como proceder. Restar-lhe-ia casar, caso o pudesse e além do mais, quisesse. Pergunta-se; porque não cobre a lei com um manto de respeito, também, esta outra vontade?

Assim como admite a lei que seja firme em existência, e mesmo válido, casamento celebrado ante funcionário de facto, a menos que ambos os nubentes estejam cientes da qualidade do funcionário.
Quem é o funcionário de facto? Todo aquele que, sendo titular da designação, não possui contudo as qualidades para a prática específica destes actos.
A lei, aqui, distingue. Decide que, se o souberem os nubentes, o casamento é válido. Nem se coloca um problema de anulabilidade. Ou seja: a regra de formalidade exigida tem afinal efeitos lassos: posto que o casamento se realize ante autoridade será dado como regular, posto que alguma ferida tenha inquinado, incidente, no caso, sobre a qualidade do titular do poder para efectuar a celebração.

Numa palavra: o casamento inexistente é o reduto que exprime uma realidade oposta ao conceito legal do casamento. E não cabe no seu interior nenhuma outra. Não cabem as formas que se aproximam do casamento, posto que eivadas ainda de elementos de contrariedade à lei (casamento ante funcionário de facto), eventualmente, por condições excepcionais consideradas atendíveis.

Todos os outros casamentos existem, pois, e poderão perdurar, sem o anátema da invalidade. Não será o vício exprimível a todo o tempo, ou por qualquer pessoa.



Invalidades
A grande figura de enquadramento das invalidades matrimoniais que a nossa ordem jurídica contempla é a anulabilidade.
Uma anulabilidade cujos contornos são de tal modo específicos que os desenvolvemos agora.
Há, afinal, três características que marcam o regime das invalidades do Casamento e que se aplicam aos vários casos que as mesmas invalidades possam configurar.
Vejamos.

_ Possibilidade de convalidação, sempre que a invalidade, embora grave, conheça um fim e esteja ainda a decorrer o processo de impugnação do Casamento.
_ Diferente latitude dos titulares do direito de interpor acção de anulação;
_ Diferença nos prazos para tal propositura.

O exame da lei.
Casamentos em que se verificam causas de anulabilidade (artigo 1631º); as situações que o legislador toma em consideração
Será anulável o Casamento contraído com impedimentos dirimentes: vimos reiterando este aspecto.
Estes impedimentos inserem-se em mais de uma espécie.
Designam-se de impedimentos dirimentes absolutos e relativos.
Alguns impedimentos dirimentes relativos foram objecto de referência anterior, a propósito do Parentesco. Recordarão que se afirmou na altura que se reporta, a esse propósito, àquelas situações em que a ilegitimidade conjugal advém de um laço de parentesco próximo (linha horizontal ou 2º grau da linha colateral) ou de afinidade, tão só na linha recta.
Outros existem, contudo.
Encontrámos aí, pois, impedimentos dirimentes relativos. O problema que eles colocam não é o da invalidade do casamento de A com qualquer pessoa, mas o casamento de A com certas pessoas, parentes, afins, adoptados seus.

Ex: A casa com um irmão. A titularidade para intentar a acção encontra-se fixada no artigo 1639ª. O prazo tem sede legal no artigo 1643º.

A extensão da categoria dos impedimentos dirimentes relativos é, porém, maior.

Abrange:
_ A afinidade na linha recta;
_ A condenação de um dos nubentes pelo homicídio doloso, tentado ou consumado, como autor ou cúmplice, na esfera jurídica de cônjuge daquele com quem se realizou o casamento;
Chama-se a atenção para a titularidade e prazos de acção judicial contidos nos artigos 1639º e 1643º, bem como para o seu regime.

Há situações em que a qualificação “impedimento dirimente” vai ainda abranger os casos, não já de insusceptibilidade de aptidão para casar devida a uma relação de parentesco (relativa a pessoa determinada, pois) ou a relação específica com a pessoa do outro cônjuge (este foi o parceiro da vítima de homicídio tentado ou consumado, em autoria ou relação de cumplicidade), mas por igual, as situações de insusceptibilidade erga omnes:

_ Idade inferior a dezasseis anos;
_ Impedimento por demência notória (mesmo durante os intervalos lúcidos);
_ Por haver casamento católico ou civil anterior não dissolvido, mesmo que o assento do matrimónio não tenha sido lavrado no registo civil respectivo (artigo 1601º);

Ex: A tem uma doença que os médicos não diagnosticam como mental grave, mas que provoca distúrbios graves no comportamento, não obstante não se verificar constância desta anomalia. A lei engloba tais situações no núcleo daquelas que darão origem a impedimento matrimonial.

Para além destas situações, compete chamar ainda a depor outras em que se verificam falta ou vícios de vontade.



O consentimento
A lei presume a liberdade do consentimento (artigo 1634º).
Tanto o erro como a coacção relevam, sim, mas dentro dos pressupostos legais e só deles (artigo 1627º).
A vontade presume-se.
Configuram falta de vontade de casar aquelas situações em que se verifica, no momento da celebração matrimonial, falta de consciência do acto. Esta poderá ser provocada por incapacidade acidental (o caso que aliás, a lei refere) mas ainda por outros motivos (artigo 1635).

Sublinham-se as características do erro-vício contemplado no artigo 1636º Este, além do mais:
_ Deverá recair sobre a pessoa do outro nubente;
_ Deverá versar sobre uma qualidade essencial sua.

Mas que se entende por “qualidade essencial”?
O conceito de “qualidade essencial” é mais um conceito indeterminado. A origem está na Reforma de 77. À jurisprudência cabe analisar a sua verificação. Mas de um modo geral considera a doutrina que erro sobre aspectos mais relevantes, comportamento ao longo da vida, existência de doenças graves, cabem aqui. E tudo o mais será de problemática inclusão.
Este erro deve ser ainda compreensível, desculpável. Se o facto agora alegado era uma evidência, não é desculpável o erro.
Por fim, a propriedade do erro, com soluções divergentes na doutrina: a tese segundo a qual o erro não poderá recair sobre um requisito legal de validade ou de existência do casamento (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira e Antunes Varela); a tese segundo a qual o erro só não poderá recair sobre um requisito legal de existência do casamento (Jorge Duarte Pinheiro).


Coacção
Também a coacção, nos termos do artigo 1638º, é fundamento de anulação.
O artigo 1631º apresenta o regime destas situações.

Regras das invalidades:
O regime destas invalidades obedece a regras.
Assim:
Se o casamento foi contraído com algum impedimento dirimente, a legitimidade para invocar a invalidade é da titularidade do cônjuge mas também dos parentes na linha recta e ainda dos colaterais até ao quarto grau, herdeiros e adoptantes, bem como do Ministério Público.
Há uma razão a fundamentar esta extensão: o interesse público em não manter tal Casamento.

Mas verifica-se uma especialidade dentro deste grupo. Sempre que o motivo da anulabilidade é temporário, a lei admite que ela seja sanada. Para esse efeito, fixa a lei então um prazo para a propositura da acção; ou ainda, não admite que a anulação seja requerida a partir do momento em que deixou de se verificar a razão de ser da anulabilidade. É, se virmos o elenco legal, o caso das situações de demência notória, falta de idade nupcial, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica, casamento anterior não dissolvido.

Se o motivo da anulabilidade for permanente, não permite a lei que seja sanada. Acontece nos casos de parentesco ou afinidade sempre que funcione esta como impedimento, parentesco no 2º grau da linha colateral e condenação anterior por homicídio, no caso que a lei contempla. Neste último caso, a lei marca, curiosamente, um prazo curto para a propositura da acção: três anos.

Há casos em que a anulabilidade visa proteger o interesse de um dos cônjuges. Sendo assim, apenas este pode requerer a anulação. Contemplam-se aqui os casos de incapacidade acidental ou de falta de consciência do acto: erro sobre a identidade física do outro cônjuge; coacção física; erro vício; coacção moral.

Enfim, há casos em que só o Ministério Público pode propor a acção de anulação, dado que só o interesse público está lesado: o caso de falta de testemunhas na celebração.

Qual a razão de ser deste regime que, em última análise, procura reservar os efeitos do Casamento à esfera dos directamente interessados e apenas chamando à titularidade judicial a família, o Ministério Público?

Sublinha-se o cuidado de evitar tudo o que dissemine os efeitos de comportamento moral indesejável, de evento social a vários títulos desastroso. Aparentemente, dir-se-á que em nome da instituição se actua juridicamente, que esta tolerância exprime sólidos princípios institucionais. A posição do legislador evita o estigma que possa advir destas situações. O efeito de imitação social que o legislador pretende tem uma capacidade de imposição jurídica que a realidade, aliás, testemunha.


Casos:
Ex: Xavier faz saber a Eulália que todos os documentos que tem em sua posse sobre o passado criminal desta, e até agora ocultado, virá à tona, caso ela não case com Firmino, filho de X, que precisa de um apoio experiente e de uma mão forte na liderança da sua vida: Eulália, precisamente.
Ponderando entre o opróbrio do aviltamento social e a expectativa da situação económica do marido, Eulália preferiria a primeira; mas não quer “cair na lama” de uma sociedade pouco tolerante, em seu entender e casa.
Se, porém, Eulália casasse por outro motivo: ponderando, concluísse que a actual situação económica do futuro marido e a herança dos sogros são bem tentadoras, auguram um futuro apetecido.

Suponhamos que Gabriela se enamora de Hermano e não sabe que Hermano tem um passado turbulento: droga, crime organizado, militância terrorista…

Imagine que, ao saber a verdade, Gabriela se desinteressa desse aspecto: afinal, tem o padrão de vida que desejou, o marido é hoje uma pessoa integrada socialmente, adaptada a um correcto agir de acordo com os critérios aceites de convivência.

Um ano mais tarde, porém, conhece Ivo e enamora-se profundamente. E quer reaver o estado de solteira. Para isso, intenta uma acção de anulação do seu casamento com Hermano. Invoca ponderação recente do perigo que pode representar o comportamento anterior, traço de personalidade decerto, embora nunca anteriormente tenha pensado no assunto; nem quando soube o “passado criminoso”.

Casamentos em que se verificam Impedimentos Impedientes (artigo 1604º): a especificidade.
Bem mais “permissivo” é este regime, que compreende aqueles parentes mais distantes na relação genética e porventura, ainda cultural.
A propósito do Parentesco vimos estes impedimentos impedientes, também denominados de Impedientes.
Existem vários outros:
_ Falta de autorização para casamento de menores, quando não suprida;
_ Prazo internupcial;
_ Parentesco no 3º grau da linha colateral;
_ Vínculo de tutela, curatela e administração legal de bens;
_ Adopção restrita;
_ Pronúncia do nubente por homicídio, consumado ou tentado, contra o cônjuge do outro

Alguns destes impedimentos são susceptíveis de dispensa (artigo 1609º).
Os impedimentos podem ser denunciados (cfr. o artigo 1611º).


Nótula: Se A casou com B convencido de que este é o seu amigo Pedro, um conhecimento de férias, mas vem a concluir que afinal “Pedro” tem a particularidade de ser oriundo do planeta Alfa, é um ser com todas as características dos humanos, mas, de facto, não nasceu entre os humanos, é “como nós”, que situação se nos depara?
Sustentaria sem grande margem de hesitação que o casamento é inexistente. Por mais aproximada que seja a realidade de “Pedro”, certo é que o desconhecimento, não apenas acerca da sua realidade concreta, como da espécie em que se integra, suscitará pesos e medidas adequados a foros diferentes. Será respeitável nos termos dos seres humanos enquanto nada indiciar outros aspectos (perigo para terceiros, por exemplo), destinatário de todas as normas que dizem respeito ao reconhecimento e defesa dos direitos das pessoas. Na esfera familiar, cremos que seria destituída de sentido uma equiparação que levasse a encarar como possível a homogeneidade entre as relações da intimidade familiar e esta outra.

início do Casamento:
_ Preliminares no Casamento Canónico e efeito sobre o português
_ Informalidade progressiva
_ Promessa e efeitos
_ Convenções Antenupciais]










+
















VIII

Casamento Putativo
Por último, uma referência nesta fase ao Casamento Putativo (artigos 1647º e 1648º).
Sempre que um casamento inválido seja contraído de boa fé em uma das partes produz os seus efeitos, em relação a ele ou a terceiro, até à declaração de invalidade (mais precisamente, até ao trânsito em julgado desta). Seja qual for a esfera onde se actuou: patrimonial, pessoal…
Se porventura a boa fé se tiver estendido a ambos, assim será, por igual.
A boa fé significa aqui a “ignorância desculpável” do motivo que inquina o contrato. Mister será que olhemos a realidade: o meio circundante do agente; a sua condição pessoal, social; numa palavra, a sua circunstância, o “aqui e agora”. Pois, se casos existem em que é notória a atitude de desconhecimento do sentido do contrato celebrado, outras se verificam também em que este seria, em princípio, detectável e só não o foi por incidente, aspecto ocasional. Em suma. Caso os celebrantes de casamento inválido estejam ambos de boa fé, serão considerados válidos os actos jurídicos celebrados durante aquele tempo que nem por isso deixa de ser de irregularidade.





Se, porventura, a boa fé se colocar apenas em relação a um deles, será ele o beneficiário único da situação, bem como terceiros que estabeleçam relações jurídicas.
Protegidos, aqui, são as partes contratantes na correcção do acto que praticaram, escorado em sãos princípios. E são-no ainda terceiros que entabularam negociações, imbuídos do mesmo espírito.

Fazendo então o percurso de síntese acerca das invalidades matrimoniais, diremos que:
1. Atingem em primeira linha quem olha o casamento (seja permitida a imagem) do outro lado do espelho. Não como a lei diz que ele é, mas desfigurando o seu modelo, a sua configuração legal [NOTA: a lei confere o epíteto de inválido ao casamento inexistente, uma vez que isso mesmo resulta do artigo 1629º. Quem cada com pessoa do mesmo sexo; quem afirma casar mas não profere as necessárias palavras ou sucedâneos possíveis (gestual…, sempre acompanhado); quem não casa em tempo oportuno perante as autoridades competentes (logo que celebra o contrato; em caso de urgência, por regra devida a situação de parto iminente ou de morte iminente, nos termos que a lei requer, mas não se compadecem, em validade, sem uma homologação, nos termos da lei(;;
A inexistência do casamento, note-se, não é impeditiva da validade dos casamentos ante funcionários de facto, a menos que houvesse conhecimento, por parte dos nubentes, da situação criada. A lei tem o cuidado de nem considerar anuláveis tais casamentos e dá-os por válidos.

Mais complexa juridicamente é a restante panóplia das invalidades.
Encontramo-las na lei devidas a dois tipos de fundamentos: Impedimento dirimente e falta de vontade.

No primeiro caso, encontram-se aquelas situações de falta de idade núbil, demência notória, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica (artigo 1601º)
No outro caso, os parentescos, na linha recta e 2º grau da linha colateral, afinidade na linha recta, homicídio de um dos cônjuges na pessoa de cônjuge do outro (artigo 1602º).

A falta de vontade reporta-se a situações de vontade viciada por erro ou por coacção.

De sublinhar que há uma dualidade no plano das consequências jurídicas para o primeiro caso (artigo 1601º).
Com efeito, ao passo que a sua subsistência pode produzir efeitos graves_ mais, produzi-los-á em princípio_ não é impossível que se dê o caso de isso não acontecer.
Em que circunstâncias? Uma vez desaparecido o vício que se verificava.
Caso

Concluímos assim que a lei rodeia de maior probabilidade o deslaçamento do matrimónio inválido a partir de dois eixos. Por um lado, a titularidade para desencadear o fenómeno jurídico, que é mais ampla aí onde se considera mais grave a subsistência da situação, sem prejuízo de sempre o Ministério Público ser um dos detentores da competência. A partir de que critérios? Creio que de critérios que relevam da sua apreciação e nunca de “fenómenos de imitação”. Ou seja: no plano das considerações do Ministério Público, não tem lugar qualquer ponderação sobre o comportamento dos outros titulares do direito a interpor acção de anulabilidade.
Por outro lado, funcionará o factor tempo, que a lei considera em grandezas diferentes conforme o desvalor que atribui ao contrato celebrado.

Mas em todo o caso está o legislador atento a que, pese a invalidade que inquinou a situação, esta se celebrou não raras vezes entre agentes de boa fé (ambos, ou um deles) e produziu efeitos perante terceiros.
É a atenção a este factor que está na base do chamado Casamento Putativo.
O Casamento Putativo não corresponde, como é evidente, a uma forma de celebração matrimonial própria, diferente. É antes a expressão do reconhecimento do legislador perante certos casamentos que, posto que anuláveis e na iminência de que essa anulabilidade produza efeitos (porque foi arguida e lhe deu razão a entidade judicial) ainda assim tem em mente a injustiça que representará tratar como “não existente” em toda a extensão um fenómeno que as duas partes celebrantes, ou pelo menos uma delas, bem como terceiro ou terceiros que com elas tenham celebrado negócios jurídicos, intervieram.
Que faz então?
O mecanismo do Casamento Putativo consubstancia uma ficção jurídica. Tudo acontecerá, enquanto durou a situação de boa fé no seio do casamento inválido, como se este se transmutasse em válido. E depois? A partir daí, ou seja, fora das margens deste contexto, a invalidade impera.
Bem se compreende a necessidade de delimitar a zona de produção de efeitos do Casamento Putativo.

Ex: A casou com B e o casamento foi anulado. Quando a anulação ocorre, já A falecera e B herdara. Sucede que o tribunal considerou que B não estivera de boa fé. Sendo assim, não se dará o caso de ser B herdeiro de A.

A doutrina evidencia a este propósito os casos em que os efeitos produzidos decorrem de relações entre os cônjuges putativos e outras relações, também, mas conexas com aquelas. São estas que valerão face a terceiros.
Diferente é a situação em que A e B, protagonistas de um casamento que vem a ser anulado, celebram doação: A doa um apartamento a B.
O negócio jurídico não releva na perspectiva de terceiros.

Natureza do casamento putativo
Se observarmos a lei, vemos que esta autonomiza a figura do Casamento Putativo. Poderia, por hipótese, tratá-lo na corrente dos artigos que dizem respeito ao regime das invalidades, pois que consubstancia, afinal, nem mais nem menos do que um critério de delimitação de várias destas, em circunstâncias contadas, que referimos já. Porém, a opção é outra e o Casamento Putativo surge-nos lado a lado com as Invalidades, criando a ideia de que é uma espécie de casamento, ainda que dotada de um padrão muito peculiar.
A doutrina, em grande medida, vai por aquele outro caminho que também seguimos. Não é, creio, a solução mais correcta, ver o casamento putativo que não seja como critério que excepciona a invalidade geral de casamentos. É a invalidade como pano de fundo que mais depressa nos conduz à essência destas figuras, a qual reside no carácter excepcional da permanência de efeitos jurídicos, uma vez declarada a invalidade.
A tese contrária tem uma explicação, é certo, mas que não se articula à figura actual que encontramos na lei. É uma tese sustentada no princípio de que, posto que precariamente, aquele casamento existiu e tem por esse facto toda a dignidade essencial reconhecida ao matrimónio. Mas a tese não colhe: são motivos de ordem pública que estão na origem do seu afastamento da esfera jurídica; e estes motivos justificam que se encontre aqui um factor de separação face ao casamento normalmente celebrado, válido. Salvar efeitos decorrentes da boa fé ou do alheamento de terceiros face ao fenómeno não significa o mesmo que reconhecer no fenómeno um verdadeiro matrimónio.
Concluímos portanto. Não creio que o Casamento Putativo deva ter outra consideração legal que não a de uma ficção: uma excelente ficção jurídica, aliás. Foi com base na sua construção que se permitiu preservar, no caudal de invalidade de um Casamento que não subsiste por razões ponderosas, aquele núcleo em que a lei se tornaria injusta caso aplicasse todos os efeitos que na pureza dos seus princípios se antevêem. E o que acontece agora? Com a figura do Casamento Putativo, nunca o nubente de boa fé será prejudicado. Os efeitos benéficos que se puderam produzir na constância do contrato vão manter-se. Vão manter-se, porém, na esfera jurídica dele.

Ex: A, de boa fé, foi herdeiro de B, com quem celebrara um casamento inválido e que morre antes de decretada a invalidade do casamento. Como a circunstância o beneficia, vê-a permanecer. Caso, porém, estivesse ele de boa fé, e houvesse que proceder ao pagamento de uma dívida, o carácter desvantajoso da situação leva o legislador a não o onerar.

E se entabular relacionamento com terceiros?
Dependerá da circunstância. Caso esses terceiros celebrem com este nubente um contrato que apenas atenda à circunstância pessoal (escrever a biografia de alguém) os efeitos do casamento não são chamados a depor. No entanto, se o contrato disser respeito a bens que sejam conjuntamente administráveis pelos dois cônjuges, há um nexo claro de dependência face ao casamento, e logo, á pessoa do outro cônjuge, Assim, não se entenderá de outro modo que não pela produção de efeitos para terceiros, caso um dos contraentes esteja de boa fé e beneficie com a permanência dos efeitos produzidos.



+







IX


Deveres pessoais. O dilema das normas respectivas depois da última Lei do Divórcio


Até aqui, o Casamento na sua evolução tradicional. Mas é esta a evolução de estudo compatível com a realidade que se vive?
Diria que o novo padrão do Divórcio modifica muitos aspectos.
Quando falo em padrão do divórcio não refiro necessariamente a Lei que entrou em vigor no final de 2008. Claro que esta o cunhou de modo decisivo. Refiro, sim, mais longe, toda a modificação que opera no regime de bens que pode mudar mercê da destruição da sociedade conjugal e as suas consequências; e uma espécie de toque aditivo na realidade que vinha de antanho e era já, nos tempos mais recentes, uma inversão do modelo dos deveres pessoais anteriores.
Falo, claro está, dos deveres pessoais. A lei enumera-os virtuosamente e todavia, apõe cautela: os conceitos usados são por vezes normativos. A comunhão de leito, o núcleo essencial do casamento, é cada vez mais ténue, numa lei que não o logra conceptualizar e sabe até que ponto deve pactuar com excepções inevitáveis. O voluntarismo do casal impôs-se. As pessoas permanecem casadas se assim entenderem, a





despeito do incumprimento de deveres legais e muito para além deles. A realidade deste mundo e sobretudo, a produção de efeitos jurídicos, dependem de uma propositura de acção de divórcio. É a arguição do fim do casamento que traz à superfície a sua oportunidade como critérios de prova, no caso de apenas um dos cônjuges pretender manter-se casado.
Creio que nos aproximamos, de facto, do regime alemão, que impõe a declaração às partes de falta de condições para que a realidade conjugal subsista, mas não mais do que isso. E tudo o resto são temas da esfera de intimidade que o juiz não terá margem de acção para conhecer e ponderar.























B:-EXCURSO: INEXISTÊNCIA; INVALIDADES MATRIMONIAIS

Relembramos, a terminar este ponto, o esboço de problemas relativos às invalidades cujo enunciado se apresentou. O propósito era o de chamar a atenção para o conceito de invalidade no Direito português, uma vez que se chamaria a depor a invalidade do casamento religioso.
Sendo esta a sequência usada, seguiremos com a apresentação dos tipos de invalidades que a lei consagrou no direito português. Não se tratará de as analisar com exaustão, mas de ver o núcleo de problemas normativos em que se inserem estas realidades que, no Direito da Igreja, assumem uma feição específica.
Por outras palavras: veremos se são “parecidos de família” os casamentos anuláveis ou até inexistentes da nossa lei e os casamentos nulos segundo o Código de Direito Canónico.


Casamento: Inexistência, Invalidades
Não me parece viável a compreensão do regime de invalidades de formas de Casamento, designadamente de Casamento Católico, afloradas pela CRP e resolvidas pela lei civil em vários momentos, sem estarmos na posse de uma noção geral acerca das invalidades que perpassam o Casamento segundo a lei em vigor.
Por isso voltamos ao tema, com abordagem tópica mas que permita guiar o seu acompanhamento.
Remeto para a lei e para a doutrina citada o regime pontual, vertido ao longo dos preceitos do Código Civil, para esta matéria. Chamando, naturalmente, a atenção para o prazo internupcial exigido, quando este se impõe, bem como a sua justificação.
Vejamos primeiro os casamentos inexistentes (artigo 1628º).
Serão aqueles que tenham sido celebrados perante alguém que não tenha competência funcional para o acto, salvo tratando-se de casamento urgente;
O casamento urgente não homologado;
O Casamento que foi celebrado entre pessoas que não manifestara a vontade nesse sentido.
O elenco do artigo 1628ª explicita este núcleo que deixamos aqui aflorado nos seus tópicos mais salientes.
O casamento inexistente não produz efeitos
Casamentos em que se verificam causas de anulabilidade Cfr. Artigo 1631º).
Será anulável o Casamento contraído com impedimento dirimente;
Celebrado, por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de vontade ou com vontade viciada por erro ou coacção;
Sem a presença de testemunhas, nos casos em que a lei as exija.
[cumpre analisar com cuidado os artigos 1624º e seguintes, relativos a situações que configuram falta ou vícios da vontade]

HIPÓTESES A RESOLVER

Casamentos cuja invalidade decorre de falta de vontade de celebrar matrimónio:
Caso 1
Ex: Xavier faz saber a Eulália que todos os documentos que tem em sua posse sobre o passado criminal desta, e até agora ocultado, virá à tona, caso ela não case com Firmino, filho de X, que precisa de um apoio experiente e de uma mão forte na liderança da sua vida: Eulália, precisamente.


Ponderando entre o opróbrio do aviltamento social e a expectativa da situação económica do marido, Eulália preferiria a primeira; mas não quer cair na lama e casa.
Como se qualificará a situação? [veremos o problema de novo quando da análise do Casamento]



Caso 2
E se, porém, Eulália casasse por outro motivo: ponderando, concluísse que a actual situação económica do futuro marido e a herança dos sogros são bem tentadoras, auguram um futuro apetecido?
Idem, nota anterior

Caso 3

Suponhamos que Gabriela se enamora de Hermano e não sabe que Hermano tem um passado turbulento: droga, crime organizado, militância terrorista…
Releva este erro para efeito de invalidação?
Ibidem, primeiras hipóteses.


Casamentos em que se verificam Impedientes (artigo 1604º): a especificidade.

Bem mais “permissivo” é este regime, que compreende aqueles parentes mais distantes na relação genética e porventura, ainda cultural.
Caso
Se Teresa resolve casar com Urbano, sendo que se trata de sobrinha e tio, o casamento não está fora do horizonte jurídico.
Porém, em que termos? E que sucederá, caso não sejam promovidas antes as providências necessárias?
[A lei separa as situações em que a impossibilidade de casar incide sobre certas pessoas daquele casos que afinal estão na linha jurídica das invalidades negociais em termos amplos. Não estando ainda no âmbito da análise dogmática do Casamento, chama-se a atenção para a sistematização da Lei, que reflecte esta preocupação].



REVISÃO DE MATÉRIA

Casamento e União de Facto: o núcleo pessoal exigível

E abandono por um tempo este mundo do Parentesco para voltar àquelas formas de Família que se revelam menos ortodoxas. Penso nos pressupostos da União de Facto, por comparação com os do Matrimónio, a forma de união intersubjectiva por excelência.
A razão deste breve regresso deve-se ao necessário apuramento do grau de consolidação que se deve exigir à relação entre os unidos de facto, de modo a que as consequências jurídicas da União operem.
_ Suponhamos que Diana e Fernando casam, combinando à partida que interpoladamente viverão separados e se comportarão pondo de parte vínculos conjugais. Durante uma dessas fases, Fernanda Morre.
Não se põe em causa a subsistência do casamento, que entre ambos vigorava nos termos de uma vontade pessoalmente conformada e se submetia ao regime formal próprio.
Mas suponhamos agora que Diana e Fernando são unidos de facto, meramente. E que fizeram acordo idêntico. Quando morre Diana, tem Fernando direito, por hipótese, à casa de morada de família, como tendo vivido em União de Facto protegida?
Em princípio, parece correcto afirmar que sim. Pois terá sentido conferir menos plenitude de efeitos a este tipo de união, que se pretendeu mais informal, “descomprometida”, do que sucede com a união formal por excelência?
Direi que Diogo e Fernando casados assumem publicamente o seu compromisso _ na esfera pública, através do contrato que celebram. Isto projecta na comunidade um reconhecimento directo da situação/estatuto pessoal de ambos, de tal modo que, não manifestando o casal outra vontade. Será o Casamento e os seus efeitos que a sociedade esperará acolher.
Diana e Fernando, unidos de facto, exibem uma atitude de indiferença ante a esfera pública, ao menos, no que faz secante com os elementos essenciais da sua relação de União. O ónus de provar a existência de direitos decorrentes desta corre a cada passo, a cada momento da existência da União de Facto. É a opção do casal; é o modo de respeitar, em plenitude, as consequências jurídicas.
O mesmo tipo de argumentação se pode chamar a depor a propósito da famigerada aplicação do artigo 496º do Código Civil ao unido de facto sobrevivo.
Se bem recordam o exemplo, que não consta em pormenor destes “Sumários” mas foi discutido nas nossas aulas, questionámos a bondade de uma interpretação restrita, ou literal, da lei. Uma interpretação que permita ao unido de facto assumir o lugar de um cônjuge sobrevivo inexistente, muito à frente de parentes afastados, em nome da dor que com toda a probabilidade é muito mais intensa do que a dor de um daqueles.
Que dizer? É indiscutível a maior proximidade do espírito da lei deste unido de facto, do que a de parentes afastados. Por outro lado, o argumento demolidor do direito dos unidos de facto a perceber danos morais, que será a total “surpresa” dos destinatários do ressarcimento, a violação consequente do princípio da segurança jurídica, não tem uma densidade evidente. Com efeito, terceiros adstritos ao pagamento da indemnização dificilmente terão mais do que uma ideia remota acerca do núcleo dos visados: assim como a expectativa destes será lassa, na maioria dos casos.
Em que ficamos?
Diria que a lei não privilegia aqui, nem uma relação concreta de parentesco ou outra, nem de proximidade. Olha a existência da dor e do direito a compensá-la face aos principais visados. Publica ou privadamente assumidos, os unidos de facto estão aqui. Deverão perceber a indemnização, nos termos que a lei estipulou para o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens. Penso que as regras gerais do Código Civil em matéria de integração de lacunas (cfr. a “norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar de acordo com o espírito do sistema”) resolvem legitimamente o problema. Não será mister criar legislação específica para o caso: a solução decorre já da ordem jurídica portuguesa.
Direito da Família na Constituição (continuação)
Chama-se a depor, agora, o papel que a Constituição comete à protecção constitucionalmente imposta dos menores.
Começo em breve trecho sobre a procriação medicamente assistida, É certo que muitas vezes a sua localização problemática não surge aqui, antes a propósito do Casamento, ou de outras relações familiares. Compreende-se a referência biológica inerente (terá de haver uma decisão de progenitor ou progenitores) mas nada tem a ver com o eixo fundamental, a fonte de legitimidade desta procriação. Pois antes de mais, do que se trata é de aquilatar do bem fundado de gerar seres humanos em condições diversas das habituais, sendo evidente que persiste um quadro de desconhecimento, biológico desde logo e com evidentes repercussões de ordem pessoal, afectiva, a perpassar toda a sequência procriativa.
Pergunta-se, então, acerca da legitimidade de trazer para este mundo desconhecido ainda mais factores de desconhecimento, sobre a origem da pessoa e a sua subsequente situação; sobre os efeitos do “factor desconhecimento” e as suas consequências. Que garantia temos de dar por adquirido, procedendo assim, o respeito pela dignidade humana, ao permitir que acresça uma margem de desconhecimento acerca deste novo ser, margem que não decorre da álea da criação em geral, mas de outros factores que trazem consigo suspeita de complexidade e efeitos ainda insondáveis.
Creio que toda a discussão a fazer acerca das condições particulares que possam atribuir maior margem de favorabilidade a uns casos ante outros (cfr. casais que se provam impedidos de procriar e afirmam o impulso da maternidade/paternidade) não prescindirá esta reflexão prévia. Pois não se trata primacialmente de fundamentar um direito familiar, porventura situado na esfera recôndita dos direitos à maternidade e paternidade, à expressão dos afectos. O direito que antes do mais se ergue é o de cada pessoa e da sua circunstância. E posto que não podemos alterar aspectos essenciais de uma e outra, convirá, por igual, que os não pretendamos definir de acordo com as nossas mundivisões, padrões…
Já noutro plano, coloca-se o domínio dos direitos/deveres dos pais e encarregados da responsabilidade sobre a educação do menor. A lei, ao longo de muitas normas, que a Filiação exprime mas também a constituição firma, tal como as Declarações Internacionais, chega a um sistema de incumbências sobre cada educador. Este sistema cresce, a ponto de se reflectir sobre outros ramos do Direito. Uma mais forte consciência social das obrigações para com as crianças corrobora uma legislação densa noutros aspectos; estou a pensar no direito criminal perante os menores.
Também o artigo 36º da CRP desempenha um papel neste domínio, que se estudará mais à frente, pelo que se faz agora uma abordagem tão breve e remissiva.








































APONTAMENTOS


Aulas de Direito da Família, 2009/2010
















AUTOR

PROF. MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA











“A minha família é o povo do mundo”

Adelaide Teles, que foi autarca da Graciosa





















Apresentação do Programa.
Ao iniciar o Curso de Direito da Família parece-me fundamental, não só apresentar o objecto do seu Programa, mas ainda a justificação do mesmo.
O objecto do Direito da Família não é difícil de identificar nesta fase em que os alunos se encontram, nos últimos anos da licenciatura.
É uma disciplina que versa a realidade das instituições que a ordem jurídica e social contempla, no seio das quais as pessoas nascem, desenvolvem-se como seres humanos e exprimem afectos essenciais, bem como outros aspectos da personalidade. É o direito da esfera íntima.
É também o direito que estrutura modos de constituição ou incursão numa tal esfera, quando isso não pode ser contemplado pelas vicissitudes: morte dos pais ou parentes próximos, incapacidades dos mesmos…
Afirmei antes, quando tive ocasião de dar Aulas de Direito da Família ao 4º Ano, que inserido naquela fase, o Curso só teria sentido como uma disciplina de cúpula e de reflexão.
Terei admitido implicitamente que fosse possível um outro entendimento, menos crítico, da matéria. Terei sobretudo feito apelo à minha própria experiência, de quartanista desta Casa quando o enfrentei, à conclusão que então me pareceu evidente, de que a maturidade filosófica, social, jurídica, era incompatível com um estudo anterior.
Mas, menos de um ano passado sobre esse episódio não partilho tal opinião. Afinal, iniciamos a Filosofia do Direito nos tempos do 1º Ano e só ganhamos com a experiência formativa. A reflexão sobre os institutos sociais e os seus fundamentos, que o Direito da Família propicia, requer, sem dúvida, espírito crítico, capacidade de compreensão dos fenómenos sociais, políticos, capacidade de abstracção, maturidade para o ensaio inevitável de caminhos alternativos, sempre que uma solução mostra não satisfazer as solicitações cidadãs. Mas tal acontece em todo o Direito.
Onde está então a diferença?

O Tema do Direito Civil mais dinâmico nestes séculos
Diria que no modo como aqui somos interpelados. Pois em Direito da Família não é um instituto ou um acervo delimitado dos mesmos que se encontra sob a espada de Dâmocles da mudança. São todos, ou quase todos.
Dieter Schwab é um Autor alemão, um grande civilista, um nome maior do jusfamiliarismo. Quando confrontado com a missão de introduzir a este ramo escreveu que em nenhum outro lugar encontrava o Direito Civil tanta alteração ao longo do último século, em nenhum outro ramo fora tão favorável, também, à aceitação de tal mudança.

Da sociedade industrial aos novos direitos e às realidades ainda mais recentes.
Pois a Família de hoje não é a da sociedade rural, nem a da primeira sociedade industrial, sustenta. E, mais do que isso, evoluiu ao longo de décadas, mercê das Guerras, da nova consciência da dignidade das pessoas, da luta subreptícia umas vezes, frontal outras tantas, dos dois sexos pela igualdade na polis, na identidade dentro do agregado familiar. Evoluiu, enfim, na era dos novos direitos, mercê de reconhecimentos outros de direitos: dos homossexuais; dos embriões, com o desenvolvimento de tecnologias sofisticadas. Evoluiu com a diversidade dos papéis que desempenhamos durante o tempo e são desiguais mas promanam de uma experiência de vida que os tornam singulares: os idosos, os viúvos, os que recompuseram múltiplas vezes o seu modo de vida afectiva.
Sugiro que leiam Schwab, mas reconheço que bem podemos acompanhar as linhas mestras do seu pensamento de antemão.
O Direito da Família cura de uma realidade institucional que tem sofrido enormes mutações. Não é mais a Família em sentido biológico apenas, embora essa componente biológica seja essencial. Não preciso de recordar as consequências sociais negativas que resultam do abandono, do repúdio de um filho, de um parente próximo. Inscrita no código de valores que sufragamos desde logo em sede constitucional há uma axiologia que tem por base a realidade familiar próxima. E, subjacente à mesma, não está apenas (embora o esteja de algum modo) a solidariedade, o espírito de entreajuda, que invectiva a não abandonar um pobre, um indefeso. Há mais do que isso, ainda que se afigure difícil determinar o quê, qualificar o fundamento deste dever para com a Família.

A atitude: o “direito dos afectos”
Nos tempos mais recentes fala-se e escreve-se dobre a importância dos afectos no Direito. Estes afectos seriam o alicerce a partir do qual se pode erguer a rede de obrigações de ajuda entre pais e filhos, netos e avós, e muitas outras relações de verdadeira proximidade vivencial.
Mas a delimitação dos contornos dos afectos é um Sísifo. Em que consiste? É verdade que já Aristóteles sustentava uma ética de responsabilidade pelas emoções e pelo modo como as exprimimos em termos sociais.
Em todo o caso, a ideia releva de uma outra ideia anterior, que ganhou foros na doutrina anglo-americana e também europeia a partir dos anos 60. Trata-se da ideia da concepção do homem como ser cultural, social, em grande medida produto do meio que o recebe e do qual partem os influxos essenciais na construção da sua personalidade.
Esta ideia tem repercussões imensas na visão que se tenha da função educativa da Família (aqui muito diferenciada das teses tradicionais da construção da personalidade pelo arbítrio) e sobretudo, abre as portas a uma concepção familiar que muda. Pois não só a identificação de cada ser humano, mas por igual a do par humano ou de outra forma de agregado pela qual opte cada um, dependem de uma escolha social que nada, a não ser a opção de cada ser humano, condiciona. É este afinal o caminho que conduz à persistente tentativa de opção por formas institucionais moldáveis, extensíveis no seu campo de aplicação a outras situações. Quando se fala no matrimónio homossexual, na adopção por esse modelo de par, está-se neste ponto: clamando pela integração de um outro modelo de par na instituição matrimonial.
Mas será só isso que acontece? Ou, admitindo-o, é antes o Casamento que se altera, no sentido inicial com que se edificou sobretudo a partir do cristianismo, de união de carne e leito, de projecto de vida que comporta, senão a vivência no seio de um figurino sexual determinado, pelo menos um ritual de vida que o tem como referente e do que, afinal, apenas um pouco se afasta, quando assumidamente se afasta?
Chegam-nos neste tempo novas edições os Direitos das Famílias. Em Portugal, esteve em Abril a jurista Maria Berenice Dias, que escreve sobre o Direito das Famílias. Porquê? Porque quer acentuar a diferença, a pluralidade de perspectivas.

Os anos sessenta e as grandes mudanças
Creio que é claro para a Autora que é correcto, possível admitir perspectivas várias sobre o género, sobre as possibilidades de modelos de matrimónio e instituições afectivas abrangíveis por essa casa comum que seria a Família.
Não tenho, porém, a opinião de que a Constituição da República Portuguesa opte por tal caminho, vá por aí. Creio que a ideia de Casamento está entre nós cunhada pela separação firme entre os dois sexos, sem prejuízo de uma total falta de legitimidade para imputarmos ao legislador constituinte preconceitos impeditivos de outras construções jurídicas para situações diferentes. Justiça distributiva, sim, porque se entende que são diferentes os sexos.
E justiça distributiva que requer o estudo e conseguinte conhecimento das diferenças aí onde estas se evidenciam. Ora, como veremos adiante, há uma pluralidade de formas de modelação jurídica da realidade familiar entre nós: o Casamento, a União de Facto, outras formas de Relação Parafamiliar.
É verdade que uma é dominante e as outras se ofuscam pela parcimónia. Será este aspecto critério de justificação para um seu estudo esmorecido também?

Estratégias de estudo: tornar proeminente o que mais se evidencia e ocultar a outra realidade jurídica?
Não creio. Lembro Foucault, a ocultação dos temas que a sua supressão científica, ou minoração dogmática, vem provocar.
Ex: Imaginemos que se desencadeia uma onda de silêncio na doutrina em torno das matérias da Família; poderá suster-se o debate? É certo que não, pois este não se desenvolve apenas nos meios universitários.
Mais eficaz será a tendencial desvalorização científica. Mas, diferentemente do que ocorreu já, esta não se desenvolve apenas em sedes institucionais. E, sobretudo, os centros universitários, que proliferam, não dimanam o mesmo tipo de opiniões. É muito difícil a transposição prática da regra enunciada por Foucault, neste âmbito.

É certo que o casamento é o modo de Família mais expressivo e que as outras formais se subalternizam em dimensão. Mas não creio que seja igualmente certo que exista hoje uma simetria entre o carácter mitigado na experiência social das outras uniões para além do Casamento, e a importância que vem registando como tema de politologia, política legislativa também. Enfim: como tema que provoca a discussão acesa acerca do entendimento constitucional e se mostra susceptível de trazer para a agenda da opinião pública muito mais do que os temas “partidariamente correctos”, aqueles que um regime partidocrático impõe e para os quais, por regra, não se encontra na ordem social surto de resposta autónoma.
Assim, penso que a Família como tema de reflexão, a inclusão dos elementos do seu objecto, são determinantes. E por aí se começará, portanto.
Estamos em plena Dogmática Geral, portanto. Preferi dar ao primeiro Capítulo um outro título, Introdução às bases do Direito da Família. É que me pergunto se, afinal, teremos condições para neste modesto tempo que nos é destinado penetrar verdadeiramente em temas de dogmática especial com o apuro que esta requer. E, nesta fase primeira, afora o panorama da Família legal contemporânea, são as questões tradicionais que os ramos do Direito convocam que nos ocupam.

O inevitável influxo interdisciplinar
Assim: a Família na Ciência Jurídica, as ligações ao direito privado e a crescente ligação ao direito público, Constitucional e Penal. Hoje, estas relações são absorventes, muitas vezes esgotantes. Assim acontece, como veremos, com os temas de Direito Internacional, com as Convenções Internacionais que proliferam, relativas a Mulheres em risco (Tráfico, Escravatura) e a Menores, também aos Idosos. Não esquecendo a ligação ancestral do Direito da Família português ao da Santa Sé, que se modificou de modo importante com a Concordata 2004.
Mas as ligações ao direito privado permanecem. Não sei dizer em que medida proliferam, se proliferam. Os regimes de bens são múltiplos, a lei é permissiva, como veremos, de uma grande amplitude nesse domínio. Mas será, na prática, tão importante assim o regime de bens num Casamento que tende para a fragilidade, que surge no horizonte legal, vivencial dos nubentes com medidas de dissolução ágeis e que parece vocacionado para a precariedade? Não estou emitindo um juízo de valor sobre a opção legislativa. Mas olho as novas normas no diálogo que impõem com o direito anterior e pergunto-me acerca do carácter em parte semântico que este vem, em alguns aspectos, assumindo.
Claro que a Lei do Divórcio, entrada em vigor há menos de um ano, desempenhou aqui papel fundamental. Estudá-la-emos a seu tempo.
Ainda no âmbito privado, surge a ligação ao direito sucessório. Tão importante para alguns autores que se criou, designadamente na nossa Faculdade, uma disciplina de Direito da Família e das Sucessões.
Este Direito não mudava o conteúdo das normas vigentes, mas procurava centrar o núcleo de cada um dos Direitos em conexão com o núcleo do outro. Obnubilando os elementos que, tanto no Direito da Família, como no das Sucessões, relevavam dos contributos dos momentos liberais e de vanguarda da legislação, acentuava o seu carácter institucional. Por este modo, centravam os estudantes a atenção nos elementos em que a vontade dos progenitores, titulares de bens, se fazia incidir sobre o proveito dos membros do seu agregado. Membros face aos quais todos os demais adquirentes mortis causa de bens eram figuras alheias, de móbil concorrencial e compreendidas numa lógica hereditária que sublinhava a sua distância face ao fenómeno sucessório em questão.

Os problemas da sequência da matéria
A seu tempo veremos das consequências de uma tal compreensão.
Enfim, analisaremos as fontes essenciais do Direito da Família, a Constituição e o Código Civil. Se estivessem na Alemanha (suponham que haviam tido a dita de serem alunos de Schwab!...) encontravam com muita probabilidade já um Capítulo intitulado Enquadramento Constitucional, que inaugurava as fontes do Direito da Família. Hesito em ir por aí. Reconheço a supremacia dos princípios constitucionais, mas tenho também presente que a interpretação da Constituição se completa, nesta matéria, com um a plêiade de conceitos oriundos do direito civil O Código Civil fornece a primeira pista, logo no princípio do Livro IV, ao enunciar as fontes das relações jurídicas familiares. Estudar-se-á aqui, pois, o parentesco, o casamento, a afinidade, a adopção. Diria: numa primeira fase, o parentesco, o Casamento. São os conceitos que referenciam situações e instituições determinantes na compreensão da Constituição, de todo o Direito da Família.
Mas sob que perspectivas?
Vejamos em traços muito gerais o objecto das leis a trabalhar, os regimes jurídicos que nos vão ocupar e tentaremos surpreender a partir daqui um fio condutor.
Inicialmente, quando se estudava Direito da Família nas Faculdades de Direito, pegava-se no Código Penal (de Seabra, depois no Código Civil de 1967) e no caso deste último, abria-se logo o Livro IV. É verdade que nessa altura já se tinha aprendido o objecto do Livro da Família, como subramo do Direito Civil, ou mesmo tomado contacto com os conceitos de casamento, a propósito dos negócios jurídicos, e das relações familiares bem como da condição de menor, do poder paternal, estudando tantíssimos institutos nas cadeiras de introdução ao direito privado.

Mudanças nas fontes
Mas aqui o ângulo de observação é outro.
Exemplificando. Claro que quem contrai casamento cria laços familiares, constitui uma família. Mas que características tem esta?
Até aqui, referimos a pluralidade da Família na perspectiva de um possível desdobramento de formas de manifestação. Agora, porém, o foco da análise é diferente. Trata-se de ver a família não através da descrição dos seus factores constitutivos, mas sim do desempenho social que exibe, independentemente do modelo sexual. Ou melhor: atendendo a que, na sociedade dos nossos tempos, este outro problema coloca-se essencialmente em relação às famílias tradicionais. A elas afinal nos devemos dirigir, por uma questão de realismo.
É uma família autocrática, exprime a autoridade de um dos seus membros, aquele que tem mais poder intelectual, financeiro, mediático? Faz sentido dizer que estas pessoas contrataram, como afirma o Código, ou o acordo que celebram tem outro sentido?
E se duas pessoas decidirem viver juntas e não casar? Há vínculos jurídicos reconhecidos pela lei apesar desta situação, que há décadas se denominaria de ignomínia (“um escândalo”, na picardia de Eça de Queirós, mas sem prejuízo de recordarmos que o actual Código Civil ainda não abriu mão, como veremos, da expressão concubinato), um concubinato, uma imoralidade com algum reflexo jurídico?
Vemos então que o anátema social existe, quer em razão do modelo de vida sexual, quer das formas de organização interna. Uns aceitam a igualdade plena dos cônjuges, dos unidos de facto, outros rejeitam-na e persistem em quadros familiares que exibem paradigmas anteriores. A autoridade do marido/homem paterfamilias é uma relíquia que perdura em vastos meios.
Claro que não pode ser assim, pois há uma lei sobre uniões de facto, o que mostra que colhem a respeitabilidade do legislador, reflexo seguro do respeito social. Mas as reticências mantêm-se. Há quem considere a lei um erro. Independentemente de formular agora juízos sobre ela, uma coisa parece certa: há hoje mais lei entre o céu e a terra do que o Livro IV do Código Civil. Ora, deve esta matéria albergar-se na nossa disciplina? Se provarmos que se deixa cobrir por um denominador comum, a resposta será afirmativa. Mas não basta ser legalista e argumentar com a existência de uma lei. O legislador pode ter criado um regime obsoleto, ou terminologicamente indutor em erro. E que fazer nesse caso? Só se detivermos uma matriz dogmática segura poderemos opinar. Ora isso implica um conceito material de Família para efeitos de Direito.

Um outro regime legal de Família?
E o parentesco, que importância tem para além das relações mais estreitas que marcam o núcleo familiar nos nossos dias? Faz sentido conferir o poder paternal a um tio que vive noutra cidade ou mesmo noutro país e mal conhece o sobrinho? Não seria mais realista recorrer de imediato, em tais casos, a instâncias da comunidade, experientes, pedagogicamente apetrechadas para ajudar uma criança, um jovem, disponíveis para acompanhar os seus conflitos? Ou antes dá-lo de adopção a pais de vocação que o desejem? Ou explorar as potencialidades que a nova Lei do Apadrinhamento Familiar desde ontem nos oferece? *
Mas olhando o próprio casamento, à primeira vista, o reduto da estabilidade dogmática da nossa matéria. Deverá ele continuar sendo o casamento de pessoas de sexo diferente ou abre-se a constituição, a sociedade portuguesa, a uma inflexão neste domínio? E onde encontrar a sede da resposta: na Constituição, num sentimento social evidente, ou aceitar que subsistem dúvidas, cabendo saber de que grau: grande, poucas…?
E será que anda bem o legislador em aceitar que se dissolvam com facilidade as sociedades conjugais, ao fim de um ano, como admite o Decreto que a Assembleia da República, após o veto presidencial, e não obstante o mesmo, tendo vindo a converter-se em Lei por decisão da Assembleia da República (Lei do Divórcio) Decerto que este veto, político, exprimiu a posição do Presidente e mais do que a sua própria, a posição de um espectro de que se entende representativo, o que aponta na direcção de que a nova Lei irá, a entrar em vigor, quebrar nexos importantes na sociedade portuguesa.

Actual conceito de Família
Quem é esta Família que a um tempo se alarga e o retrata na lei, que se demite da vocação à perpetuidade e o quer retratar mais incisivamente na lei, que legisla em nome e no interesse dos menores e tantas dúvidas tem por resolver a propósito das decisões que toma?
É a personagem central da nossa cadeira. Interpelada por nós, estudantes, docentes, e interpeladora, já que requer opinião para os seus contornos que vêm mudando em crescendo. Recorde-se que a Lei das Uniões de Facto mudou, mas mantém-se agora inalterada desde 2001. Não obstante, verificou-se tentativa recente no sentido do seu alargamento. E, apesar de não ir por aí o sentido imediato do caminho legislativo, far-se-á uma referência. Pois, afinal, é o sentido pulsante de um espectro social que aí se exprime e sendo-o, convém proceder à sua ponderação. Os temas centrais são os que referimos. Vendo bem, é todo o Direito da Família que eles convocam, pois não é possível trabalhar isoladamente os vários institutos.








II

Características contemporâneas do Direito da Família
Direi pois que duas características marcam o recente Direito da Família, instabilidade e mudança legislativa efectiva, arrisco creditar que tantas vezes algo precipitada.
Mas tomaremos um ponto de referência, já que o nosso âmbito é dogmático, e a história vem a propósito na medida em que prove o problema, a reacção ao problema.
O ponto vai ser a Reforma de 77. Com ela não nasce o Código Civil, mas renasce o mundo do Direito da Família adequado à Constituição de 76.

A história recente
Vejamos o que acontece.
Entrara em vigor a Constituição de 76. Com ela, surgia, entre os Direitos Fundamentais, o direito à igualdade perante a lei, o direito a constituir família, dentro e fora do casamento e o direito a contar com um regime igualitário dessa mesma relação matrimonial, ainda que o sistema formal adoptado para contrair casamento não tivesse sido o mesmo, o que acontecia, no caso dos casamentos católicos, que a Constituição reconhece, agora de novo, após a revisão da Concordata com a Santa Sé.
Quando olhamos esta Reforma recordamos nomes muito importantes da Faculdade de Direito de Lisboa, e desde logo, o da Senhora Profª. Isabel de Magalhães Collaço, que presidiu, o da Senhora Doutora Maria de Nazareth Lobato Guimarães e o da Dra. Leonor Beleza, então assistente de Direito da Família e especialista da matéria junto da Comissão da Condição Feminina.
Lendo o preâmbulo da Reforma na Parte que respeita ao Direito da Família, que é aliás uma leitura essencial nesta fase primeira do Semestre, verificamos que os temas que marcam a Reforma são o tema da igualdade e seus reflexos na Família, bem como a proibição de discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento, tal como, ainda, a questão do divórcio e as novas modalidades e pressupostos da sua concretização.
Escrevia-se no texto do preâmbulo: “Deve, de resto, notar-se que na última década se tem assistido em quase todos os países europeus a profundas alterações do direito da família, determinadas pelo triunfo do princípio da igualdade entre os cônjuges e pela revisão de muitas das soluções tradicionais em matéria de filiação.
As soluções agora adoptadas puderam assim basear-se em larga e recente experiência de sistemas jurídicos próximos do nosso”.
Mas a afirmação continha muitos laivos de modéstia, pois que esta Reforma de 77 exprimia, diferentemente do movimento que percorria muitos outros Direitos em sede de Família, a necessidade de ultrapassar soluções inconstitucionais e implantar na ordem positiva o Estado de Direito. Foi por isso uma Reforma funda, comparada com as suas congéneres de outros países.
Desde logo, o princípio da igualdade entre os homens e as mulheres vem determinar a sua não discriminação na sociedade conjugal. Marido e mulher lideram esta sociedade conjuntamente, o que vale por dizer que será inconstitucional uma norma (contida, por exemplo, em Convenção Antenupcial, em acordo celebrado antes do Casamento, que estudaremos adiante) de acordo com o qual o marido delegue na mulher, ou o contrário (seria este contrário, presumo, o mais previsível, já que era a realidade correspondente à experiência anterior) a orientação dos assuntos da família, o modo de educar os filhos, os princípios de vida a que deveriam respeito, como por exemplo a escolha da casa de morada…A lei retoma o filão constitucional, ao estipular que ambos os cônjuges irão reger a vida comum. Por outro lado, o papel de ambos é tido em igual dignidade, mesmo na sua expressão financeira. A lei desinteressa-se de saber se os rendimentos obtidos provêm do trabalho de um ou de ambos, para efeitos sucessórios. Aí, também o cônjuge sucessivo que não tenha trabalhado fora de casa e não tenha sequer participado no montante hereditário através de bens próprios, adquiridos por qualquer via (doação, herança…) estará na primeira classe dos sucessíveis, ao lado dos filhos e mesmo em situação de vantagem face a estes, já que é titular do estatuto de herdeiro legitimário ou forçado e detém pelo menos um quarto dos bens que correspondem à massa desta fatia hereditária.
Por outro lado, valerá, como fundamento de invalidade do casamento, o erro sobre a pessoa do outro cônjuge, desde que corresponda a qualidades suas essenciais e além disso, o divórcio passa a ser possível, não apenas nos casos de incumprimento dos deveres conjugais, como ainda se porventura um dos cônjuges não assentir em assentir num mútuo consentimento, desde que a separação se verifique há pelo menos seis anos. Atentando a que o Código de Seabra apunha aqui um prazo de dez anos, a diferença é decisiva, direi que socialmente algo “labónica” ainda, mas favorecedora de possibilidades e indicativa de que a lei não persiste em impor a solução do “casamento para a vida” a quem não comungue desse projecto ou não parta de ideias em tal sentido.
Ora pegámos na Reforma de 77. Certamente porque foi a mais importante que ocorreu a marcar o essencial do Direito que ainda vigora.
Mas também porque não só por acção, como por omissão, ela marca a agenda dos primeiros temas contemporâneos do Direito da Família.

Um Debate na Faculdade de Direito e uma Reforma jusfamiliar
Quando penso na Reforma de 77, recordo um texto, um livro, que foi publicado poucos anos antes da entrada em vigor daquela. Um livro que li na adolescência e (permitam a nota pessoal) ainda hoje acredito que foi um grande responsável pela opção que depois fiz: Direito.
Trata-se da publicação do primeiro grande debate sobre estes temas a que a Faculdade de Direito abriu as suas portas em 1968 e no qual participaram figuras de vários domínios, mas entre eles, juristas empenhados na Reforma, naquele tempo.
O livro é “A mulher na Sociedade Contemporânea”, uma publicação da Associação Académica de Direito de 1969.
Se (como espero) o percorrerem, verificarão que os grandes temas jurídicos então eleitos são relativos ao estatuto da Mulher, como cônjuge, como mãe. Eu assinalo aqui os de Elina Guimarães, que faria uma análise histórica sobre o estatuto da mulher dentro do casamento, perante o marido e os filhos. Elina Guimarães chama a atenção para que sendo, “dentro da sua época”, o Código Do Visconde de Seabra (1867) uma legislação “aberta”, persistia, em sede de situação jurídica das mulheres, em manter duas grandes ordens de fundamentos de incapacidades discriminatórias das mulheres. Por um lado, as que provinham logo do próprio sexo; por outro lado as incapacidades em razão da família, como as que diziam respeito à mulher casada e à mãe. Sobre estas últimas, focava a perda da nacionalidade que o casamento com estrangeiro provocava (e que só verificada uma situação de perda absoluta de qualquer nacionalidade podia ser repristinada, mediante um processo de todo o modo complexo); o dever de obediência ao marido, chefe da família, o dever de o acompanhar para todo o lado, podendo até dar-se o caso de ser obrigada a regressar pela força ao domicílio conjugal. A administração dos bens competia ao marido, mesmo a respeitante aos seus próprios bens. E, recordando a Lei do Divórcio, segundo a qual os fundamentos para a separação de facto eram iguais para ambos os sexos, nem por isso deixou de apontar o dedo ao novel então Código Civil de 1967, dizendo então: “…peço vénia …para declarar que o art.º 1674º do novo Código, fulcro da situação conjugal, é detestável: ‘o marido é o chefe de família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum’”.
Era, suponho, constrangedor já naquele tempo, reconhecer aqui, e ouvir de uma das mais antigas e prestigiadas ex-alunas da Faculdade, que estava em vigor a norma segundo a qual o marido podia requerer a entrega civil da mulher no lar conjugal, caso esta o abandonasse sem “fundamentação justa”.
A Dra. Maria da Conceição Homem de Gouveia voltou ao tema do estatuto jurídico da mãe para advertir que “o poder paternal regulado pelo novo código Civil [de 1967] deverá ser interpretado extensivamente, para poder adaptar-se às realidades sociológicas”. Ou seja: não era, no entendimento da Autora, inequívoca a interpretação da lei segundo a qual o estatuto da mulher mãe ombreasse com o do marido em matéria de exercício do poder paternal.
Mas do meu ponto de vista, o texto verdadeiramente premonitório que o livro que venho citando contém é de uma escritora, Sophia de Mello Breyner Anresen. Sophia intitulou a intervenção de “A Mulher na Cidade do Homem” e começou por dizer que não vinha falar de direitos mas de vocação feminina, se é que “existe uma vocação”.
A verdade, porém, é que falou de direitos da maneira mais incisiva. Recordou o Evangelho, onde entre Marta, a fazedora de coisas materiais e Maria, a teórica, a contemplativa, fora Maria a que “tivera a melhor parte, pois foi ela que “ascendeu à contemplação do divino”. No entanto, continuava Sophia, “as sociedades vêm tratando a mulher como se fundamentalmente ela fosse Marta”.
Sophia terminava recordando que “a maternidade é missão e responsabilidade”. E que por isso, através dos filhos que tem, conclui-se que a história da mulher não é a sua história: “pois não existe o problema da mulher, mas sim o problema da humanidade. E é por isso que o Feminismo é um caminho errado e ultrapassado. Aliás sempre à roda das mulheres se criaram falsos problemas”. E acrescentava também: “Assim muitas vezes se tem oposto vocação maternal e vocação criadora. Mas a maternidade é plenitude e não mutilação, é maioridade e não menoridade. E a maternidade que é escolha e vocação é também escolha e responsabilidade”.
Eu admiro o carácter premonitório destas palavras, porque creio que elas contêm a universalidade que os Direitos Humanos projectam. Ora a dignidade das mulheres, a igualdade, surgem pouco depois na Constituição de 76. Menos de uma década.

O ensino do Direito da Família
E na Faculdade de Direito?
O Direito da Família ficou, naqueles anos que se seguiram à entrada em vigor da Reforma, entregue à Srª Drª Leonor Beleza, incumbida da regência de vários anos.
Houve, porém, uma fase em que o Professor Castro Mendes assumiu esta incumbência, com a colaboração de Miguel Teixeira de Sousa. Deve-se-lhes um fôlego decisivo na cadeira e sua evolução científica.
Só anos mais tarde a disciplina seria entregue aos primeiros doutores na área, depois da Reforma que a Faculdade sofreu mercê do trabalho de uma Comissão Revisora. Carlos Pamplona Corte-Real e, posteriormente, Jorge Duarte Pinheiro.

O maior ganho da Reforma: estatuto das mulheres, estatuto dos jovens.
Por aqui nasceu a Reforma. Ou seja, pelos temas matriciais do Direito da Família, pelo estatuto do pai de família, que aqui sai de primeiro plano no palco e assiste á entrada de outro personagem. Que pela primeira vez não é o único protagonista.
E os filhos?
Os filhos são, aqui, os menores ou os incapazes, aqueles que se submetem ao poder paternal. Indo mais longe, poderíamos falar dos adoptados.
Reflictamos rapidamente sobre o contexto em que a sua situação se modifica.
Claro que todos os seres humanos são ganhadores quando os direitos fundamentais se impõem. Seria dislate afirmar que não têm eles um papel relevante nesta nova geração jurídico-familiar. Têm-na, o que a igualdade entre todos, independentemente do nascimento, dentro ou fora do casamento, logo reflecte. Com a Constituição de 76 termina a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos Têm-na ainda, quando se implementa o seu interesse na determinação de aspectos fundamentais da sua vida. Porém, não são eles, os menores, os destinatários de um acervo legislativo imediato, ou com o impacto fundamental.
Em parte por esse motivo, o descontentamento e a inquietação neste nosso Direito continuam. Recordo que faço prova da disciplina num tempo (anos 80) em que se procurava já ver o texto de 77 com um olhar avaliador. “É uma Reforma demolidora, desagrega um projecto, muito mais do que constrói outro”, lembro-me de que sustentei na altura.
Mas a esta distância não penso assim, redimo-me da análise injusta que fiz então. A Reforma de 77 não é vocacionalmente demolidora de um edifício legislativo.
Por isso, antes de falar dos filhos, insisto ainda neste ponto do estatuto da mulher, afinal, no estatuto de um dos titulares do poder paternal.
Edificou um Projecto, permitiu traduzir com mais autenticidade, no Direito, as opções da vida e da experiência familiar que existiam, ou pretendiam muitos, em Portugal. Pretendia-se igualdade entre todos os membros, reflexo em cada solução jurídica do princípio da dignidade. Pretendia-se maior abertura à possibilidade de exprimir o projecto de vida que o casamento reflectia, ao invés da obrigatoriedade de uma retórica, absurda, imposição de algo às avessas. Pode decidir-se mal ou bem, mas tem-se o direito de tomar a decisão e a Reforma reconheceu-o. Mais: teve consideração pelo empenho de cada cônjuge dentro do casamento e assentiu em que o divórcio não era apenas uma questão de imagem social, era para muitos, sobretudo para muitas mulheres, a perda de uma referência em instituição. Elas a quem não fora reconhecido um papel cívico activo e que muitas vezes tinham entrado na família do marido aos 14 anos, a idade núbil então, em nome da sua alegada maturidade. Sem experiência profissional, tantas; sem experiência de integrar mulheres nos seus quadros, muitíssimos empregadores. Vedada mesmo a oportunidade de acesso a várias profissões, era preciso reconhecer a medida fortíssima em que o mundo de muitas mulheres portuguesas era a sua família, na melhor das hipóteses, aliada a uma vago sonho de alternativa que quase nunca concretizavam. Este mundo desaparecia entretanto e a Reforma de 77 foi muito realista no seu contributo para esse desaparecimento, ao mesmo tempo que tinha em conta o novo papel social e profissional, mas sobretudo, a nova dignidade e cidadania activa das mulheres: em matéria de titularidade de bens e na sua administração, de compromisso na edução dos filhos partilhada em co-responsabilidade, em matéria de definição das classes de sucessíveis, onde o cônjuge sobrevivo passou para o primeiro plano.

Estatuto das mulheres, estatuto das crianças: ganhos relativos
Mas não deixa de ser verdade que este pensamento jurídico estruturado, entre nós e internacionalmente, sobre as mulheres e o Direito da Família não tem a mesma vocação acolhedora quando pensamos nas crianças, como a não tem em sede de estatuto dos idosos. E refiro a questão das crianças e dos idosos lado a lado com o estatuto das mulheres porque, e apenas porque, estamos falando de personagens que o universo da família integra, ou seja, estamos vendo que direitos lhes são reconhecidos, em que medida o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos se cumpre, por um lado e em que medida se estruturam diferenças de carácter jurídico e função protectora dos que em certa fase se mostre mais carentes. Neste universo e sob estes pontos de vista, o estatuto das crianças e dos idosos era, tal como o das mulheres, carente de atenção do legislador. Não esqueçamos porém que o problema dos direitos das mulheres, o problema da igualdade de género, é sempre e muito diferente. É transversal a todas as faixas etárias, como o é a etnias, raças, culturas…Uma coisa é a discriminação em função da menoridade, outra ainda, a discriminação que acresce sobre uma criança do sexo feminino. Consciente de que é assim, escrevia a Dra. Leonor Beleza logo após a entrada em vigor da Constituição de 76: “ Parece-nos incorrecto o tratamento do sexo exactamente ao mesmo nível de outras realidades. É que, por um lado _ e sem contraposição com a ascendência, o território é de origem ou a língua _ o sexo é um elemento essencial na vida da pessoa humana; é-se e ser-se-á necessariamente diferente ser homem ou mulher, mesmo que a situação actual de atribuições estereotipadas a um e a outra venha a desaparecer” (“O Estatuto das Mulheres na Constituição”, Estudos sobre a Constituição, 1977).
A Autora defendia a tese segundo a qual a questão das desigualdades em razão do sexo acrescem pela especificidade que incorporam a todas as outras desigualdades sociais e são, por isso, mais difíceis ainda de lidar, de tentar debelar. Tese que, aliás, continua a fazer caminho, pesem as dificuldades que se lhe deparam tantas vezes, talvez pelo nível de abstracção que tem inerente, talvez, também, pela necessidade de transcendência que impõe, ou seja, sair de si próprio(a) e da sua circunstância e olhar o outro, ver o que marca um sulco às vezes bem subtil, nem por isso presente, na vida, no Direito, claro.

Filiação e Menores: a diferença
As crianças começam então, nos anos 70, a ver despontar os primeiros instrumentos internacionais a seu respeito. Os idosos, esses aguardam ainda uma Carta de Direitos, que terá como sempre, em relação a instrumentos do tipo, um papel sobretudo simbólico. Na verdade, se é muito meritório acentuar o seu papel como personagens do Direito da Família, este acentuação tem implícito o reconhecimento de conter uma espécie de vanguardismo ainda e eu pergunto-me às vezes se não se dará o caso de, pesem as intenções jurídicas também, maravilhosos que lhe estão inerentes, não se tornar o que seria um risco terrível, algo perverso.
Mas o que nos importa saber, afinal, é a medida em que outras matérias entram no Direito da Família. Referimos o casamento e a propósito dele o estatuto de ambos os sexos e o das crianças.
Diria que esta dimensão das crianças está mais incrustada nos problemas que ocupam o Direito do que possa à primeira vista imaginar-se. Pois a humanidade inerente a cada criança determina o seu estatuto na família e há com certeza reflexos em várias instituições que deverão ser atendidos.
È, porém, certo que há muito de contemporaneidade na descoberta das crianças enquanto titulares de direitos. Eu arriscaria dizer que isso é mais visível no caso dos direitos das crianças do que no caso dos direitos das mulheres. Aliás, já vimos que se reflectiu na maneira como são construídos os estatutos de filiação, proscrevendo uma forma mais prestigiada que outra e como também se olha na lei o poder paternal, tendo em conta os interesses do menor.
Porém, este dado é bastante recente na cultura europeia. E não se dirá que tem mais ou menos a mesma gestação que se encontra para o aparecimento dos direitos das mulheres. Na realidade, penso que tem uma gestação mais tardia e também mais lenta.

Os Menores na Família
Há quem afirme que a cultura europeia encara a criança como um homúnculo até ao século XVI. A pintura depõe muito nesse sentido: figuras infantis apenas nas proporções, já que em tudo o mais se assemelham a homens e mulheres. Esta forma expressiva que a Arte toma transpõe-se para a vida real, ou mais precisamente, é um seu reflexo. Não havia, entende-se, uma percepção social e normativa da criança nas suas particularidades, como ser humano em formação e carente de um processo educativo que ao Direito, designadamente, competisse conformar.
O Humanismo possuiu todas as condições para, olhando o Homem por outro prisma, contemplar também os seres humanos em formação e educação.
Ora, a realidade mostra que este caminho não foi percorrido. É verdade que têm uma parte forte de razão as teses que afirmam que durante muito tempo foram as crianças usadas como meio de superação de frustrações dos adultos a cargo de quem estavam, os pais, naturalmente, incluídos. Mas, se é certo que surgiram entretanto algumas obras demonstrativas da importância que se vinha conferindo à missão educativa, esta era entendida como a educação para a chefia da família, a defesa dos seus interesses e subsistência, financeira e na projecção social. Será a educação daquele que detendo a chefia do agregado, participará activamente na vida da polis democrática que emerge com a Revolução Francesa.
É verdade que a consciência progressiva dos Direitos Humanos, o seu processo de sedimentação proporcionaram um outro enquadramento dos problemas dos menores. Entre a época em que o pai de família podia a seu alvedrio entregar o filho a uma instituição devido a alegado comportamento ilícito, subrogando-se aos tribunais (um poder que o Código de Napoleão vem indeferir em 1810), afinal e esta época em que os Tribunais de Menores assumem uma intervenção tutelar educativa, ou de protecção, como última instância, vai um fosso muito importante.
Esse fosso, exprime-o bem o caminho legal percorrido entre o Código de Seabra e o Código Civil de 1967, que em muitos aspectos é considerado, como vimos, altamente inovador.
Concluiríamos então que o tempo actual é um tempo que finalmente centrou devidamente os problemas dos menores, e que, se dúvidas ou arrimos de lacuna legislativa subsistem, são matéria a completar através das adequadas reformas legislativas.
Não compartilho todavia deste ponto de vista. Creio que há ainda um caminho, também de compreensão sociológica da situação dos menores, em que as opiniões divergem; e que estas teses têm reflexos jurídicos. E por isso há aspectos a clarificar, a corrigir.

Teses recentes
Penso desde logo na controvérsia que hoje separa os entendimentos comunitaristas e voluntaristas sobre os direitos das crianças.
Segundo a concepção comunitarista, os destinatários de políticas públicas devem ser consideradas no carácter de membros da comunidade, pelo que a consideração de um ser humano, ou de um grupo de seres humanos, dentro da família, se compadece com este tipo de análise considerada adequada pelos comunitaristas. Resta, porém, saber em que medida a família tem capacidade de resposta a todos os problemas e realidades humanas que decorrem da personalidade, designadamente do menor. Creio que uma resposta afirmativa é irrealista, redutora. É verdade que os menores se desenvolvem dentro de pequenas comunidades e nelas se procede a uma parte essencial do seu processo de socialização. Sendo assim, têm razão os comunitaristas ao sustentar que será a família uma realidade essencial a considerar neste domínio. Não só porque no seu interior se reconhecem direitos, mas sobretudo porque é legítima representante de muitos interesses e direitos dos menores perante toda a sociedade.
Mas aqui termina a parte aceitável do comunitarismo.
Pois ele padece dos problemas próprios de todas as correntes que, integrando a pessoa numa comunidade, lhe esbatem ou mesmo tendem a anular a autonomia essencial em cada momento da vida. O homem é um ser comunitário mas sem que isso impeça ou muito menos exclua a sua dimensão de ser único, e esse reconhecimento é a grande conquista dos Direitos Humanos que esta tese arrisca comprometer.
Em segundo lugar, creio criticável ao comunitarismo ser ele muito vago ao sustentar a ideia segundo a qual a integração das pessoas na sociedade familiar permite que seja esta representativa, em última instância, e de forma plena, dos seus direitos. Como, através de que mecanismos? E sobretudo, como comprovar que o ser humano é um ser institucional em todo o sentido?
Mas a tese comunitarista é uma tese que se reclama dos Direitos Humanos, seguida por muitos autores e não poderá ser ignorada. O sentido da crítica é evitar descambar num silêncio comprometedor. De facto, não defendo as conclusões comunitaristas sobre os menores como democraticamente possíveis, compatíveis com a Constituição.
Já as teses voluntaristas singram pelo modelo oposto. De acordo com elas, e recorrendo ao argumento de se poderem mais confortavelmente reclamar dos Direitos na sua expressão clássica, direi real, como direitos pessoais e essencialmente compreensíveis nessa óptica, os direitos dos menores são considerados na sua expressão de direitos individuais. A conclusão, porém, deixa muito a desejar. O voluntarismo pondera os direitos dos menores mas para concluir que as crianças não têm a capacidade de autonomia plenamente desenvolvida. Sendo assim, aos pais competirá tomar a defesa dos seus direitos. E isto vale por dizer que terão legitimidade para os interpretar em todas as circunstâncias, com a ressalva, com certeza, dos casos de incapacidade do próprio progenitor ou de quem o represente.
A tese não se adapta à realidade biológica, social das crianças. Reconhece-se hoje que estas são seres em evolução, sim, mas municiadas com um conjunto de direitos que exprimem uma personalidade existente na infância. E sobretudo, é-lhes reconhecida a dignidade, também social, que indefere a ideia desta tese.
Enfim, as correntes que hoje insistem em entender que a personalidade se constrói através da afirmação participativa do menor na sociedade, para o que contribui a sua afirmação dentro, também, do agregado familiar e as consequências que deverão ser reconhecidas a tal afirmação.
São teses realistas e apelativas. O problema que colocam é ainda assim difícil. Trata-se de saber a quem compete tomar posição, caso os menores não colham na opção de um dos seus progenitores, ou de ambos, uma solução compatível com o seu próprio projecto e detenham já idade bastante para que se torne relevante, pertinente ouvi-lo.
Estas reflectem-se já nos instrumentos internacionais, se bem que de modo não muito assertivo.

Os diplomas internacionais: dimensão simbólica ou eficácia evidente?
Assim, a Convenção Europeia dos Direitos das Crianças não torna claro o papel que deva cometer-se realmente à criança neste processo de decisão. Concretizando: posto que o menor não se mostre de acordo com os pais em relação a aspectos da sua realização e desenvolvimento, como são os respeitantes ao ensino que irá ter e à educação religiosa que lhe será ministrada, como decidir? Compete ao juiz tal decisão? A verdade é que o juiz, tendo por si a vantagem da isenção face a possíveis interesses que as opções dos pais reflictam, não tem decerto um conhecimento do menor que lhe permita tomar com grande à vontade posição no processo decisório. Sempre se poderá dizer que tem o juiz a possibilidade, mesmo o dever, de se fazer acompanhar na formação deste processo decisório pelo conselho de família, por técnicos de psicologia, pedagogos qualificados. Mas este aspecto, que aliás já a lei em vigor contempla, não contém sortilégios: Há aspectos educativos de grande melindre sobre os quais sempre, em última instância, se coloca a alternativa entre a outorga aos pais ou a quem os represente e a ênfase reconhecida à vontade em sentido diverso do menor.
A lei portuguesa tem feito esforços grandes no sentido da integração social dos menores quer na Família, quer no mundo social, através de adequados meios de acesso à cultura, à Educação. Há uma noção muito clara, que a lei reflecte, de que os pais têm aqui um papel, senão insubstituível, ao menos primordial, Pretende-se dizer com a afirmação que os pais deverão liderar sempre que possível em conjunto, o processo educativo. Que esta liderança corre à margem das rupturas conjugais que porventura ocorram entre eles. Enfim, que a sua substituição deve dar-se, a benefício do menor, em alguém que mantenha uma relação de proximidade, na medida em que seja detentor de condições para o efeito (materiais; afectivas).
Muitas vezes se cometem erros. A preocupação de entregar a criança à mãe biológica, posto que capaz de prover ao seu sustento e manifestando apetência afectiva para o efeito, ainda há pouco tempo faria correr torrentes de opinião…na verdade, correu mal naquele caso. Mas não pode julgar-se a decisão anterior sem os elementos completos, decerto complexos, que a rodearam. Em princípio, o Tribunal que entrega a criança à sua mãe biologia e que deseja a criança é uma decisão acertada. Ou, por outro ângulo? Que alternativa melhor se encontraria?
Enfim, a propósito dos menores e do seu reconhecimento social e jurídico, gostava de vos dizer que, não obstante a importantíssima movimentação jurídica que se está a verificar nestas últimas décadas em torno da consciência disseminada dos seus direitos, não compartilho a ideia desresponsabilizadora e maniqueísta que permite um juízo maniqueísta sobre o “passado” e um presente que caminha em direcção do mirífico…Infelizmente, sou um tanto menos optimista. Prefiro reconhecer que há uma consciência social e sobretudo, instrumentos jurídicos que representam um progresso incomparável.

Um direito personalista nas decisões
Os nossos Tribunais de Menores fazem muito pelos direitos das crianças, como veremos Mas, caso se proporcionasse escolher um quadro representativo das crianças na Europa eu não escolhia Rubens, também não escolhia Picasso ou Dali, nem sequer Paula Rego e as suas fantásticas, misteriosas meninas! Escolhia Velasquez. Tomava Las Meninas. Claro que não vamos discutir o quadro, saber qual o irrealismo que ele junta à realidade. Mas basta ter em conta que a consistência que ali existe (ali, onde tudo é volátil, susceptível de várias interpretações: para onde olha o pintor? Que retrata o espelho no fundo da sala, o Rei e a Rainha ao nosso nível, sentados a posar para o retrato? Porque observa o homem lá atrás a cena?) parte de uma família. O que dá consistência e unidade é a família do Rei Filipe IV. A Infanta Margarita irrompe na sala onde o pintor se encontra e faz, parece, uma birra: está farta de ser pintada por aquele homem, desde bebé. Todos tentam persuadi-la: as aias portuguesas (“Las Meninas”, a irmã, Teresa, talvez o Rei e a Rainha que porventura olham para nós, reflectidos num espelho. Talvez, ainda, Velasquez…). É uma família muito prosaica que dá consistência ao quadro. E é uma família que acarinha uma criança, não a ameaça por não querer posar pela enésima vez. Há sentimentos que perduram. Nisto se traduz um papel decerto pouco consistente no passado, mas representativo da nossa cultura acerca da infância.
Ora este ponto abre as portas a uma realidade que tem de ser devidamente realçada neste início do estudo do Direito da Família. Trata-se de saber que pontos da vivência das pessoas, que revestem a qualidade de pais, filhos, educadores, menores de idade, idosos, devem ser do âmbito do Direito da Família. E se porventura há segmentos deste processo e da sua expressão jurídica que devam exorbitar o Direito da Família.
Ex: Recordo a este propósito um Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. No caso, colocava-se, aparentemente, “só” uma questão escolar, “só” um problema de direito á educação. Um número de crianças belgas não tinha, nas imediações de casa, escola que ministrasse o ensino da língua familiar, o francês. Preocupados, os pais vieram requerer uma escola diferente para os seus filhos, ou, em alternativa, professores adequados a suprir a lacuna. O flamengo era a alternativa e em casa não falavam flamengo. As autoridades do país invocaram a possibilidade de as crianças aprenderem francês nas imediações…deixando de viver o quotidiano em suas casas. Colocada a questão ao Tribunal Europeu, entendeu este que não se verificava uma necessidade insusceptível de ser suprida pelos pais, através de expedientes como a escola alternativa…e longe de casa. Perpassa na fundamentação da decisão, entre outros aspectos também complexos, uma grande promiscuidade entre as possibilidades materiais da família, que pareciam reais nas várias situações, e a plena desconsideração do direito da criança a um acolhimento afectivo na sua casa, no seio de uma família adequada. Esta confusão entre a importância do afecto e a importância das vantagens económicas é gritante na decisão. Contudo, foi o veredicto.

“Para onde vamos? Para casa, sempre para casa…”
Ou antes, se afinal domina aqui a mesma tendência que vemos perpassar muitos ramos do Direito. Uma dificuldade cada vez mais acentuada em criar núcleos de compartimentação entre o que e “coisa privada” e “coisa pública”. Pois a realidade é que há muitos aspectos do Direito da Família que se fazem permear por influência notável do direito público também. Desde logo, as regras e princípios constitucionais que o conformam, os tratados internacionais que lhe dizem respeito. Mas, muito mais do que isso. Os direitos da Segurança social, do Trabalho, da Administração Pública, fazem aqui a sua incursão. Claro que a opção do legislador por considerando bens comuns os bens adquiridos a título de rendimento do trabalho na constância do matrimónio, mas sem prejuízo de outorgar a sua administração ao cônjuge que os aufere e incluindo, pois, a possibilidade de alienação dos mesmos. Ora este aspecto decorre do sentido jurídico-laboral do salário a que não é indiferente a ordem jurídico-familiar neste ponto. Por outro lado, quando a lei das Uniões de Facto admite o regime de férias, faltas e licenças laborais aos companheiros, mesmo na legislação referente à Administração Pública, estará a olhar de novo a realidade familiar na perspectiva familiar, num segmento em que interesses de ambos os direitos intervêm. O direito da segurança social intervém por sua vez na outorga de pensões de sobrevivência e na definição do respectivo critério a familiares e unidos de facto. E assim por diante.
Concluímos assim que, se uma época existiu em que falávamos com propriedade de um direito laboral da família, securitário social, fiscal, etc., hoje entram em cena direitos com expressão familiar cujo acervo de consequências jurídicas passa em grande parte por outras esferas ou ramos do Direito. Concretizando: a propósito das Uniões de Facto, há com certeza um modelo a que estas têm de obedecer, sob pena de não se subsumirem as situações em questão à categoria. No entanto, uma vez reconhecida a existência da União de Facto, vemos que as suas principais consequências são atinentes a outros ramos do Direito.
Ora, isto não acontecia, não acontece com institutos clássicos, como o matrimónio, a filiação, a adopção… Há uma realidade emergente que entra no Direito da Família por via do reconhecimento de proximidade face às matérias que este contempla. No entanto, uma vez entrado, o cerne dos temas de que cura o Direito da Família a seu respeito abre uma janela gigantesca sobre outras realidades jurídicas. Muitas destas realidades são de direito público e têm a pretensão de assegurar as pessoas que fizeram tais opções de vida no mundo laboral ou em segmentos seus, no mundo da segurança social, da saúde, no plano da habitação.

Indicação de sequência. Justificação.
Muda, pois, o Direito da Família, sofre uma espécie de crise de identidade não assumida. Na realidade, sob a capa de uma aparente certeza que se transmite, a de que é fácil e urgente integrar neste domínio a parte que claramente lhe compete, constitui quinhão seu, alberga-se a realidade inversa: o que falece são os critérios de fronteira entre o que é ainda Direito da Família e aquilo que, sendo direito que emerge de relações de tipo familiar, não tem os problemas próprios do Direito da Família. Mas, ainda se perguntará e não terão sido esses problemas que mudaram, não se dará o caso de ser este afinal o caminho de uma reformulação conceitual e material do conteúdo?
Porque não há como dar por adquirida uma resposta sem o estudo, direi que é este o nosso objecto. Determinar, de entre as matérias incluídas nos programas tradicionais e as matérias que clamam por inclusão, entre o casamento e a União de Facto, tanto na sua expressão legislativa (que o direito da Família toma como filha, não sei se adoptiva, ou mesmo natural) como na expressão de maior força normativa pela qual tantos clamam (casamento entre homossexuais, reconhecimento dos mesmos direitos que os conferidos ao matrimónio), entre o direito dos menores na sua vertente familiar directa, por vínculo de filiação ou de adopção, e a sua afirmação social mais ampla, entre os direitos dos idosos, de novo incluídos no agregado familiar mas analisada a sua situação como pessoas fora dele, há uma resposta específica do Direito da Família que nos leva a dizer: são tudo problemas que integram este domínio jurídico.
É por isso que a forma de constituir Família, por muito que mude a configuração do leque que a nossa ordem jurídica admite (monoparental, convencional; famílias que, regendo-se por outras regras, coexistem no nosso espaço e requerem normas próprias…); por mais que o conceito de filiação apele ao papel activo, interveniente, dos pais, ou antes o deixe deslaçar um tanto; o mesmo em relação aos idosos.
E depois, o influxo, as formas como outros ramos do Direito actuam aqui. Afirma-se crescer a violência dentro da Família? Há logo quem agite a necessidade da intervenção penal. No entanto, dentro do Código Civil, pouca é a importância que o legislador atribui a certos crimes que identifica, contra um dos cônjuges, contra familiares próximos.
A turbulência social e normativa da Família não é uma caixa de desculpa para as indefinições. Pelo contrário, impõe uma atitude interventiva. É a medida desta que implica, por igual, saber quais as fronteiras: dos deveres recíprocos;
Eu reconheço que, se muitas serão as dúvidas sobre a pertença correcta, dogmaticamente certa, ao Direito da Família, este constitui hoje, no estudo universitário, a sede de encontro com os problemas equacionados. E nesse sentido, não creio que lhes devamos fechar a porta do nosso objecto.



Ordem de sequência
Partimos assim para a análise do objecto tradicional da disciplina, tal como o Código Civil o enuncia. Veremos que relações familiares existem e quais são as suas fontes.
O Código Civil recebeu, como foi dito, grande influência constitucional em 77. Sendo assim, era desde logo importante analisar o modelo de Família na Constituição. Mas sê-lo-ia em todo o caso, já que a Lei Fundamental determina, molda os grandes institutos e não teria qualquer sentido proceder a um exame do Direito ordinário alheio a este cadinho da aferição constitucional.
Era tradição chamar a depor, a este propósito a dignidade das pessoas para enquadrar os direitos de todos os membros de qualquer agregado familiar, tal como os princípios da igualdade perante a lei, cujos reflexos são determinantes na estrutura jurídica do Matrimónio ou das Uniões de Facto, como ainda as relações parafamiliares em geral. Mas hoje como já dissemos, acrescem outros pontos. Desde logo, a extensão do regime do casamento, o problema da sua aplicabilidade a outras formas de sociedade familiar. Porque o tema convoca a Constituição, será estudado a propósito dos princípios constitucionais. Antes do regime dogmático incluído na Lei, é um problema constitucional sobre que compete tomar posição.
Seguimos com o estudo do Direito Matrimonial. O casamento e a forma de união heterossexual mais adoptada em Portugal. De forma espontânea, as pessoas optam pelo casamento como forma de institucionalizar relações estáveis e duradouras.
Porém, a existência do Matrimónio Católico, adoptado por muitos portugueses suscita, em função de uma difícil interpretação do texto da Concordata 2004 com a Santa Sé, articulado com o texto constitucional, algumas dúvidas de constitucionalidade, para sectores da doutrina. O tema será abordado, antecipadamente face ao Casamento Católico, nos princípios constitucionais. Refiro a questão da constitucionalidade da norma do Código Civil relativa ao regime do casamento rato e não consumado.
O Semestre passado foi atravessado pela entrada em vigor de (mais) uma alteração ao regime jurídico do Divórcio. Foi um tempo de intranquilidade feliz: de acordo ou contra, uma geração depôs sobre a matéria. E deixou-nos a responsabilidade de continuar. Reputo a questão do maior interesse. Porventura, tanto quanto consegui aperceber-me até agora, não sobretudo pelas soluções que veio directamente impor, mas sim devido aos propósitos legislativos menos evidentes. O que se pretende? Inverter o sentido “ideológico” do Divórcio em Portugal, tornando-o extensivo a mais situações, acrescidamente flexível? Ou por outras razões ainda? Será o tempo de ensaiar uma resposta.
Termina-se com os direitos das crianças, dos jovens, dos idosos.
Os primeiros conhecem uma nova lei, do Apadrinhamento, que se reputa de grande importância e da qual se esperam frutos.
Quanto aos últimos, subsistem, para mim, algumas dúvidas sobre o lugar da sua abordagem temática. Tenho por claro, todavia, que algum deverá existir e que a sensibilidade jusfamiliarista abre as suas portas à compreensão dos institutos que aqui se encontram. Tentar-se-á, nesta sede, olhar o direito dos jovens nos segmentos que nele me parecem merecer mais destaque: a questão dos jovens em risco e muito especialmente, dos jovens em risco de delinquência ou de serem vítimas de crime.

III

O objecto do Direito da Família.
Da proximidade entre as formas juridicamente contempladas à tese da heteronomia; Direito da Família e direito das famílias.

1. Questões preliminares.
Procuramos agora o objecto jurídico da Família. O problema é complexo e é-o em crescendo. Por um lado, há um substrato cultural proveniente da realidade da vida que conduz a uma corrente de opinião maioritária a este respeito, como conduz por igual a uma visão muito partilhada sobre o sentido das realidades que, existindo na lei, se afastam dos paradigmas tradicionais. A Família, para a generalidade das pessoas, não estará muito distante da fórmula quase poética com que um autor americano a retrata. É o lugar onde nascem os filhos e se enterram os








maiores, um lugar inconfundível com qualquer instituição que se mostre transcendente ao plano da intimidade que biológica e culturalmente construímos.
E esta Família sulca-se, na Lei, por dois conceitos que retratam instituições indispensáveis ao nosso plano de abordagem. Penso no Casamento.
Depois, com o tempo, recebeu a ordem jurídica portuguesa novos parâmetros, que hoje se acolhem nas Leis 6 e 7 de 2001, de 11 de Maio. As Uniões de Facto adquirem importância crescente: aumentaram um tanto e sobretudo, alargou-se o debate sobre a sua legitimação. Esse debate, permeado de argumentos de vária ordem, é também (para nós, é essencialmente) um debate jurídico.
Quem, partindo de um núcleo familiar, constrói o seu próprio paradigma, por aproximação ou distanciamento à realidade matriz, opta em Portugal pelo Casamento. O Casamento é o modelo a partir do qual se reproduz a institucionalização dos padrões de vida e de afectos entre nós. A generalidade dos portugueses não prescinde dele, quando opta por laços de união mais intensos.
Quando se pondera o instituto do Casamento vem à ordem do dia o conceito de Parentesco.
E o mesmo vai suceder a propósito da União de Facto, sustentada por uma afectividade em que a libido tem um papel preponderante e maioritário.
À primeira vista, não se vislumbra qualquer relação directa entre ambos, Casamento e Parentesco, e menos ainda entre a tríade que engloba Parentesco e Uniões de Facto.
Mas logo nos damos conta de que não é assim. Há relações de Parentesco que condicionam pela negativa Casamentos, Uniões e Facto protegidas por lei. Diríamos, que as inviabilizam à luz do Direito. Este, desde já, um ponto essencial de atenção.

E assim se justifica a necessidade de os não separar nesta fase; de os chamar a depor conjuntamente.

O Parentesco (artigo 1578º CCivil) traduz-se num vínculo familiar. A lei define-o como o laço que liga duas pessoas que descendem uma da outra, ou ligadas por um ascendente comum. Em todo o caso, a sua chamada neste ponto da exposição afigura-se essencial. Pois o parentesco decorre as mais das vezes de uma relação matrimonial ou familiar de outra ordem.
Nasce-se por regra no seio duma União matrimonial ou de Facto. É a circunstância de sermos filhos, netos, irmãos de alguém que nos confere o direito a perceber uma inserção no núcleo por eles integrado, a receber educação, alimentos. Quando a Família é desconhecida, ou rejeita um dos seus membros carentes (idoso, criança) a devolução do problema à normalidade possível passará pela intervenção das autoridades e deverá ser, por estas, sindicada subsequentemente.
Por outro lado, cumpre ter em conta os obstáculos à constituição de relações matrimoniais que decorre de um parentesco próximo. Por razões eugénicas, de moral social, pais e filhos não casarão, nem receberão reconhecimento protector das uniões de facto que porventura estabeleçam entre si. A mesma regra vale para todos os parentes na linha recta, que em breve identificaremos.

O Parentesco na pré-compreensão das instituições familiares
Indo mais longe, veremos adiante que muitos outros direitos decorrem e se preterem pelo parentesco, de acordo com estas balizas apontadas, e que são muitas vezes fundamentadas no decoro (moral social). Estou a pensar no casamento entre tio e sobrinha (colaterais no terceiro grau, como também veremos), vedado por razões que não são apenas estas, de ordem biológica, mas que exigem ponderações advenientes do laço de sangue, aliás muito próximo.
Por outro lado, o Casamento é a fonte mais ampla de novas relações de parentesco, sem prejuízo de o serem também as formas de União não matrimonial que a lei contempla, como em breve veremos. Mas decorrem mais formas de parentesco do Casamento. Pela tradicional vocação de estabilidade da relação matrimonial é no seio dela que se desenvolve o núcleo mais alargado de família; que as gerações familiares se entrelaçam e identificamos filhos, avós, netos, sobrinhos…
Vejamos então o conceito de Parentesco um pouco mais.
A lei define-o, dissemos, como o vínculo que une duas ou mais pessoas que tenham um progenitor comum. Na contagem dos graus de parentesco, que agora antecipamos rapidamente e adiante estudaremos, acabaremos por concluir quanto é essencial a determinação do seu carácter ascendente ou descendente. E quanto é determinante o critério da contagem dos graus.
[O esquema da relação vertical a que se acaba de fazer referência identifica-se em primeiro lugar (primeiro esquema), entre os gráficos que se apensaram ao texto desta Aula. A possibilidade de o fazer deve-se à utilização de esquemas utilizados para este efeito em vários Manuais que, contemporâneos de uma Família mais alargada do que a dos nossos dias, concediam ao tema uma grande relevância. E devo-o muito especialmente à ajuda empenhada dos meus alunos…]
Parentesco na linha recta descendente: estabelece o relacionamento entre pais e filhos, avós e netos, bisavós e bisnetos…Há sempre um progenitor de que todos provêm. A contagem do grau depende do número de pessoas relacionadas, omitindo um dos progenitores. Por esta via concluímos que pai e filho são ascendente/descendente no 1º grau; bisneto/bisavô ascendentes/descendentes no 4º grau.
[Na “árvore” apresentada no último gráfico, que combina várias modalidades de parentesco, encontramo-lo de novo].
A situação reconfigura-se quando não existe uma cadeia horizontal de descendência, mas todos os parentes referenciados provêm de um mesmo ascendente comum.
Assim, se A e B são filhas de C, A e B não estão “em cadeia” na relação familiar. No vértice, sustentando a ligação entre as duas, está o/a progenitor/a C. A e B são colaterais no segundo grau: subo a linha, contando com A (1º elemento da cadeia), tenho em conta B (2º elemento) e não procedo à contagem de C. Se porventura A tiver um descendente, D, a relação entre este e B, colateral em 2º grau de A, é de colateralidade no 3º grau. E o processo de contagem foi o mesmo. Alargando, imagina-se a relação entre os descendentes directos de A e B (D e E). São estes, colaterais no 4º grau. Se recorrermos à linguagem corrente, diremos que tio e sobrinha, referidos supra, são colaterais no terceiro grau, mais um grau, portanto, face à colateralidade dos irmãos. Diremos que os “primos direitos” da linguagem corrente são colaterais no quarto grau. E por diante…Sendo que em regra a lei permitirá a produção de efeitos jurídicos até ao 6º grau da linha colateral, ao passo que na linha recta esses efeitos não se cerceiam nunca. Há casos de produção mais ampla de efeitos na linha colateral. Mas serão vistos em sede própria, sob pena de uma grande e inútil dispersão nesta fase.
[Os esquemas que surgem em segundo e terceiro lugar reportam-se, claro está, a situações de colateralidade].
Encontrarão muitas vezes exercícios que pedem identificação do tipo e grau de parentesco entre familiares que a linguagem comum refere por nomenclaturas variadas: cunhados, segundos primos, terceiros primos, concunhados…Não se trata, contudo, de linguagem legal. Penso que é mais útil para essa clarificação um dicionário da Língua Portuguesa. A nós, interessa-nos balizar a situação real das pessoas na família e depois, proceder ao enquadramento jurídico. A minha geração ouviu, há muitos anos, a linguagem dos 2ºs primos, dos sobrinhos netos… Acredito que os jovens cuja socialização não ocorreu em famílias alargadas terão outro tipo de interesses familiares.
A relação de filiação, sempre importante, ocupa o centro da atenção legislativa e isso corresponde à realidade. Dentro de um enquadramento matrimonial ou outro é uma relação que suscita a emergência de direitos e obrigações a todos os progenitores. Não é a circunstância do seu enquadramento legal, é a circunstância da ligação familiar que os torna titulares de direitos e deveres fortes em relação aos descendentes. A Constituição impõe este reconhecimento do Menor e dos seus direitos à margem de factores relacionados com a vida e opções dos pais Artigo 36º CRP, que se estudará adiante, a propósito da Família na Constituição). É da sua dignidade e interesses que cura o legislador.
Temos, pois, que a uma instituição familiar dominante, o Casamento, correspondeu a moldagem essencial do vínculo de Parentesco e de tal modo, que muitos aspectos se repercutem nas outras realidades familiares.
Também daqui decorre a importância destas instituições, que agora abordamos.
A União de Facto, consagrada hoje na Lei 7/2001, depois de um processo de constituição algo turbulento, dá testemunho de que é assim.

Também a Afinidade, na pré-compreensão das relações familiares

Não é possível o matrimónio entre afins na linha recta. Esta regra de parca aplicação deve contudo ser mencionada nesta sede. Além do mais, traz à colação a regra segundo a qual a afinidade cessa pelo Divórcio e constitui alteração de monta entrada em vigor com a Lei do Divórcio. Afirma-se a existência de Afinidade pelo vínculo que liga um cônjuge à família do outro, operando a contagem dos graus e linhas nos termos usados para o Parentesco.


Direito da Família ou Direito das Famílias?
Introdução
Colocamos então o problema central neste eixo da constituição das relações familiares por casamento, união de facto ou ainda, segundo a Lei 6/2001. Saber se é linear a verificação de que procedem de um denominador comum ou a sustentação de que entre todos haverá diferenças qualitativas importantes. A sustentação de que são formas de relações familiares ou antes, de que se trata de realidades desprovidas da necessária conexão para um tal entendimento. Enfim, uma outra alternativa. Saber se, posto que se rejeitasse a subsunção de todas elas a um denominador comum de Direito da Família, era ainda possível concluir que o legislador assentara num entendimento polissémico da realidade familiar, de tal modo que em vez de um direito da família, capaz de conglobar as relações que nos surgem no Livro IV

da Família, nas Leis 6 e 7/2001, teríamos antes um direito das famílias, cada uma dotada da sua fisionomia autónoma, mas sempre reconhecidas como realidades com a dignidade própria de um instituto com o cunho familiar.
Ex: Tentemos ver através de uma situação da vida o alcance que a diferença, que à primeira vista é tão só conceitual, pode assumir.
Para quem se proponha criar um novo modelo legislativo sobre Uniões de Facto atenta ao modelo do “direito da família”, continuará a estruturar normas que, sendo inclusivas de pessoas do mesmo sexo, situação que a actual Lei prevê, ainda assim marque diferenças entre casais homo e heterossexuais no domínio da titularidade de direitos/deveres, direitos parentais. No caso actual, a possibilidade de adoptar menores está vedada a estes casais. Representaria uma evidente mudança de paradigma familiar que passasse a acontecer de outro modo, mantendo-se em simultâneo o casamento tradicional.

O Direito da Família, como aqui se sustenta, exprime uma leitura retrógrada?

O sentido do paradigma “direito da Família” na ordem jurídica portuguesa.

À primeira vista, fica-nos a ideia de que recentrar a análise dogmática no direito da família tradicional pode significar que desconsideramos outros caminhos, rumos que entretanto se empreendem.
O objectivo está muito longe de ser esse. O olhar que se tentou usar para compreender as exigências de uns sectores, as reticências de outros, entre nós, não significa cercear a continuação; era inútil, em última análise ilegítimo.
Continuamos, sim, a olhar a Família à luz de um modelo tradicional. Talvez isso corresponda a uma tentativa de estar ao lado de muitos, na luta por um modelo forte, o que rege no essencial a ordem jurídica. Vejo, aliás, a questão em grande parte por esse lado.

Porém, a situação mais marcante diria respeito, entre nós, à proliferação de casais com tradições diferentes, resultantes de etnias diversas. Como agiria a lei? No sentido da aceitação? Teríamos um direito das famílias.
Verifiquemos então os traços da dogmática geral de cada figura chamada a depor.

2.O Matrimónio

A Constituição é o baluarte da sua consagração, o que importa desde logo uma referência que se erga a partir dos seus alicerces.
Não nos permitirá ela, contudo, avançar muito em sede de densificação do conceito legal de casamento. Embora exista doutrina em sentido contrário, que verbera a índole aberta e susceptível de abarcar outras tipologias de casamento para além da lei ordinária, a verdade é que sempre se confronta essa discussão, que depois faremos, com o problema de saber em que medida esta eventual ampliação do conceito para além dos limites em que a lei ordinária (Livro da Família, Código Civil) o recorta é injuntiva face ao legislador ordinário, ou representa um quadro de referência mais amplo das suas possibilidades de actuação legiferante. Um quadro que se mostre permissivo de outros modelos de casamento mais amplos, assentes em pressupostos que rompam o espartilho do actual regime vertido no Código Civil.
Olhemos, pois, o recorte do Código Civil.
O artigo 1575º parece muito conclusivo a este respeito.
Afirma que o Casamento:
_ É um contrato;
_ Celebrado entre pessoas de sexo diferente;
_ que constituirão através dele uma “plena comunhão de vida”;
_ celebrado nos termos e disposições deste código.

É a norma tão clara quanto parece?
Procuremos sindicar cada uma das afirmações assinaladas.
“O casamento é um contrato”. Qual a dimensão de uma asserção como esta? Responderia, antecipando uma discussão que abordaremos, como disse, mais tarde. Creio que o é, e creio sobretudo que a lei portuguesa não permite uma sua consideração diversa. A tese, aventada por certos autores, de que os afectos se não contratualizam, parece-me deslocada nesta sede. Não é argumento consistente. Pode aceitar-se um projecto de vida do qual decorre abdicar de um modelo de vivência e optar por outro, tenha lugar sem que isso implique a preclusão da liberdade ou do direito à liberdade. Diria que a consideração do homem como “ser com os outros”
(de raiz multimoda no pensamento, sustentável através da filosofia tomista, sobretudo pelos fichteanos, mas em bom rigor desenvolvida por todos os cultores do idealismo kantiano. Aliás, presente, creio, em Kant, na tese segundo a qual o númeno é um arquétipo, enquanto o homem fenoménico surge após o contrato social e não dispensa a sua compreensão os laços de reconhecimento e interacção recíprocos)
é, alias, incompatível com outra conclusão que não passe pela compressão natural de direitos que, pela sua natureza, apenas se exprimem através de um processo de concessão permanente. Não ver isto é assentar num individualismo totalmente destituído de suporte na realidade. Enfatizo: nem o mais empedernido Kant, na sua tese “numénica”, vai por aí; coloca, lado a lado com os postulados da razão pura, a relacional idade como postulado da razão prática. O contrato de intimidade é afinal um contrato de socialidade. Esquecer isto é esconder a cabeça ao argumento que a realidade impõe. Um erro sem saída.
A vida que exprime nas suas relações formas de intimidade é necessariamente concessiva de um modelo incompatível com a titularidade estática dos direitos e deveres de cada um.

_ o casamento é uma relação entre pessoas que nos termos da lei pretendem empreender uma plena comunhão de vida.
O conceito é bastante obscuro, creio. Pois, se por um lado terá visado afastar a obrigatoriedade de uma relação amorosa sexual, moldada no cadinho daqueles ditames que a Igreja Católica estrutura para o Matrimónio enquanto sacramento, a verdade é que não contrapôs claramente um sentido. Antes admite vários. Haverá casamento válido desde que o projecto de vida comum implique vida conjunta, lealdade recíproca. E se é certo que a ligação sexual e o intuito procriativo estarão presentes na maioria dos casos, não hão-de estar necessariamente. E porque esta porta que agora se abre, relativamente ao que era antes imposto pelo Matrimónio católico, é muito ampla, o seu carácter problemático ergue-se como um tributo à plasticidade da nova figura.
_O casamento obedecerá aos termos das disposições deste Código.
De novo, a infixidez assumida marca esta última passagem do excerto. Significará que não pretende agora o legislador avançar mais sobre o sentido do casamento, objecto e fim. Que admite a sua evolução de acordo com princípios e regras que a lei venha a considerar dignas de contemplação doravante.
A verdade, porém, é que assim abre a lei a porta a qualquer regulamentação, o que vale por dizer, a toda a espécie de alterações ao regime em vigor, ainda que adulterando a sua configuração básica. O limite à regra é longínquo no horizonte: não poderá ser inconstitucional. Mas pode ser derrogadora do matrimónio na sua actual configuração. Este aspecto, que se previu em 1977, está bem patente na distância profunda que marca a precariedade, ou fragilidade, progressiva, da relação matrimonial desde então até à entrada em vigor da actual Lei do Divórcio. A partir dela, não só o fim do casamento pode ocorrer por vontade das partes findo o mais curto período de vigência da sua história, como termina tendo por consequência, entre outras, uma alteração ao regime de bens que pode determinar uma perda patrimonial expressiva face às expectativas que se verificavam no momento da celebração e durante todo o decurso da relação pessoal até esse momento. E, se dúvidas podem ocorrer acerca da opção no plano da constitucionalidade, cumprirá em todo o caso conceder na certeza de que é uma possibilidade anunciada pelo próprio conceito legal de casamento.
Deixámos para último lugar a diferença sexual que a lei impõe. Diria que não constituía tema, no momento em que se reaprecia o conceito matrimonial, a questão da união legal entre pessoas do mesmo sexo. Indo mais longe, afirmar-se-á que tema central era então a igualdade social e o seu reconhecimento entre pessoas de sexo diferente. Por esta, como se viu, se clamara, esta se consagrara. O problema de saber em que medida seria legítimo o casamento de pessoas do mesmo sexo colocava-se, decerto, porque o tema tem a mesma universalidade e a mesma recorrência. Mas não tinha na época a amplitude de discussão ou mesmo de preferência na opinião pública.
Não deixarei de recordar um tema emblemático da discussão jurídica que agora se fazia. Tratava-se de recordar Ana de Castro Osório e a sua obra.
Com a implantação da República, no dealbar do século XX, a escritora Ana de Castro Osório, fortemente implicada na preparação do regime republicano, viera a publicar O Direito da Mãe. É uma obra de leitura simples. Conta a saga de uma jovem mãe de família pertencente aos meios burgueses que vivia o drama de compartilhar a vida com, um companheiro cujo espírito devasso lhe trouxera doenças venéreas; doenças que contaminavam agora a prole. Ela, a mãe de família, pretendia salvar a família, mas debatia-se com uma sociedade hostil e uma lei contrária aos seus intentos. Afinal, a Lei do divórcio, filha dilecta da República, salvara a situação.
Por 1977 a obra é recordada, mas cumpre fazer uma advertência. O Código que sai da Reforma não deixa de considerar esta situação entre os erros essenciais sobre a pessoa do cônjuge, caso a situação existisse já quando se contrai o casamento e fosse desconhecida da outra parte, por motivos compreensíveis. Só no caso da superveniência do problema marital se estaria ante uma situação reclamando a aplicação do regime da extinção da sociedade conjugal através do Divórcio.
Mas o facto de a discussão trilhar por este caminho é bem reveladora dos objectivos intrínsecos ao debate sobre o casamento e seu conteúdo. A distância a que a sociedade portuguesa se encontrava do debate actual, inclusivo do tema da homossexualidade, grita neste silêncio que rodeia o tema.
Concluímos, pois, que o Casamento, enquanto conceito legal, é frágil na construção e efeitos precípuos.
O que o mantém então? A pré-compreensão social, sem dúvida. Uma ideia que se sobrepõe às ambiguidades e às lacunas legislativas em nome de experiência, vivência e sentido dos âmbitos de mudança socialmente desejados ou pelo menos tolerados.
Ao fim e ao cabo, exprime-se aqui a capacidade de coesão, o potencial de tolerância numa sociedade em que a ruptura de concepções, ideologia e hábitos sociais entre as várias classes sociais, entre católicos e laicos, se erguia num núcleo essencial do instituto e rejeitava a hipótese de mutação radical.


3.Do casamento a outras formas de Família

Ora esta “força atractiva para o casamento” é determinante no processo de compreensão da relação que vem estabelecer-se entre ele e as relações familiares que a Lei paulatinamente integra.
Na génese destas relações não resultantes do casamento mas juridicamente produtoras de efeitos está um preceito da Reforma de 77, o artigo 2020º. Nos termos deste, o unido, pessoa solteira, viúva ou separada judicialmente de pessoas e bens terá direito a perceber alimentos da herança, posto que deles prove necessidade e os venha reclamar. Em linguagem sucessória diremos que não é este unido de

facto um herdeiro legitimário ou forçado, ou sequer um legatário, mas um mero credor da herança.

Ex: Suponha-se que A morre e deixa, nos termos da lei em vigor ao tempo, alguém com quem vivera em regime de união sem contudo ter esta sido legalmente configurada. Em tal caso, o unido de facto tem direito a perceber alimentos da herança, se bem que dentro das suas necessidades e não, em proporção adveniente da realidade da herança, do seu montante.

A norma do artigo 2020º, que conheceria forte reacção no seu tempo inicial, só anos depois recebeu um impulso decisivo, com o diploma de 1995. Decisivo, porém, no sentido de enfatizar a importância das uniões de duas pessoas, de sexos diferentes ou do mesmo sexo, revelar-se-ia a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio. Foi então que pela primeira vez se institucionalizaram, de forma sistemática e mais ampla, tipologias de direitos de que seriam titulares os sujeitos de uma União de Facto protegida.
Tanto quanto sucede com o artigo 2020º, a Lei continua sendo aqui rigorosa nos pressupostos de reconhecimento dos direitos envolvidos. Mister é que os unidos de facto estejam vivendo em comum há pelo menos dois anos. Se compararmos hoje o tempo legalmente requerido para que ocorra uma acção de divórcio litigioso, veremos que estes dois anos parecem marcar o legislador, que, afigurando-se normas algo instrumentais, técnicas, ao serviço de uma segurança exigível neste âmbito, vemos que o legislador se obstina nestes dois anos, porventura, à míngua de um critério equitativo para o feito. E apenas por esse facto, a saber, ausência de ponderações transportáveis para um discurso justificador racional, chamo a atenção para a persistência numa norma técnica. Perguntando se será este o melhor caminho; sobretudo, se é adequado o processo de legiferação nesta matéria que sobretudo requer justificação de pendor valorativo.

Ex: Dois anos, afirma a lei. Porquê? Não seria hoje mais simples a contagem de um prazo inferior, posto que se provasse ter a União em causa sido consistente, assumida? Imagine-se a hipótese de um par idoso, que vive em comum o último ano de uma vida marcada, nessa fase derradeira para um deles, por fortes emoções, decisões complexas…Qual a justificação dos “dois anos”? Probatória?
Não seria, aliás, de devolver à jurisprudência a margem de aplicação, decorrido o primeiro ano?

Com efeito, a lei das Uniões de Facto possui os seus traços de diferenciação:
_ O processo de constituição é informal e também o será o processo de dissolução. Por isso, a prova do momento de constituição e extinção é tão difícil; por isso suscita tantas dificuldades a sustentação do decurso de dois anos, pedra angular no processo aquisitivo dos direitos decorrentes da União, sobretudo por morte de um dos seus membros (artigos 2º, 3º, 8º);
_ A União de Facto aceita-se entre pessoas do mesmo sexo (artigos 1º, 7º). Os direitos, porém, sofrem aqui uma compressão. Sucede que os unidos do mesmo sexo não poderão adoptar (de novo, artigo 7º);
_ Os direitos que a Lei consagra são sobretudo de natureza social e laboral: gozo de férias em conjunto, com articulação dos correspectivos mapas para o efeito, direito à casa de morada de família, finda a união, posto que prove o membro abandonado ou sobrevivo não possuir outro local de residência e durante período que a lei determina, como igualmente determina as condições do exercício do direito (artigos 3º, 4º, 5º, 6º).
A Lei não apresenta um critério de determinação do grau de proximidade entre os unidos, a sustentar a relevância e a própria existência da União. O critério, em todo o caso, decorre da ideia que percorre a Lei 6/2001, sobre as Uniões Parafamiliares e bem assim, o espírito básico do casamento. Trata-se de um projecto de vida em intimidade e partilha material e espiritual, não de carácter fortuito antes com foros de persistência. Não serão concebíveis, naturalmente, uniões de facto sobrepostas, cumulativas, por parte da ou das mesmas pessoas. O legislador dispensa referências ao ponto restritivo, já que os princípios gerais de Direito balizam esta proibição e a sustentam, aliás, do mesmo passo.
Chamo a atenção para este aspecto, aliás cada vez mais complexo. Será que poderemos apreender os traços jurídicos da União de Facto através de um conjunto de deveres pessoais entre os unidos?
Uma hipótese que acode é a comparação com o casamento. Dir-se-ia então que talvez esses deveres pessoais do casamento fossem o padrão a ter em conta neste outro caso, ainda que com uma exigência de menor intensidade (um dever de respeito”menor”; um dever de assistência “menor”) ou então, suprimidos alguns e deixados sobreviver outros.
Mas não creio. A contra-imagem da União de Facto não é o Casamento. Justamente, une-se de facto, as mais das vezes, quem pretende uma alternativa ao casamento e não um casamento com…”capitis diminutio”.


Comparações entre os vários tipos de instituições familiares

Mister se torna pois estabelecer comparação entre os núcleos essenciais dos direitos e deveres consagrados para as situações matrimoniais e as outras, a fim de poder concluir acerca da afinidade essencial entre os agregados a que aludimos e a lei contemplou. Afora diversidades evidentes e bem vincadas, compete apurar acerca da existência de um estro de comunicabilidade com que sempre se considerou inerente à união entre duas pessoas e que o casamento exprimia sem suscitar discussão.
Façamos então uma comparação das diferenças essenciais entre casamento e uniões informais e procure-se um tertium comparationis.
_ a mutação relativa à possibilidade de inclusão de uniões entre pessoas do mesmo sexo, que irrompe na Lei 7/2001. Antes não era apenas omissa, representava um caminho claramente ao arrepio dos princípios sociais vigentes e dominantes;
A diferença constitui ponto obrigatório de reflexão. Por um lado, a possibilidade de miscigenação de duas formas de sexualidade paradigmaticamente distintas suscita a ideia de que, diferentemente da opção legislativa de 77 e suas antecessoras, se faz agora incursão num mundo de afectos ou pelo menos de formas de intimidade em que a libido de alguma forma se deixou esbater. Não terá pelo menos uma presença dominante. Assim, o legislador permite um modelo de convivência nos antípodas da sua manifestação habitual, tal como acentua a precariedade das relações íntimas entre duas pessoas.
O tipo de afecto que a lei agora reconhece não tem o mesmo condicionamento biológico nem a raiz cultural antes conhecida. A sua consideração numa mesma ordem de padrão familiar, mesmo em sentido amplo, inicia um processo de alteração do núcleo familiar. Por outro lado, marcando pontos numa direcção de sentido inverso, a proibição de adoptar já referenciada e imposta a casais com esta fisionomia indicia a sua desconsideração como lugar de integração de seres em processo de desenvolvimento, identificação social.
Mas não é líquido que a ordem de argumentos do legislador nesta sede proibitiva da adopção em tais casos seja um argumento no sentido de afastar do enredo familiar os tipos de instituições em questão.
Não se afigura argumento no sentido de irradiar do modelo familiar as famílias homossexuais uma tal proibição.
Por um lado, o afastamento da adopção que a lei impõe pode_ é argumento sustentável _ atender apenas ao interesse dos menores; pode representar uma medida de cautela, preventiva, face ao seu direito ao desenvolvimento pessoal. Ou seja: na dúvida entre a perfeita sanidade decorrente de uma situação assim e perigos eventuais para a estruturação da personalidade, o legislador opta pela prudência de uma solução “típica” e não entrega o menor a um quadro familiar que duvida potencie malefícios, ainda que subtis, à estruturação da criança, do jovem. Isto não significará, contudo, a negação da intimidade da relação em causa e muito menos, a sua homologia com as formas de convívio amoroso ou afectivo tradicional. Também marido e mulher poderão perder o exercício de responsabilidades parentais sem que isso questione a sobrevivência do casamento que celebraram.
Aliás: veremos que a procriação não é escopo do casamento. Nem em idade fértil, nem em qualquer outra fase da vida…O legislador não rodeia o problema de eterna carência de solução, relativo ao casamento de pessoas idosas (um forte argumento esgrimido, veremos, pelos homossexuais que clamam pela semelhança entre a sua situação e esta outra).
_ A vida em União de Facto configura-se juridicamente como um alter ego da vida matrimonial. A celebração despe-se de solenidade, prescinde de publicidade. Os órgãos públicos não estão aqui presentes. E isto transforma o decurso de dois anos, o prazo necessário, como vimos, para o seu carácter legal protegido, uma verdadeira probatio diabólica.
É curiosamente a Lei sobre Medidas de Protecção de Pessoas que Vivam em Economia Comum a que mais se aproxima da explicitação do critério fundamentador. Afirma a necessidade de “uma vivência em comum de entreajuda e partilha de recursos” a criar o núcleo das duas figuras que então irrompem.
É certo que nesta última situação da Lei nº 6, os membros do agregado não têm uma relação afectiva do tipo indiciado no caso das Uniões de Facto. Mas em todo o caso a linguagem dos afectos nasce legislativamente, depois do Livro da Família e fora do seu âmbito, aqui.
Pergunto, a terminar: e a diferença entre direitos e deveres na União de Facto e no Casamento?
A resposta afigura-se linear. Sendo a União de facto uma realidade institucionalizada que se baseia na vontade de construir um agregado familiar menos forte nos seus efeitos do que o agregado matrimonial, compreende-se que haja reflexos desta opção em todos os aspectos. E



os pessoais terão aqui uma proeminência evidente. Deveres como o de coabitação, fidelidade, cooperação, assistência, respeito, serão inerentes à relação dos unidos de facto; porém, com uma densidade inferior. Situam-se entre os deveres gerais de urbanidade de que alguns deles decorrem e os deveres conjugais, mas situam-se num plano diferente, mais esbatido. Quando se devam considerar quebrados? Sempre que o comportamento em apreciação manifeste forte probabilidade de ruptura do laço construído. Esta a diferença fundamental face ao casamento. No plano daquele, admite-se que mesmo após uma ruptura de deveres tenha o casamento condições para se manter, cabendo ao eventual interessado em intentar acção de ruptura a prova de que o comportamento foi não apenas episodicamente lesivo, mas destrutivo, da sociedade conjugal. Em sede de União de Facto, a destruição da mesma presume-se, ante terceiros, logo que se manifestem comportamentos que indiciem desconformidade com os deveres básicos. Pois o respeito de que a lei rodeia a vivência no recato de uma esfera privada tem como contrapartida que, a nível público, valha tudo aquilo que os fautores da União deixam transparecer. A segurança jurídica sustenta-se nesta exigência.





Aula nº 4

O problema da extensão dos efeitos jurídicos das Uniões de Facto na doutrina actual

Introdução
Poderá afirmar-se que a nossa ordem social aceita as regras legais em vigor em clima de identificação, sintonia com o seu conteúdo. A discussão marca a diferença entre aceitar ou não um regime mais denso para as formas de união homossexual. Não se questiona de um modo geral que produzam efeito as Uniões de Facto, assim como os efeitos que produzem.
Mais: os debates recentemente ocorridos no campo político, social, jurídico, deixaram transparecer uma mensagem de receptividade, por parte dos representantes das forças partidárias com legitimidade conferida para o efeito, de propor legislação mais abrangente, mais ambiciosa neste plano.
Chamo a depor, a título de exemplo, uma das grandes diferenças. Verifica-se no plano sucessório. O unido de facto sobrevivo não é sucessível, no sentido rigoroso da expressão; e mesmo o seu entendimento enquanto “legatário legítimo”, que mais adiante ponderaremos, a propósito das relações entre os direitos da Família e Sucessões, mais não consegue do que deixar transparecer a enorme debilidade da sua situação após a morte do companheiro.

Ex: Suponhamos que A vivia com B, que entretanto morre. A União de Facto durou mais de dois anos e a casa de morada pertencia ao falecido.
De que direitos em relação a essa casa de morada é A titular?
E deveremos considerá-lo um sucessível de B?

Diferentemente do cônjuge, ele não surge como herdeiro. Recebe coisa certa (um usufruto da casa de morada) e datada. A expressão que procura dignificar a sua situação, a adjectivação do legado como legítimo, colhe efeitos ao arrepio desse seu propósito: há, de facto, voluntarismos que se mostram contraproducentes e este é decerto um deles. Legatário legítimo de segundo plano? E em termos práticos; ganha-se alguma coisa com isso?
Já a integração deste unido de facto entre os sujeitos elencados no artigo 496º do Código Civil se afigura, não só mais fácil, como de uma justiça evidente.
Ex: A, unido de facto a B, assiste ao acidente de viação em que este morre, o que lhe provoca grande transtorno, e, na sequência do evento, solicitar ressarcimento por danos morais invocando o preceito, quid júris?

Aqui, em sede de indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima, o direito cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e a vários outros parentes, seguindo uma lógica de proximidade (linha recta; proximidade na linha colateral). De fora está o unido de facto. Deveria ser assim? A jurisprudência já abordou o problema. Creio que o sentido da norma permite incluir aquele que viva em situação idêntica à do cônjuge, integrando-o por extensão analógica nesta cadeia do artigo 496º. Afinal, o ponto essencial que aqui se contempla é o ressarcimento que o Direito reconhece como direito, àqueles cuja proximidade advém da relação familiar e sofrem a perda do ente perdido. Este critério de justiça que chama a depor a afectividade não terá como afastar o unido de facto sobrevivo.
Claro que uma interpretação estrita do texto da lei não iria nunca por aí. Trata-se de um tema polémico, juridicamente. As premissas enunciadas são apenas um enunciado dos tópicos da argumentação.
Por último, aventa-se um argumento de não menor interesse. A par deste critério de justiça aventado, coloca-se a segurança de terceiros, as expectativas que incidem sobre os obrigados a indemnizar. Ora, pensando a defesa do seu direito, seremos tentados a concluir que, não colhendo a lei os unidos de facto nesta sede, não se justifica que o venham a ser, onerando quem não contava com este acervo de credores.
Mas, ainda assim, creio que corre a melhor solução do lado do alargamento dos destinatários do direito ao ressarcimento. Pois não se admite com “pré-aviso” quem é destinatário do direito de compensação, mas apenas se cura da existência deste direito dentro de um acervo aliás amplo de contempláveis.
As situações referidas são paradigmáticas da dificuldade do enquadramento legislativo do regime da União de Facto perante outros institutos legais. Não pretendem, como se frisou, esgotar o problema, mas demonstrar em todo o caso que ele é hoje muito relevante, identificando alguns dos seus ponto

O pensamento da Igreja Católica sobre as Uniões de Facto nos primeiríssimos anos do milénio
Coloco a questão porque ela corresponde a uma evolução sensível verificada nos últimos anos. Com efeito, já neste milénio a Igreja Católica verberou contra as Uniões de Facto. Os textos de reflexão que se publicaram não se dirigiam a legislações concretas. Visavam o problema em termos ecuménicos e alertavam para os, em seu entender, malefícios daí decorrentes.
Chamo-vos a atenção para duas objecções que são importantes do ponto de vista da argumentação jurídica.
O primeiro respeita à filiação. Em nome dos direitos dos filhos, menores, sustentou o pensamento católico que a União de Facto redundaria numa violação da sua dignidade, já que os privaria do processo de desenvolvimento no âmbito da família socialmente legitimada pelo reconhecimento social e capaz de se assumir como tal.
E mesmo aí onde o argumento não surge com este sentido enfático, enunciam vozes de grande relevo argumentos em prol da necessidade de dotar a família cujo processo de constituição obedeceu a critérios formais. João Paulo II escreveu páginas belíssimas e de grande valor teórico e argumentativo sobre o ponto.
Creio que o argumento é “forçado”. Parece-me, com efeito, que a dignidade humana e seu reconhecimento não dependem de uma identificação do modelo social em que a educação é conferida. Dependerá, sim, da circunstância de ser tal educação conferida, num quadro social adequado, que poderá assumir perfis variados. Trata-se de planos diferentes, outorgar educação e enquadramento institucional desta educação; reconhecimento do direito dos menores a um ambiente que confira meios salutares de desenvolvimento e identificação estrita desse meio com a família em sentido biológico.
Mas o argumento fulcral aventado desenvolve-se, creio, noutra direcção. Trata-se da suspeita da consistência (pela tendencial precariedade; pelo circunstancialismo muitas vezes eivado de factores pontuais e que rapidamente correm o risco de se diluir) das Uniões de Facto, por regra comparativamente superior às fragilidades do casamento.
A realidade portuguesa mostra, em todo o caso, que opta pela União de Facto um acervo importante de pessoas que ultrapassou a idade fértil. Que nos casos em que isso não acontece, a opção é sustentada em muitos casos por uma decisão que se enquadra em termos de maturação e até cultura que levam a presumir a reflexão, ponderação acima de muitas outras situações. Enfim, que os casos de pobreza e sobretudo miséria que nos antípodas destes, ditam muitas Uniões de Facto, não veriam alteração nas consequências sobre a educação dos filhos só através da mediação do matrimónio.
Afigura-se, enfim, muito problemático este esgrimir do argumento de que a União de Facto não só não possui um espaço ético próprio, como ainda, que redunda, nos casos em que se verifique procriação no seu seio, uma violação dos direitos do menor assim nascido.
Há um espaço ético próprio para a UF. Decorre do direito à liberdade, do direito a não casar, posto que assim o entenda exercer qualquer pessoa. O casamento é uma opção sacramental, não é um dever implícito a cada católico. Quanto aos filhos nascidos em União de Facto, não impenderá sobre eles, num Estado que não sustente esquemas férreos de censura, o anátema da origem. A lei portuguesa obriga, como adiante se verá, a que a circunstância que rodeia o nascimento seja depurada, no acto de registo, de qualquer explicitação das circunstâncias que a envolveram.

O caminho das Uniões de Facto: entre a expansão e a cristalização/retracção
Porém, irradiar o argumentário aqui expendido não significa esvaziar as Uniões de Facto de um fundamento ético e social sólido. Diferentemente, trata-se de, através de um breve excurso pela sua evolução, descortinar em que medida devem ser analisadas enquanto contributos para a coesão familiar na sociedade. Em que medida uma sua consideração axiológica sustentada no enquadramento que lhe proporciona a doutrina mais conforme à consideração e defesa dos Direitos Humanos, aos princípios sociais em que a ordem essencialmente se escora, permitirão, não apenas a sua sobrevivência enquanto plano familiar, mas, ainda além disso, o seu eventual desenvolvimento enquanto fontes de efeitos jurídicos novos. Estes novos efeitos dependerão da estabilidade da instituição, da sua aceitação geral, do grau de consenso que se logre gerar a seu respeito.
Ora, sabemos a que ponto é mérito do legislador contemporâneo traduzir a mensagem positiva das Uniões de Facto sociais. Acrescentaria: foi, antes, mérito da fisionomia com que estas se estabeleceram impor-se normativamente com veemência.
A lei falava, pejorativamente como dissemos, de concubinato. Hoje a expressão evita-se sempre que envolva calúnia. O critério de avaliação modificou-se e considera-se “errado”, ao arrepio de bons costumes é o uso de expressões que revelem essa hostilidade deslocada.
Mas é preciso ir mais longe e ver em que medida um núcleo de boas práticas, bons princípios, esteja contribuindo para o incremento jurídico das Uniões de Facto.

O problema nas soluções jurídicas mais debatidas acerca dos deveres pessoais. O regime jurídico e as suas pistas

Tomamos alguns pontos de reflexão a partir do seu regime jurídico. Há aspectos deste regime que já foram apontados. Sistematizamos agora outros cuja importância é evidente.
Trata-se dos deveres pessoais. A lei não desenvolve aqui, contrariamente ao que vemos acontecer em sede de Casamento, direitos e obrigações de feição pessoal obrigando as partes envolvidas. À primeira vista, decorre da interpretação sistemática do diploma que o objectivo terá sido irradiar tais deveres: de lealdade, coabitação, assistência…
Mas a conclusão seria precipitada.
Desde logo, porque o legislador antecipa ponto de vista adverso, ao afirmar que a cessação da coabitação porá termos à União de Facto. Mas o problema fundamental situa-se em relação aos outros deveres pessoais. Terão eles, pergunta-se, densidade equivalente à que exibem no Casamento?
Vejamos o dever de assistência, uma vez que a lei parece clarificar aqui o seu critério.
Há um dever de assistência na União de Facto que justifica o gozo em comum de férias, a entre - ajuda legalmente favorecida pelas leis laborais quando é necessário acompanhamento na saúde pelo unido de facto. Apenas estas regras demonstrariam a força vinculativa do dever de assistência que inspira a lei, por muito frágil que a sua garantia se revele.
É certo que esta injunção não se imporá nos mesmos termos a todos os deveres pessoais. O dever de lealdade é um dever que dificilmente concebemos excluível na UF; em todo o caso admitirá uma densidade menor: não é garantido que tenha de a possuir nos termos por regra identificados para o casamento. Resta, porém, saber se a actual legislação matrimonial, após a integração dos fundamentos e procedimentos que rodeiam o Divórcio, continua a ir no mesmo caminho. O encurtamento dos prazos de vigência de instituições traz consigo uma correspectiva fase de assumida turbulência, que aqui ocorrerá naquele prazo confinado de dois anos, findo o qual se pode requerer o termo da sociedade conjugal. Pergunta-se, então, como aceitar uma apodíctica “lealdade” prolongada e estável, se a lei permite mutações tão profundas no espaço de dois anos?
Há uma pré-compreensão da lei actual a favorecer, creio_ terminando este nosso breve ensaio de colocação do problema _o alargamento dos direitos que as Uniões de Facto conglobam. Foi em nome da sua dignificação e do reforço de garantias sociais que o legislador ousou avançar. Creio que esta realidade é argumento correcto no sentido da conclusão de que a enumeração continente destas normas, o artigo 3º, estará muito longe de ser uma norma fechada. Vejo-a como norma abrangedora de uma enumeração exemplificativa dos direitos dos unidos de facto. Em todo o caso, não perdendo o horizonte da diversidade que separa este diploma e o do Matrimónio.
É uma manifestação de tibieza, este arrimo argumentativo? Acredito que possa ser interpretado assim. Mas considero que em boa hermenêutica, não deve.
Há, na raiz da União de Facto, várias espécies de opções de vida, sabemo-lo. Alguns unidos de facto não têm a cultura da institucionalização dos laços afectivos na esfera pública. Outros optam por uma fase experimental. Enfim, há casais que não prendem a experiência do casamento e por razões que relevam das suas opções de vida, com as quais não temos o direito de lidar. Um segundo, terceiro (primeiro, mesmo) casamento pode trazer problemas financeiros, sucessórios, mas também no plano do convívio familiar quotidiano. Por opção não casam estas pessoas, o que é obviamente respeitável. Mas sendo assim, ocorre perguntar com que legitimidade impor, portas dentro das uniões mais lassas que voluntariamente constituam, um modelo decalcado do modelo matrimonial. É certo que no plano jurídico o modelo matrimonial constitui um quadro rector. Mas um quadro rector não deverá confundir-se com um leque de soluções de equiparação. No núcleo fundamental das relações pessoais compreende-se que a relação conjugal tenha pressupostos mais fortes. Dir-se-á mesmo: representaria um contra-senso admitir que os não tivesse. Pois a diferença das opções faz presumir uma concomitante diferença de consequências e seria um erro deturpar esta cautela interpretativa, no cadinho de uma equiparação precipitada e por isso, grosseira.

Casamento e União de Facto: o núcleo pessoal exigível em sede probatória
E abandono por um tempo este mundo do Parentesco para voltar àquelas formas de Família que se revelam menos ortodoxas. Penso nos pressupostos da União de Facto, por comparação com os do Matrimónio, a forma de união intersubjectiva por excelência.
A razão deste breve regresso deve-se ao necessário apuramento do grau de consolidação que se deve exigir à relação entre os unidos de facto, de modo a que as consequências jurídicas da União operem.
_ Suponhamos que Diana e Fernando casam, combinando à partida que interpoladamente viverão separados e se comportarão pondo de parte vínculos conjugais. Durante uma dessas fases, Fernanda Morre.
Não se põe em causa a subsistência do casamento, que entre ambos vigorava nos termos de uma vontade pessoalmente conformada e se submetia ao regime formal próprio.
Mas suponhamos agora que Diana e Fernando são unidos de facto, meramente. E que fizeram acordo idêntico. Quando morre Diana, tem Fernando direito, por hipótese, à casa de morada de família, como tendo vivido em União de Facto protegida?
Em princípio, parece correcto afirmar que sim. Pois terá sentido conferir menos plenitude de efeitos a este tipo de união, que se pretendeu mais informal, “descomprometida”, do que sucede com a união formal por excelência?
Direi que Diogo e Fernando casados assumem publicamente o seu compromisso _ na esfera pública, através do contrato que celebram. Isto projecta na comunidade um reconhecimento directo da situação/estatuto pessoal de ambos, de tal modo que, não manifestando o casal outra vontade. Será o Casamento e os seus efeitos que a sociedade esperará acolher.
Diana e Fernando, unidos de facto, exibem uma atitude de indiferença ante a esfera pública, ao menos, no que faz secante com os elementos essenciais da sua relação de União. O ónus de provar a existência de direitos decorrentes desta corre a cada passo, a cada momento da existência da União de Facto. É a opção do casal; é o modo de respeitar, em plenitude, as consequências jurídicas.
O mesmo tipo de argumentação se pode chamar a depor a propósito da famigerada aplicação do artigo 496º do Código Civil ao unido de facto sobrevivo.
Se bem recordam o exemplo, que não consta em pormenor destes “Sumários” mas foi discutido nas nossas aulas, questionámos a bondade de uma interpretação restrita, ou literal, da lei. Uma interpretação que permita ao unido de facto assumir o lugar de um cônjuge sobrevivo inexistente, muito à frente de parentes afastados, em nome da dor que com toda a probabilidade é muito mais intensa do que a dor de um daqueles.
Que dizer? É indiscutível a maior proximidade do espírito da lei deste unido de facto, do que a de parentes afastados. Por outro lado, o argumento demolidor do direito dos unidos de facto a perceber danos morais, que será a total “surpresa” dos destinatários do ressarcimento, a violação consequente do princípio da segurança jurídica, não tem uma densidade evidente. Com efeito, terceiros adstritos ao pagamento da indemnização dificilmente terão mais do que uma ideia remota acerca do núcleo dos visados: assim como a expectativa destes será lassa, na maioria dos casos.
Em que ficamos?
Diria que a lei não privilegia aqui, nem uma relação concreta de parentesco ou outra, nem de proximidade. Olha a existência da dor e do direito a compensá-la face aos principais visados. Publica ou privadamente assumidos, os unidos de facto estão aqui. Deverão perceber a indemnização, nos termos que a lei estipulou para o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens. Penso que as regras gerais do Código Civil em matéria de integração de lacunas (cfr. a “norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar de acordo com o espírito do sistema”) resolvem legitimamente o problema. Não será mister criar legislação específica para o caso: a solução decorre já da ordem jurídica portuguesa.



Por último, um paradoxo. Acrescento um ponto que tanto quanto o avalio, é uma irrelevância. É o caso de alguém cuja UF teve início antes dos 16 anos e os perfaz agora. Penso que uma condição ilegal…não deixa de ser uma condição ilegal. Atribuir-se-lhe-á todo o benefício da irrelevância.
Temos de assentar em que o eixo comparativo com o casamento decorre da recepção, que devem as UF fazer, das normas em que se mostra ponderado o interesse público e pessoal. Bem como da recepção das regras de natureza análoga, que por essa analogia, e só por ela, merecem o benefício da inclusão pela UF. É o caso dos direitos pessoais, na medida em que se aproximem dos fins que a sua inserção contempla no casamento. A ponderação patrimonial é mais suscitada pelo acicate do caso concreto, mais “tópica”, afinal.
Creio serem estes os parâmetros a atender. E, na cúspide, resultados socialmente estáveis.



Aula nº 5

Fontes Constitucionais: preliminares
E analisada a Família enquanto objecto do Curso, revertemos à matéria das suas fontes.
Segundo parte muito expressiva da doutrina, pegamos agora e só agora nos primeiros tijolos da casa. Pois a Constituição é a cúspide do sistema e cumpre olhá-lo a partir dessa localização cimeira.



Não fazemos aqui a opção dominante em muita doutrina jusfamiliar. Penso, a título de exemplo, na apresentação que muitos estudos alemães fazem: é a matéria do enquadramento constitucional que apresenta aí foros de primazia, é dela que se parte para o subsequente estudo de outras matérias, como o Casamento, a Filiação. Se forem analisar qualquer Manual de Direito da Família recente, encontram esta estrutura.
Mas a realidade que examinam é outra e tem, neste ponto, divergências que me parecem importantes. A Constituição Alemã é uma norma fundamental da Democracia, tal como a nossa Constituição de 76. Porém, o lastro jurídico familiar não tem, nesse Direito, as características que vemos congregar na ordem jurídica portuguesa. Não se verifica o mesmo quadro de articulação entre o casamento civil e as regras canónicas a que sempre, ao longo dos séculos (pensando tão só na identificação do país, no dealbar da Monarquia) marcou a ordem jurídica matrimonial. Esta articulação exprimiu significações, consequências jurídicas diferentes, no tempo da sua vigência. Mas existe em linha de continuidade; uma continuidade à luz da qual é compreensível a incorporação de elementos que influenciarão, quer a instituição Matrimónio, quer a interpretação de algumas das normas ora colocadas em vigor, sem que isso distorça um processo hermenêutico escorreito.
Relembramos, pois, em jeito de síntese, porém, que a favor de uma consideração simultânea, às vezes dialéctica, dos conceitos de Família/Casamento depõe, entre nós, a especificidade da história dogmática. A Constituição de 76 rompe com o regime ditatorial e suas manifestações e nesse sentido, aduzimos, é uma 1ª Constituição Histórica da Democracia. Mas muitas instituições de antanho marcam ainda o seu significado: porque se lhes sobrepôs um sentido que perdurou além daquele de natureza política; porque se deixam permear da realidade cultural do país.
Estão neste caso todos os conceitos em que a identificação entre sentido social, religioso e jurídico se manifestavam em pontos fulcrais. O casamento português é um representante dilecto desta estirpe.
É certo que sempre, ou quase (direi: sempre, após a entrada em vigor do Código de Seabra) tenderam casamento católico e civil (laico) para a separação, mas num quadro social de convergência em que o primado jurídico do casamento católico se faz sentir com toda a pujança. É igualmente certo que a Constituição esbate este quadro, tal como impõe uma recriação das normas matrimoniais no plano de uma identificação laica que trará consigo a articulação com novos direitos e seu cumprimento (dignidade de todos os seres humanos; igualdade perante a lei; emancipação dos menores enquanto personagens dentro, também, do quadro familiar).
Porém, apesar deste influxo do gume que sulca a importância dos Direitos Humanos, permanece uma raiz na pré-compreensão do instituto, impeditiva de um olhar jurídico isento e mais, correcto, sobre o casamento, fora desta sua articulação social de antanho.
E por isso só agora a ela vamos. Assumindo, naturalmente, a incumbência de retirar todas as consequências que a fonte constitucional impõe.
A compreensão dos modos de incidência do Direito Canónico sobre o Casamento supõe o enquadramento deste enquanto instituição jurídica complexa e caracterizada por um regime jurídico cujos meandros se impõe descortinar.

Os pressupostos do Casamento na Constituição

Assim, diremos que o contrato de casamento não é apenas solene, é igualmente submetido a um regime normativo muito denso que adapta as suas possibilidades de aplicação de acordo com vários circunstancialismos. Não só a forma de celebração impõe mecanismos

próprios, como é certo estar vedado em muitas circunstâncias a possibilidade de casar. Há assim impedimentos absolutos, ou seja, que se impõem sempre e face a todas as outras pessoas, como impedimentos relativos, que advêm de relações particulares entre algumas dessas pessoas.
Concretizando: a demência, a menoridade abaixo dos dezasseis anos, são impedimentos absolutos. Está em causa, como fundamento da recusa legal, um aspecto inerente à personalidade do eventual nubente, aspecto esse que o legislador identifica como inultrapassável em todos os seres humanos e face a todos os seres humanos. Casar abaixo dos 16 anos foi possibilidade abertas às raparigas, em nome de alegada maturidade; mas contra os meios de evolução da sua educação em todos os sentidos, da sua preparação social e profissional. Era uma espécie de transferência de tutelas, a patriarcal e a marital, ou, mais problemática ainda, a inserção abrupta num meio familiar novo, sob a influência de um triângulo “suspeito” nas configurações e consequências: marido sogro e sogra.
Mais complexa será a possibilidade que a lei igualmente veda de admitir o casamento de seres humanos com perturbação mental, ainda que, segundo a lei, que pede aqui de empréstimo a expressão do Direito Canónico, “durante um intervalo lúcido”.
A lei do Estado não permite ir por aí. O casamento de portadores de anomalia psíquica não esmorece em gravidade pela circunstância de ocorrer durante estes intervalos. Nem razões eugénicas, nem o diagnóstico do doente permitem sustentar em confiança e segurança acrescidas uma tal relação. Por isso, não a aceita a lei.
Mas há impedimentos de outro tipo, que se tornam de ponderação mais apelativa pela relação social que têm inerente. Refiro os impedimentos relativos, aqueles que não arredam o matrimónio de todas as suas possibilidades de celebração, mas apenas, daquelas possibilidades que envolvam determinadas pessoas
A poderá casar. É maior de 16 anos, imputável. No entanto, jamais celebrará, segundo a lei, casamento com seus pais, avós, ou quaisquer outros ascendentes ou descendentes na linha recta. Como está impedido de casar com os irmãos (colaterais no 2º grau) e, em princípio, com sobrinho ou tio (colateral no 3º grau).
Parece clara a opção: intervêm a moral social, as razões eugénicas no sentido desta proibição. E, no entanto, resta-nos uma reflexão a este respeito. Imaginemos, quer o parentesco na linha recta que em dada situação se verifica não é socialmente reconhecido, e muito menos o foi alguma vez pelos nubentes, que sempre viveram apartados do convívio respectivo, não tendo qualquer conhecimento da real situação jurídica que os entrelaça. Quid Juris?
A lei não excepciona tais casos. Eça de Queirós, (também) aqui, manteria a sua actualidade: Carlos Eduardo e Maria Eduarda da Maia não poderiam encontrar paliativos legais para o seu relacionamento amoroso, pois a inocência não lhes retirava a qualidade familiar e as implicações jurídicas decorrentes.
Razões para um discurso legal justificador? Moral social, receio de operar derrogações que possam desvirtuar a linearidade de uma regra cuja existência contém a plasmagem de um princípio e inerente, um aviso a que o legislador não permite concessões.
E a relação entre tios e sobrinhos? A verificação estatística mostra a que ponto se revela parcimoniosa na lei portuguesa. Estes casamentos, raros, não parecem esconjurar, na desmotivação legislativa, o aspecto eugénico. Mas muito dificilmente seriam concebíveis fora do âmbito de uma família alargada.
Temos, pois, um acervo de fundamentos da invalidade matrimonial que mostra não ser esta uma sede em que a lei portuguesa vinca um modelo de autonomia face às demais. Inversamente, o modelo é comum, dilui-se, nos seus principais traços, dos modelos que encontramos em outros países da União Europeia, de Língua Latina na América.
O problema estará então em saber que elementos destas regras são submetíveis à consideração dos nossos tribunais, ou antes, totalmente devolvidas aos tribunais eclesiásticos.
A Constituição refere que a lei civil é o lugar de acolhimento das normas de constituição, dissolução e efeitos do casamento. Parece que a porta se abre ao Direito Canónico através de uma subtileza argumentativa. Pois que o processo preliminar de constituição e as suas consequências seriam um alliud que se arreda deste critério de submissão.
Mas será assim? As condições de validade marcam a fisionomia jurídica de qualquer negócio jurídico. O processo de reconhecimento da sua eventual validade é crucial neste plano. Não vejo como sustentar que os efeitos da constituição do casamento devam separar-se dos restantes efeitos da relação matrimonial.
No entanto, dois aspectos são chamados a depor agora, em sede de outorga ou não do juízo da oportunidade de um critério inválido aos tribunais judiciais.
Em primeiro lugar. Os critérios fundantes desta validade são homogéneos. Assim acontece na ordem jurídica portuguesa desde o século XIX, vigorava o Código de Seabra. Já aludimos a este ponto, sobre o qual convém tornar. Será a lei ordinária a influenciar o Direito Canónico neste ponto, cristalizando um fenómeno de diálogo entre o braço civil e o braço eclesiástico em que este não deixava por isso, sabemo-lo, de deter a parte mais importante.
Ora, esta influência permeia o Direito da Igreja, permite que venha imbuir-se, neste ponto, de uma afinidade laica. Não haverá razões, muito tempo depois da aplicação inicial do critério, para suspeitar da identidade essencial que exibe face ao direito português.















Aula nº 6
Fontes Constitucionais do Direito da Família (continuação)

o casamento civil e católico no Código de Seabra à República

Recordam as personagens que a marcaram no Direito das Mulheres, ou melhor, na perseguição do sonho por esse Direito que não chegaram a conhecer: Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Angelino, mais recentemente, Elina Guimarães. E Isabel Telo de Magalhães Collaço.

A República, a Lei do Divórcio, os “desencantos”

Imaginamos e acertamos se pensarmos as mais antigas do grupo, que viveram a implantação da República, rejubilar com o divórcio católico. Ele é decretado em 1910, num intuito que foi apresentado como significativo passo de aproximação aos direitos das mulheres, ao reconhecimento da sua cidadania.
Sucede, porém, que se esse foi alguma vez o objectivo do Divórcio, ficou por aí. Não se reconheceram consequentemente o direito de voto das mulheres, nem muitos outros. No fim da vida, Ana de Castro Osório proferia palavras amargas contra o movimento político republicano, em que tanto acreditara.
Concluímos, pois, que da Lei do Divórcio fica na sociedade portuguesa a expressão de um arrimo de hostilidade para com a Igreja. A sociedade, essa continuou casando catolicamente por vezes às escondidas, sendo difícil vislumbrar as cifras reais do casamento católico nestes anos que duram até 1940.

Concordata com a Santa Sé, 1940
Mas é aí que, com a Concordata celebrada com a Santa Sé, o Estado Novo depõe o regime republicano e altera a situação.

_ O primeiro ponto em causa na ordem de considerações é o divórcio católico, agora proibido. Compreende-se que é e será a questão fulcral neste contraponto entre as diferentes aplicações dos direitos católico e laico e as hierarquias que exprimem ante a sociedade. Proibindo o divórcio católico, num país católico onde a própria tradição favorece a opção matrimonial, faz-se sentir a força real de um sistema normativo. Neste caso, o da Igreja. Essa proibição acontece.
_ Em outras matérias, semelhantes, aliás, às que entrevimos ao tempo do Código de Seabra, manifesta-se a importância do casamento civil. O regime de invalidades continua a merecer a aceitação da Igreja, como acontece com o regime de impedimentos.
_ Desta vez, porém, a reacção da sociedade portuguesa faz-se sentir com outro fulgor. Pelos anos 50 proliferam separações, seguidas de uniões de facto no seio das quais nascem filhos “fora do casamento”, “ilegítimos”, nos termos da Constituição e da lei. A situação atinge aqui e além o povo, os mais humildes, mas impende fortemente sobre uma classe que, não abdicando do seu catolicismo, milita os princípios de uma nova Igreja. Exprime-se o clima do Concílio Vaticano II. A sociedade portuguesa inconforma-se.
A literatura vai por aí. Luís de Stau Monteiro escreve um livro que incomoda. Outros se seguem.

O Acto Adicional, 1975

_ Vimos que o 25 de Abril descomprime este plano de desfasamento entre o poder novo e a Igreja na sua expressão de 1940. Entra em vigor, em 1975, o Acto Adicional à Concordata e repõe a possibilidade de decretamento do divórcio pelos tribunais portugueses.
Esta nova situação reveste uma particular importância, porque não é apenas a alteração que o Acto Adicional à Concordata produz que vem trazer problemas intrincados à inesgotável teia de relações complexas entre as leis da Igreja e do Estado. Com efeito, a entrada em vigor da Constituição da República de 1976 vem impor, no artigo 36º.2, a submissão ao legislador laico das matérias relativas ao processo de constituição, efeitos e dissolução do casamento por divórcio. E, se a questão da dissolução surgira entretanto resolvida, o mesmo não corre a benefício de várias outras. Sabe-se que o Código Canónico contém a figura do casamento rato e não consumado, cujo efeito não passa pela invalidade mas pela dissolução. Tudo está em saber qual a atitude do Estado português: aplicar automaticamente a norma, aceitar o acrisolamento do seu regime no universo do direito matrimonial da Igreja, ou antes impor a voz do direito português, rejeitando assim uma tal aplicação e consequente reconhecimento.
Sabe-se que a matéria logo dividiu a doutrina.
_ Os argumentos mais relevantes aduzidos em favor da autonomia da Igreja e da sua capacidade para impor as suas normas adveio dos autores próximos da tese segundo a qual a importância da Igreja na sociedade portuguesa não decorre apenas da Constituição, mas de uma tradição ancestral e de um peso secular condicionadores e fundamentadores a um tempo de um regime específico face a outras entidades estaduais, e fundamentadoras de um regime que seria de clara preponderância nessa hierarquia necessariamente merecedora de reconhecimento.
_ Noutro sentido, ouvem-se também vozes. E agora não há legitimidade para sobrepor, ante a clareza do texto do artigo 36º e sobretudo, ante a importância reconhecida à Santa Sé, configurada entre os Estados com quem tem relações o Estado português, nenhum elemento que traduza supremacia sua face aos demais estados com os quais Portugal se relaciona. Sendo assim, não se aplicariam na ordem jurídica portuguesa decisões que não passassem pelo crivo da lei nacional.

A Concordata 2004
O tema não perde actualidade e está na raiz da Concordata 2004 que vem a ser celebrada.
A Concordata 2004 marca no ponto que nos importa, a realidade jurídica matrimonial, um marco decisivo. É certo que não foi a ordem jurídica portuguesa alterada durante tempo algo longo após a sua entrada em vigor. No entanto, se dúvidas subsistiam acerca do influxo do direito nacional sobre o da Santa Sé, estas dissipam-se agora.
Reconhece-se que, pelo menos doravante, será a entidade portuguesa legitimamente envolvida a curar dos problemas relativos a todas as invalidades matrimoniais, mesmo todas as católicas, posto que se pretenda que produzam efeitos na ordem jurídica portuguesa.
A compreensão deste aspecto atinge-se estabelecendo a comparação com o regime que esteve em vigor até à Concordata e que aliás a procedeu.
De acordo com esse, a matéria relativa a certas invalidades matrimoniais era de competência reservada dos tribunais eclesiásticos. As decisões subiam, de acordo com os procedimentos, até à cúspide, ao Tribunal Apostólico, posto o que seriam reenviadas por este a um tribunal civil português. Aqui, a função que competia ao nosso aplicador era muito parcimoniosa. Deveria, segundo a lei, limitar-se à transcrição da decisão proferida, à sua divulgação.
Este, em síntese, o regime que desenvolveremos infra.
Este regime, profundo gerador de assimetria entre a função jurisdicional da Santa Sé e do Estado português, não só passava uma certidão de menoridade a este último. Era a própria função do Tribunal, órgão de soberania, que surgia desvirtuada. Um tribunal julga, decide. Não tem nenhuma afinidade com a sua missão de soberania transformá-lo numa entidade de registo de sentenças provindas de outros tribunais. O reconhecimento na ordem jurídica portuguesa de qualquer decisão da Santa Sé, posto que assente nos critérios que muitos autores sempre sufragaram, compatibiliza-se com uma manifestação prévia ao processo. Mas nunca se compreenderá que os tribunais da nossa ordem jurídica desvirtuam as funções que constitucionalmente lhes competem.
Compreende-se portanto a inflexão legislativa. Que ocorre cinco anos depois, em todo o caso, o que bem dá conta da resistência à mudança neste particular. Agora, o processo de dispensa passa pelos tribunais portugueses, sede da sua apreciação, para que valham na ordem jurídica nacional.
A lei, utilizando o sistema em presença, adopta como ponto de ancoragem a qualidade estadual da Santa Sé. Porque esta é um Estado se justifica que tenha a sua produção normativa o regime próprio dos tratados internacionais. Aliás, isso mesmo acontece, na nova versão do artigo 1626º.
Dir-se-á que o problema não é discutido no terreno constitucional. Aliás, não surge a menor referência a tal respeito. Em bom rigor, é o momento pactício que firma a Concordata 2004 que vem pôr cobro à querela, aceitando a Santa Sé uma tramitação diferente, com sinergias cometidas ao Estado português, na matéria em questão.

O Artigo 1626º e as suas duas versões

Procurando sistematizar a matéria em apreço nesta sede, elencaria:
_ Um regime que atribui à Igreja a apreciação de invalidades do casamento e bem assim, de um fundamento que exorbita tais invalidades, pondo fim à sociedade conjugal sem ser por divórcio ou morte: o casamento rato e não consumado, assim decretado Pela Santa Sé. Este regime, que colocava toda a margem de apreciação e decisão no foro religioso, determinava para o Estado português uma incumbência diminuta: transcrição, accionamento dos mecanismos de produção de tais efeitos.
_ Este regime plasma-se no artigo 1626º até este ano (2009) e por sua causa ergueram-se vozes de discordância face à sua adequação constitucional.
_ Com a Concordata 2004 e mais precisamente em decorrência do artigo 16º da mesma, a ideia legitimadora pela própria Santa Sé de um seu confinamento nesta sede faz-se ouvir. E será a Concordata, ela própria, a verberar a actuação dos tribunais nacionais em matérias que cabem no âmbito de aplicação da sua soberania.
_ Mas hão-se, como dissemos, passar alguns anos (2004-2009) até que o Estado legisle.
Razões? Não as avento aqui. Olhámos a matéria no sentido de compreender o Casamento face à Constituição. Afinal, esta mudança coloca ainda um problema constitucional _ equipara o Direito que se aplica aos casamentos religiosos aos tratados internacionais. Ou seja: permite-se olhar a Santa Sé como um Estado entre os outros!
_ Mas não deixemos de reparar que foi a Santa Sé a permitir esta nova tramitação dos casamentos na Concordata 2004, artigo 16º. Ou seja. Diferentemente do que acontecera no passado, é agora o Estado da Santa Sé que antecipa um problema da comunidade a que aspira aplicar-se e aceita uma resolução. Vemos, decerto, uma atitude notável no modo de lidar com o problema: não se impôs um regime ao Estado português, católico mas que ao mesmo tempo não abdica de certas regras suas. Vemos harmonização, respeito por valores básicos nacionais. Uma atitude comunicativa que marca em crescendo as grandes instituições que sabem da vantagem enorme em favorecer o contacto, a tolerância. A Igreja dá aqui um exemplo de grande impacto à comunidade internacional.

Ao exarar a jovem norma do artigo 1626º, o Estado português insiste em terminologia que, vincando a desconformidade entre a lei em vigor e o preceito já aceite, outorgado pela Santa Sé em 2004, nem por isso abdica de sublinhar a manifestação de soberania que a lei doravante conterá.
Com efeito, os pressupostos da nova norma são, de acordo com o Decreto – Lei 100/2009, assentes na desconformidade que ora se regista entre a Concordata e a situação em vigor.
Em abono do carácter pacífico que grassa na sociedade portuguesa sobre a matéria cita os tribunais: vêm-se estes recusando a dar seguimento ao processo de revisão de sentenças estrangeiras.
_ Enfim, assume a lei o papel activo dos tribunais portugueses, a requerimento dos interessados;
_ Altera igualmente o Código do Registo Civil (artigo 7º.3), impondo que as decisões averbadas aos assentos sejam aquelas que tenham passado o crivo do processo de tramitação;
_ Admite, por último, a possibilidade de a Igreja se assumir como parte requisitante ao Tribunal civil a notificação das partes, peritos, de diligências de probatório ou outras, sendo as margens de indeferimento do pedido muito parcimoniosas.
(estamos, claro, analisando o artigo 1626º na versão em vigor).

_ E, afinal, que casos são estes de que estamos falando, a que se virão a aplicar estas regras?
1. Os casos de nulidades do casamento católico, uma invalidade que a ordem jurídica portuguesa não congrega. Mas recebe, em contrapartida, inexistência, anulabilidade. Já, como se referiu, por igual o casamento rato e não consumado corresponde a uma realidade qualificada pela Igreja e desconhecida pela ordem jurídica portuguesa.
2. Um pouco à frente (de seguida) apresentarei o elenco das invalidades do nosso Direito, para que vejamos o universo semelhante, no Direito português, a este aqui em causa. O mesmo acontecerá sobre casamento rato e não consumado, muito importante para os católicos, porque permite pôr fim ao casamento católico sem a qualificação de divórcio atribuída à situação e mesmo, sem o seu enquadramento portas dentro das invalidades, uma vez que existe uma discrepância óbvia entre a figura e estas últimas.
3. A diferença, pois, entre o tratamento jurídico do casamento nulo e rato mas não consumado consiste no seguinte. Antes da Lei 100/2009, a Igreja apreciava o processo, o qual subia à sua cúspide e depois, era devolvido ao Tribunal da Relação mais próximo, que ficaria incumbido de proceder à sua transcrição. A actuação dos tribunais portugueses era passiva, neste domínio.
4. Hoje, não há como fugir à regra de que o juiz nacional é juiz da oportunidade da norma, da sua aplicação ao caso configurado. E, se porventura se opuser, ela não terá como ganhar voz activa pelo processo.

Mantém-se, no plano dos princípios, a questão: cedeu a Santa Sé em razão da especificidade do caso ou foi mais longe do que isto?
Diria que foi mais longe, mas no sentido já apontado: a vinda ao encontro do reconhecimento de uma verdadeira “margem de apreciação” pelos entes internacionais da realidade dos Estados com que estabelecem relações. É uma decisão casuística? Porventura. É, acima de tudo, uma solução geradora de consenso dentro de uma lógica que não violou princípios fundamentais, de parte a parte. É uma decisão moderna, no plano jurídico.

O sentido normativo da decisão concordatária e da decisão do Estado Português; Síntese do regime apresentado.

Ocorre, a quem enfrenta este tema em Direito da Família, questionar do interesse em tanto escrúpulo de desenvolvimento da interpretação destas normas. Porquê, afinal?
Peçamos ajuda a quem de Direito. A própria lei.
De acordo com a Concordata, em nome dela, consideravam-se à margem de qualquer juízo de oportunidade laica as decisões em razão de nulidade do Casamento. Ora, sendo que a nossa ordem jurídica, de entre o acervo de casamentos inválidos, os não contempla, conclui-se facilmente que a Igreja chamava a si a apreciação de casos ditados pela sua normatividade específica. Depois, surge a categoria do “casamento rato e não consumado”. Trata-se de uma modalidade de termo do Casamento, mas muito específica. Vejamos:
_ Prevista nos Cânones 1142 e 1697 do Código de Direito Canónico;
_ Dispensa pedida ou por ambos os cônjuges,
Ou
Só por um deles mesmo contra a vontade do outro, para obter a dissolução do casamento;
E este casamento foi validamente celebrado.
Porém, é um casamento por regra não consumado.
O ponto está em que a não consumação comporta excepções. Incompatibilidade de caracteres, separação durante vários anos; delito muito grave que um tenha cometido; e por diante.
Perguntar-se-á: não é mais ágil o divórcio?
É-o juridicamente, mas não tem o mesmo efeito no seio da comunidade dos crentes. Daqui, a opção de muitos católicos por esta figura.

Ora, até hoje, ela transitava, como se disse, pelos tribunais eclesiásticos. Subia à cúspide; e só mais tarde, após a decisão derradeira, intra-eclesiástica, era devolvida aos tribunais civis para que a tornassem operacional.
Foi este o sistema que mudou com a novel lei, o Decreto-Lei 100/2009. Os tribunais portugueses têm voz activa, poder decisório na matéria.

Se bem atentarmos, decorre do artigo 16º.1 da Concordata 2004 que “As decisões relativas às nulidades e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas competentes, verificadas pelo órgão eclesiástico de controlo superior, produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo competente tribunal do Estado…”
Ou seja. A paridade entre o texto do artigo 16º e o regime ora em vigor é muito evidente.
Concluindo e observando: o requerimento pode ser apresentado apenas à instância religiosa. Produzirá efeitos junto da Santa Sé, a decisão proferida. Porém, a produção de efeitos em Portugal está dependente da segunda solicitação, junto das autoridades judiciais portuguesas.

EX: António e Betina celebraram casamento católico em 2002. Este casamento foi considerado inválido pelo Direito Canónico.
A nulidade em questão veio a ser “desconsiderada”, não avaliada pelos Após a decisão do Supremo Tribunal Pontifício, concluiu-se pela ilegitimidade dos tribunais laicos para apreciar a questão.
Colocado o problema agora, reconfigura-se a situação. O que sucede, depois de Maio de 2009, é a necessidade de uma apreciação pelos tribunais portugueses da matéria. Não obstante, os tribunais eclesiásticos reservaram-se o direito de acompanhar este processo de revisão e confirmação da sentença. É assim que sempre poderão aduzir material probatório, requerer a audição de testemunhas…

Advertência: o Casamento não é a fonte por excelência de relações familiares na óptica da Constituição. Esta torna bem claro que outras formas constitutivas de Família existem e que não há fundamento para proceder a discriminações entre qualquer delas.

O que acontece é que, pela sua imensa densidade legal, pela doutrina que transporta consigo, a realidade matrimonial opera uma quase dissipação das outras realidades familiares. A verdade, no entanto é que o legislador não afirmou que só o Matrimónio, ou o Matrimónio em primeiro lugar, surgem como fontes de relações familiares. Não é dito em qualquer lugar, muito menos no artigo 36º, que deste modo deva ser interpretada a Constituição. Ora, há assim que tomar em consideração a igualdade entre as várias instituições que aparecem ao lado do Casamento, hoje reconhecidas, apesar de modo parcimonioso, pela lei e desenvolvidas pelo direito jurisprudencial, pela discussão que se adensa nos meios doutrinários. Recordo Esopo, a Fábula do homem e do lesão que passeavam por um caminho, quando encontraram a estátua de um leão dominado por um homem. Vendo-os, comentou o homem viajante: “Por aqui se prova a superioridade do Homem face ao leão”. Ao que o Leão respondeu: “Não! O que por aqui se prova é que os leões não são escultores…”.
O legislador constituinte esculpiu relações de igualdade entre modelos de famílias, do mesmo passo que esculpiu relações de igualdade entre todos os intervenientes na Família; crianças e sua circunstância, de formação de personalidade e direito ao afecto; mulheres e nova expressão familiar, profissional, com inerentes tensões, conflitos, que solicitam reconhecimento e tratamento jurídico adequado; idosos integrados em agregado do qual possam depender, financeira ou afectivamente, e correspectiva exigência de resposta jurídica. Em que medida um ou outro dos casos aflorados integre o Direito da Família é outro ponto. Que a igual relação de respeito constitucional deva ter-se em conta, sem dúvida.
Quando analisamos este artigo 36º encontramos a história da afirmação de duas realidades. A implantação dos direitos das mulheres à igualdade, concretizando o artigo 13º do Código Civil. Por outro lado, os direitos dos menores.
Por uma questão de ordem, analisamos primeiro a referência inicial da Constituição.

A lembrança que aqui se faz do direito à igualdade entre os dois sexos é muito parcimoniosa. Pois foi já afirmado que constituiu o grande sintoma da modernidade do Direito da Família que aparece após o 25 de Abril de 74. Aparece depois na Constituição em 76 e irrompe, como é sabido, com a Reforma do Código Civil de 77.
Tem projecção fora do casamento: em todos os sectores da vida social. No Casamento e nas outras realidades familiares que depois despontam, evidencia-se com a ausência da liderança por um chefe masculino e pela projecção dessa igualdade na educação dos menores dentro da Família. Não é o pai que decide os aspectos da vida do menor e sua educação, essa decisão é partilhada e não depende da condição económica ou cultural de nenhum deles. No entanto, sabe-se em que medida continua a existir uma concepção pouco densificada desta partilha educativa que a lei impõe. Muitas vezes, os tribunias deparam-se com tentativas de transpor para a educação dos menores, para a titularidade dessa educação, o reflexo de conflitos entre o casal: financeiros, sim, mas também de ordem sentimental. Nesta medida, projecta-se numa entidade soberana mas estranha ao círculo familiar e ao conhecimento de elementos fundamentais para decisões sustentadas _ o juiz_ muitos aspectos que deveriam ser resolvidos dentro de um grupo restrito e tanto quanto possível isento.
Mais adiante aventar-se-ão os caminhos de uma solução que se afigura muito complexa por agora.

Direito da Família na Constituição (continuação). Os menores na Constituição

E, chegados a este ponto, chamamos a depor o papel que a Constituição comete à protecção constitucionalmente imposta dos menores.
Começo em breve trecho sobre a procriação medicamente assistida. É certo que muitas vezes a sua localização problemática não surge aqui, antes a propósito do Casamento, ou de outras relações familiares. Compreende-se a referência biológica inerente (terá de haver uma decisão de progenitor ou progenitores) mas nada tem a ver com o eixo fundamental, a fonte de legitimidade desta procriação. Pois antes de mais, do que se trata é de aquilatar do bem fundado de gerar seres humanos em condições diversas das habituais, sendo evidente que persiste um quadro de desconhecimento, biológico desde logo e com evidentes repercussões de ordem pessoal, afectiva, a perpassar toda a sequência procriativa.
Pergunta-se, então, acerca da legitimidade de trazer para este mundo desconhecido ainda mais factores de desconhecimento, sobre a origem da pessoa e a sua subsequente situação; sobre os efeitos do “factor desconhecimento” e as suas consequências. Que garantia temos de dar por adquirido, procedendo assim, o respeito pela dignidade humana, ao permitir que acresça uma margem de desconhecimento acerca deste novo ser, margem que não decorre da álea da criação em geral, mas de outros factores que trazem consigo suspeita de complexidade e efeitos ainda insondáveis.
Creio que toda a discussão a fazer acerca das condições particulares que possam atribuir maior margem de favorabilidade a uns casos ante outros (cfr. casais que se provam impedidos de procriar e afirmam o impulso da maternidade/paternidade) não prescindirá esta reflexão prévia. Pois não se trata primacialmente de fundamentar um direito familiar, porventura situado na esfera recôndita dos direitos à maternidade e paternidade, à expressão dos afectos. O direito que antes do mais se ergue é o de cada pessoa e da sua circunstância. E posto que não podemos alterar aspectos essenciais de uma e outra, convirá, por igual, que os não pretendamos definir de acordo com as nossas mundivisões, padrões…
Sobretudo, creio importante suscitar a necessidade de distinguir dois planos muito evidentes nesta matéria. Por um lado, o direito essencial do novo ser, a sua dignidade, que constitui o primeiro ponto a reter na matéria. Por outro lado, o Direito a constituir uma Família, que em regra é chamado a depor nestes casos. Tem-se tal direito, sempre, na medida das possibilidades, da realidade que é a de cada pessoa. Nunca, sobrepondo-o ao direito de nenhum ser, nunca, instrumentalizando um ser humano ou uma realidade que a lei identifica já como dotada dos elementos essencialmente constituintes da humanidade e por isso identifica nos seus termos.
Acentuando o ângulo pelo qual as portas se abrem ao meio de procriação mencionado, vemos que se trata de estabelecer uma ponderação, a saber, entre o sentido do direito à dignidade e o direito a exercício da vontade.
O direito à dignidade resulta aqui, como decorre do exposto, muito pouco evidente. Afinal, a dignidade de um ser que ainda não existe, não foi sequer gerado, seria sempre causador de perplexidade. E acresce que, neste caso, pode dar-se o caso de vir a ser procriado com um destino imediato benévolo: no seio de uma família dotada de excelentes condições de acolhimento, por hipótese.
Discutir esta legitimidade de assim procriar parece mesmo depor contra a causa do direito a uma vida digna!
Mas quem é o ser gerado ou gerável, de que falamos? Alguém que tem a sua circunstância completada num segundo, na ponta de um bisturi, ou o homem ou mulher que vai viver depois viver a contas com as suas vicissitudes genéticas, as suas atribulações sociais? Alguém que, à álea do ser humano em geral, acopla a álea de uma diferença que não podemos antever em que medida depõe a seu favor ou reverte contra ele.
E vejamos o outro ângulo, o da vontade. À partida, é a vontade bem intencionada de gente afectuosa, com instintos bons, uma gente altruísta e cheia de carinho. Mas não podemos confundir os planos. Se a legitimação da vontade fosse uma legitimação ética, diria que eles têm legitimidade para serem destinatários de procriação assistida. Porém, não é o caso. A legitimidade da vontade supõe aqui a demonstração de que ela sobreleva outros interesses. Ora, em primeira linha, temos os interesses dos menores e só liquidada essa discussão se passaria a este segundo ponto. Sucede que não a vimos ainda liquidada.
Neste contexto, afigura-se-me juridicamente problemático um juízo favorável à solução adentro da ordem jurídica.
Questão diferente é a da atenção, do cuidado conferido ao novo ser uma vez procriado.

Já noutro plano, coloca-se o domínio dos direitos/deveres dos pais e encarregados da responsabilidade sobre a educação do menor. A lei, ao longo de muitas normas, que a Filiação exprime mas também a constituição firma, tal como as Declarações Internacionais, chega a um sistema de incumbências sobre cada educador. Este sistema cresce, a ponto de se reflectir sobre outros ramos do Direito. Uma mais forte consciência social das obrigações para com as crianças corrobora uma legislação densa noutros aspectos; estou a pensar no direito criminal perante os menores.



Também o artigo 36º da CRP desempenha um papel neste domínio, que se estudará mais à frente, pelo que se faz agora uma abordagem tão breve e remissiva.
Mas em todo o caso refiro dois pontos obrigatórios.
Por um lado, a prolixa enumeração de deveres que o Código Civil atribui aos titulares do poder paternal/responsabilidades parentais. Serão semânticos? Talvez, em certa medida. Nem por isso deixam de ser indicadores de um rumo: a árvore dos direitos, dos bens pessoais, cresce através dos direitos dos Menores. É meritório que isso aconteça; é revelador de que, em algumas décadas, ultrapassámos o quadro da “família subjugada pelo chefe de família” e o quadro da “família a tender-se moldada pela emancipação das mulheres” para uma Família mais ampla e reconhecedora de todos os seus membros.
Por outro lado, estes poderes/deveres, ou direitos/deveres estendem-se vertiginosamente ao código pela: pelas “situações de garante”; pelas circunstanciais pessoais especiais de ilicitude, plasmadas no artigo 28º (uma das mais antigas e importantes regras comparticipativas do sistema); pelos crimes de maus tratos, violência doméstica, tráfico de menores…_ matérias que veremos adiante.
Ora a este propósito parece-me indispensável focar um ponto, que talvez encerre a tentativa de esconjurar um mito. O mito do carácter propulsivo do Direito Internacional e também das suas decisões.
Recordo uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Perante a impossibilidade de algumas crianças belgas, a viver próximo da fronteira da Holanda, se deslocarem a uma escola que lhes ministrasse o ensino da sua própria língua, considerou o Tribunal que a decisão que recaíra a nível nacional sobre o caso, no sentido de as crianças procederem à deslocação,



VII

Casamento: Inexistência; Invalidades Matrimoniais
Relembramos, a terminar este ponto, o esboço de problemas relativos às invalidades cujo enunciado se apresentou. O propósito era o de chamar a atenção para o conceito de invalidade no Direito português, uma vez que se chamaria a depor a invalidade do casamento religioso.
Sendo esta a sequência usada, seguiremos com a apresentação dos tipos de invalidades que a lei consagrou no direito português. Não se tratará de as analisar com exaustão, mas de ver o núcleo de problemas normativos em que se inserem estas realidades que, no Direito da Igreja, assumem uma feição específica.
Há, como já foi afirmado, casos não coincidentes entre as invalidades do Direito Canónico e o nosso Direito Civil. Desde logo, as “nulidades” que o Direito Canónico contempla não têm transposição linear para o Direito Português. Por outro lado, existem situações que a lei nacional considera invalidadas e são incólumes perante a Santa Sé a um tal juízo.
Por outras palavras: veremos se são “parecidos de família” os casamentos anuláveis ou até inexistentes da nossa lei e os casamentos nulos segundo o Código de Direito Canónico.

Inexistência
O Casamento inexistente é a contra-imagem do seu desenho legal, o outro lado do espelho. É uma situação que exprime a não declaração de vontade núbil, por maior que esta vontade seja
O elenco do artigo 1628ª explicita este núcleo que deixamos aqui aflorado nos seus tópicos mais salientes.

A quer casar com B. Mas não o afirma ao funcionário do registo, porque algo lhe prende a atenção. Pode, também, não se dar conta de que é aquele o momento de proferir as palavras…

Cabem neste conceito as situações em que:
_ São do mesmo sexo os nubentes;
_ Não declaram a vontade;
_ Não o fizeram ante a autoridade competente.

Ocorre perguntar a razão pela qual insiste a lei em dizer-nos o que seja um casamento inexistente, quando na verdade sabe muito bem que, apresentado o conceito de casamento, de imediato ressaltaria a impossibilidade de subsumir ao mesmo, casos deste teor.
Sabe-se, também, que na origem desta regra esteve uma outra bem antiga, oriunda do Code Civil, que assim evitava a inclusão do casamento de pessoas do mesmo sexo; era o tempo da interpretação estrita da lei e sua letra, da concepção do juiz como a boca que de modo automático repete as palavras dessa lei; uma lei que não fora inclusiva da diversidade sexual.
Pergunta-se, porém, da oportunidade de ir por aí, hoje que há margem interpretativa bastante para compreender a fronteira das compatibilidades entre as normas, para proceder à sua análise sistemática.
Porque insiste o legislador?
Creio que para sublinhar a sanção que pretende usar. Essa sanção é inequivocamente a não produção de efeitos. A lei não abre mão de tal aspecto e por isso preserva a norma. Não se tratará de um caso de nulidade, o que sempre se poderia admitir, se o silêncio fosse a sua opção. Trata-se de colocar fora da esfera geradora de efeitos jurídicos a situação, sem apelo nem agravo.
Vou deixar um tanto de lado a questão dos casamentos urgentes. Com efeito, para eles vigora uma tolerância que faz excepcionar a regra da necessidade de um requisito formal para que o Casamento exista. A ordem jurídica nacional permite-os, honrando a vontade de quem pretende casar e sabe que pode suceder que a vida não lhe proporcione muito mais tempo para isso; ou que se encontra na iminência de parto Porém, posto que celebrado este casamento com menos solenidade formal, deverá ser homologado, logo que possível. De outro modo, esboroam-se os efeitos jurídicos do casamento urgente.
Pois afinal, a existência matrimonial que se exprime no artigo 1628ª é a decorrente de uma situação jurídica a que se suprimiram dados essenciais da construção legal de matrimónio: um negócio formal, entre pessoas de sexos diferentes, com uma dimensão de publicidade que exige ser a sua tramitação legalmente definida, sob pena de supressão radical da esfera jurídica. É certo que a lei atende a um aspecto que, neste domínio em que a intimidade, a esfera pessoal, fazem incursão, uma margem de possibilidade impensável em outros negócios jurídicos. Estou pensando nos casamentos urgentes, celebrados, por hipótese, sob o espectro da morte ou de parto.
Pergunta-se qual o sentido actual desta “iminência de parto” como pressuposto de casamento urgente. Afinal, não há estigmas por nascimento fora do casamento e quanto à prova da maternidade, far-se-á ela com toda a naturalidade, caso o casamento não exista.
Mas o legislador insiste, talvez, num respeito pela vontade de quem pretenda ter uma relação conjugal legalizada ainda nestes casos. Que podemos/devemos dizer? Perante a retracção própria do desconforto de opinar em face de uma expectativa tão difícil, apenas resta uma palavra: deste modo se perpetua, na lei, um sentido de respeito para com as relações conjugais legalizadas que em bom rigor se andou destruindo aqui e além, em múltiplos aspectos. É um sinal de assistematicidade do sistema, de desigualdade no tratamento das situações. È talvez, em dimensão muito real, o justo preço de uma mutação legal profunda, uma revolução algo surda dos institutos, que não pode correr a benefício da coerência.

Ex; Alda está prestes a ser mãe e a lei retira à expressão da sua vontade conjugal os requisitos que teria em condições normais; retira-a sob condição, até que a regularização do casamento possa ocorrer. Ou seja: poderá realizar um casamento informal, mas que será homologado logo que possível.
E, no entanto, se Aldina, unida de facto, pretender ver a sua União protegida, mas ainda não tenha perfeito os dois anos de convivência estável com o companheiro, não terá, na lógica e arsenal dos instrumentos da União de Facto, como proceder. Restar-lhe-ia casar, caso o pudesse e além do mais, quisesse. Pergunta-se; porque não cobre a lei com um manto de respeito, também, esta outra vontade?

Assim como admite a lei que seja firme em existência, e mesmo válido, casamento celebrado ante funcionário de facto, a menos que ambos os nubentes estejam cientes da qualidade do funcionário.
Quem é o funcionário de facto? Todo aquele que, sendo titular da designação, não possui contudo as qualidades para a prática específica destes actos.
A lei, aqui, distingue. Decide que, se o souberem os nubentes, o casamento é válido. Nem se coloca um problema de anulabilidade. Ou seja: a regra de formalidade exigida tem afinal efeitos lassos: posto que o casamento se realize ante autoridade será dado como regular, posto que alguma ferida tenha inquinado, incidente, no caso, sobre a qualidade do titular do poder para efectuar a celebração.

Numa palavra: o casamento inexistente é o reduto que exprime uma realidade oposta ao conceito legal do casamento. E não cabe no seu interior nenhuma outra. Não cabem as formas que se aproximam do casamento, posto que eivadas ainda de elementos de contrariedade à lei (casamento ante funcionário de facto), eventualmente, por condições excepcionais consideradas atendíveis.

Todos os outros casamentos existem, pois, e poderão perdurar, sem o anátema da invalidade. Não será o vício exprimível a todo o tempo, ou por qualquer pessoa.



Invalidades
A grande figura de enquadramento das invalidades matrimoniais que a nossa ordem jurídica contempla é a anulabilidade.
Uma anulabilidade cujos contornos são de tal modo específicos que os desenvolvemos agora.
Há, afinal, três características que marcam o regime das invalidades do Casamento e que se aplicam aos vários casos que as mesmas invalidades possam configurar.
Vejamos.

_ Possibilidade de convalidação, sempre que a invalidade, embora grave, conheça um fim e esteja ainda a decorrer o processo de impugnação do Casamento.
_ Diferente latitude dos titulares do direito de interpor acção de anulação;
_ Diferença nos prazos para tal propositura.

O exame da lei.
Casamentos em que se verificam causas de anulabilidade (artigo 1631º); as situações que o legislador toma em consideração
Será anulável o Casamento contraído com impedimentos dirimentes: vimos reiterando este aspecto.
Estes impedimentos inserem-se em mais de uma espécie.
Designam-se de impedimentos dirimentes absolutos e relativos.
Alguns impedimentos dirimentes relativos foram objecto de referência anterior, a propósito do Parentesco. Recordarão que se afirmou na altura que se reporta, a esse propósito, àquelas situações em que a ilegitimidade conjugal advém de um laço de parentesco próximo (linha horizontal ou 2º grau da linha colateral) ou de afinidade, tão só na linha recta.
Outros existem, contudo.
Encontrámos aí, pois, impedimentos dirimentes relativos. O problema que eles colocam não é o da invalidade do casamento de A com qualquer pessoa, mas o casamento de A com certas pessoas, parentes, afins, adoptados seus.

Ex: A casa com um irmão. A titularidade para intentar a acção encontra-se fixada no artigo 1639ª. O prazo tem sede legal no artigo 1643º.

A extensão da categoria dos impedimentos dirimentes relativos é, porém, maior.

Abrange:
_ A afinidade na linha recta;
_ A condenação de um dos nubentes pelo homicídio doloso, tentado ou consumado, como autor ou cúmplice, na esfera jurídica de cônjuge daquele com quem se realizou o casamento;
Chama-se a atenção para a titularidade e prazos de acção judicial contidos nos artigos 1639º e 1643º, bem como para o seu regime.

Há situações em que a qualificação “impedimento dirimente” vai ainda abranger os casos, não já de insusceptibilidade de aptidão para casar devida a uma relação de parentesco (relativa a pessoa determinada, pois) ou a relação específica com a pessoa do outro cônjuge (este foi o parceiro da vítima de homicídio tentado ou consumado, em autoria ou relação de cumplicidade), mas por igual, as situações de insusceptibilidade erga omnes:

_ Idade inferior a dezasseis anos;
_ Impedimento por demência notória (mesmo durante os intervalos lúcidos);
_ Por haver casamento católico ou civil anterior não dissolvido, mesmo que o assento do matrimónio não tenha sido lavrado no registo civil respectivo (artigo 1601º);

Ex: A tem uma doença que os médicos não diagnosticam como mental grave, mas que provoca distúrbios graves no comportamento, não obstante não se verificar constância desta anomalia. A lei engloba tais situações no núcleo daquelas que darão origem a impedimento matrimonial.

Para além destas situações, compete chamar ainda a depor outras em que se verificam falta ou vícios de vontade.



O consentimento
A lei presume a liberdade do consentimento (artigo 1634º).
Tanto o erro como a coacção relevam, sim, mas dentro dos pressupostos legais e só deles (artigo 1627º).
A vontade presume-se.
Configuram falta de vontade de casar aquelas situações em que se verifica, no momento da celebração matrimonial, falta de consciência do acto. Esta poderá ser provocada por incapacidade acidental (o caso que aliás, a lei refere) mas ainda por outros motivos (artigo 1635).

Sublinham-se as características do erro-vício contemplado no artigo 1636º Este, além do mais:
_ Deverá recair sobre a pessoa do outro nubente;
_ Deverá versar sobre uma qualidade essencial sua.

Mas que se entende por “qualidade essencial”?
O conceito de “qualidade essencial” é mais um conceito indeterminado. A origem está na Reforma de 77. À jurisprudência cabe analisar a sua verificação. Mas de um modo geral considera a doutrina que erro sobre aspectos mais relevantes, comportamento ao longo da vida, existência de doenças graves, cabem aqui. E tudo o mais será de problemática inclusão.
Este erro deve ser ainda compreensível, desculpável. Se o facto agora alegado era uma evidência, não é desculpável o erro.
Por fim, a propriedade do erro, com soluções divergentes na doutrina: a tese segundo a qual o erro não poderá recair sobre um requisito legal de validade ou de existência do casamento (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira e Antunes Varela); a tese segundo a qual o erro só não poderá recair sobre um requisito legal de existência do casamento (Jorge Duarte Pinheiro).


Coacção
Também a coacção, nos termos do artigo 1638º, é fundamento de anulação.
O artigo 1631º apresenta o regime destas situações.

Regras das invalidades:
O regime destas invalidades obedece a regras.
Assim:
Se o casamento foi contraído com algum impedimento dirimente, a legitimidade para invocar a invalidade é da titularidade do cônjuge mas também dos parentes na linha recta e ainda dos colaterais até ao quarto grau, herdeiros e adoptantes, bem como do Ministério Público.
Há uma razão a fundamentar esta extensão: o interesse público em não manter tal Casamento.

Mas verifica-se uma especialidade dentro deste grupo. Sempre que o motivo da anulabilidade é temporário, a lei admite que ela seja sanada. Para esse efeito, fixa a lei então um prazo para a propositura da acção; ou ainda, não admite que a anulação seja requerida a partir do momento em que deixou de se verificar a razão de ser da anulabilidade. É, se virmos o elenco legal, o caso das situações de demência notória, falta de idade nupcial, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica, casamento anterior não dissolvido.

Se o motivo da anulabilidade for permanente, não permite a lei que seja sanada. Acontece nos casos de parentesco ou afinidade sempre que funcione esta como impedimento, parentesco no 2º grau da linha colateral e condenação anterior por homicídio, no caso que a lei contempla. Neste último caso, a lei marca, curiosamente, um prazo curto para a propositura da acção: três anos.

Há casos em que a anulabilidade visa proteger o interesse de um dos cônjuges. Sendo assim, apenas este pode requerer a anulação. Contemplam-se aqui os casos de incapacidade acidental ou de falta de consciência do acto: erro sobre a identidade física do outro cônjuge; coacção física; erro vício; coacção moral.

Enfim, há casos em que só o Ministério Público pode propor a acção de anulação, dado que só o interesse público está lesado: o caso de falta de testemunhas na celebração.

Qual a razão de ser deste regime que, em última análise, procura reservar os efeitos do Casamento à esfera dos directamente interessados e apenas chamando à titularidade judicial a família, o Ministério Público?

Sublinha-se o cuidado de evitar tudo o que dissemine os efeitos de comportamento moral indesejável, de evento social a vários títulos desastroso. Aparentemente, dir-se-á que em nome da instituição se actua juridicamente, que esta tolerância exprime sólidos princípios institucionais. A posição do legislador evita o estigma que possa advir destas situações. O efeito de imitação social que o legislador pretende tem uma capacidade de imposição jurídica que a realidade, aliás, testemunha.


Casos:
Ex: Xavier faz saber a Eulália que todos os documentos que tem em sua posse sobre o passado criminal desta, e até agora ocultado, virá à tona, caso ela não case com Firmino, filho de X, que precisa de um apoio experiente e de uma mão forte na liderança da sua vida: Eulália, precisamente.
Ponderando entre o opróbrio do aviltamento social e a expectativa da situação económica do marido, Eulália preferiria a primeira; mas não quer “cair na lama” de uma sociedade pouco tolerante, em seu entender e casa.
Se, porém, Eulália casasse por outro motivo: ponderando, concluísse que a actual situação económica do futuro marido e a herança dos sogros são bem tentadoras, auguram um futuro apetecido.

Suponhamos que Gabriela se enamora de Hermano e não sabe que Hermano tem um passado turbulento: droga, crime organizado, militância terrorista…

Imagine que, ao saber a verdade, Gabriela se desinteressa desse aspecto: afinal, tem o padrão de vida que desejou, o marido é hoje uma pessoa integrada socialmente, adaptada a um correcto agir de acordo com os critérios aceites de convivência.

Um ano mais tarde, porém, conhece Ivo e enamora-se profundamente. E quer reaver o estado de solteira. Para isso, intenta uma acção de anulação do seu casamento com Hermano. Invoca ponderação recente do perigo que pode representar o comportamento anterior, traço de personalidade decerto, embora nunca anteriormente tenha pensado no assunto; nem quando soube o “passado criminoso”.

Casamentos em que se verificam Impedimentos Impedientes (artigo 1604º): a especificidade.
Bem mais “permissivo” é este regime, que compreende aqueles parentes mais distantes na relação genética e porventura, ainda cultural.
A propósito do Parentesco vimos estes impedimentos impedientes, também denominados de Impedientes.
Existem vários outros:
_ Falta de autorização para casamento de menores, quando não suprida;
_ Prazo internupcial;
_ Parentesco no 3º grau da linha colateral;
_ Vínculo de tutela, curatela e administração legal de bens;
_ Adopção restrita;
_ Pronúncia do nubente por homicídio, consumado ou tentado, contra o cônjuge do outro

Alguns destes impedimentos são susceptíveis de dispensa (artigo 1609º).
Os impedimentos podem ser denunciados (cfr. o artigo 1611º).


Nótula: Se A casou com B convencido de que este é o seu amigo Pedro, um conhecimento de férias, mas vem a concluir que afinal “Pedro” tem a particularidade de ser oriundo do planeta Alfa, é um ser com todas as características dos humanos, mas, de facto, não nasceu entre os humanos, é “como nós”, que situação se nos depara?
Sustentaria sem grande margem de hesitação que o casamento é inexistente. Por mais aproximada que seja a realidade de “Pedro”, certo é que o desconhecimento, não apenas acerca da sua realidade concreta, como da espécie em que se integra, suscitará pesos e medidas adequados a foros diferentes. Será respeitável nos termos dos seres humanos enquanto nada indiciar outros aspectos (perigo para terceiros, por exemplo), destinatário de todas as normas que dizem respeito ao reconhecimento e defesa dos direitos das pessoas. Na esfera familiar, cremos que seria destituída de sentido uma equiparação que levasse a encarar como possível a homogeneidade entre as relações da intimidade familiar e esta outra.

início do Casamento:
_ Preliminares no Casamento Canónico e efeito sobre o português
_ Informalidade progressiva
_ Promessa e efeitos
_ Convenções Antenupciais]










+
















VIII

Casamento Putativo
Por último, uma referência nesta fase ao Casamento Putativo (artigos 1647º e 1648º).
Sempre que um casamento inválido seja contraído de boa fé em uma das partes produz os seus efeitos, em relação a ele ou a terceiro, até à declaração de invalidade (mais precisamente, até ao trânsito em julgado desta). Seja qual for a esfera onde se actuou: patrimonial, pessoal…
Se porventura a boa fé se tiver estendido a ambos, assim será, por igual.
A boa fé significa aqui a “ignorância desculpável” do motivo que inquina o contrato. Mister será que olhemos a realidade: o meio circundante do agente; a sua condição pessoal, social; numa palavra, a sua circunstância, o “aqui e agora”. Pois, se casos existem em que é notória a atitude de desconhecimento do sentido do contrato celebrado, outras se verificam também em que este seria, em princípio, detectável e só não o foi por incidente, aspecto ocasional. Em suma. Caso os celebrantes de casamento inválido estejam ambos de boa fé, serão considerados válidos os actos jurídicos celebrados durante aquele tempo que nem por isso deixa de ser de irregularidade.





Se, porventura, a boa fé se colocar apenas em relação a um deles, será ele o beneficiário único da situação, bem como terceiros que estabeleçam relações jurídicas.
Protegidos, aqui, são as partes contratantes na correcção do acto que praticaram, escorado em sãos princípios. E são-no ainda terceiros que entabularam negociações, imbuídos do mesmo espírito.

Fazendo então o percurso de síntese acerca das invalidades matrimoniais, diremos que:
1. Atingem em primeira linha quem olha o casamento (seja permitida a imagem) do outro lado do espelho. Não como a lei diz que ele é, mas desfigurando o seu modelo, a sua configuração legal [NOTA: a lei confere o epíteto de inválido ao casamento inexistente, uma vez que isso mesmo resulta do artigo 1629º. Quem cada com pessoa do mesmo sexo; quem afirma casar mas não profere as necessárias palavras ou sucedâneos possíveis (gestual…, sempre acompanhado); quem não casa em tempo oportuno perante as autoridades competentes (logo que celebra o contrato; em caso de urgência, por regra devida a situação de parto iminente ou de morte iminente, nos termos que a lei requer, mas não se compadecem, em validade, sem uma homologação, nos termos da lei(;;
A inexistência do casamento, note-se, não é impeditiva da validade dos casamentos ante funcionários de facto, a menos que houvesse conhecimento, por parte dos nubentes, da situação criada. A lei tem o cuidado de nem considerar anuláveis tais casamentos e dá-os por válidos.

Mais complexa juridicamente é a restante panóplia das invalidades.
Encontramo-las na lei devidas a dois tipos de fundamentos: Impedimento dirimente e falta de vontade.

No primeiro caso, encontram-se aquelas situações de falta de idade núbil, demência notória, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica (artigo 1601º)
No outro caso, os parentescos, na linha recta e 2º grau da linha colateral, afinidade na linha recta, homicídio de um dos cônjuges na pessoa de cônjuge do outro (artigo 1602º).

A falta de vontade reporta-se a situações de vontade viciada por erro ou por coacção.

De sublinhar que há uma dualidade no plano das consequências jurídicas para o primeiro caso (artigo 1601º).
Com efeito, ao passo que a sua subsistência pode produzir efeitos graves_ mais, produzi-los-á em princípio_ não é impossível que se dê o caso de isso não acontecer.
Em que circunstâncias? Uma vez desaparecido o vício que se verificava.
Caso

Concluímos assim que a lei rodeia de maior probabilidade o deslaçamento do matrimónio inválido a partir de dois eixos. Por um lado, a titularidade para desencadear o fenómeno jurídico, que é mais ampla aí onde se considera mais grave a subsistência da situação, sem prejuízo de sempre o Ministério Público ser um dos detentores da competência. A partir de que critérios? Creio que de critérios que relevam da sua apreciação e nunca de “fenómenos de imitação”. Ou seja: no plano das considerações do Ministério Público, não tem lugar qualquer ponderação sobre o comportamento dos outros titulares do direito a interpor acção de anulabilidade.
Por outro lado, funcionará o factor tempo, que a lei considera em grandezas diferentes conforme o desvalor que atribui ao contrato celebrado.

Mas em todo o caso está o legislador atento a que, pese a invalidade que inquinou a situação, esta se celebrou não raras vezes entre agentes de boa fé (ambos, ou um deles) e produziu efeitos perante terceiros.
É a atenção a este factor que está na base do chamado Casamento Putativo.
O Casamento Putativo não corresponde, como é evidente, a uma forma de celebração matrimonial própria, diferente. É antes a expressão do reconhecimento do legislador perante certos casamentos que, posto que anuláveis e na iminência de que essa anulabilidade produza efeitos (porque foi arguida e lhe deu razão a entidade judicial) ainda assim tem em mente a injustiça que representará tratar como “não existente” em toda a extensão um fenómeno que as duas partes celebrantes, ou pelo menos uma delas, bem como terceiro ou terceiros que com elas tenham celebrado negócios jurídicos, intervieram.
Que faz então?
O mecanismo do Casamento Putativo consubstancia uma ficção jurídica. Tudo acontecerá, enquanto durou a situação de boa fé no seio do casamento inválido, como se este se transmutasse em válido. E depois? A partir daí, ou seja, fora das margens deste contexto, a invalidade impera.
Bem se compreende a necessidade de delimitar a zona de produção de efeitos do Casamento Putativo.

Ex: A casou com B e o casamento foi anulado. Quando a anulação ocorre, já A falecera e B herdara. Sucede que o tribunal considerou que B não estivera de boa fé. Sendo assim, não se dará o caso de ser B herdeiro de A.

A doutrina evidencia a este propósito os casos em que os efeitos produzidos decorrem de relações entre os cônjuges putativos e outras relações, também, mas conexas com aquelas. São estas que valerão face a terceiros.
Diferente é a situação em que A e B, protagonistas de um casamento que vem a ser anulado, celebram doação: A doa um apartamento a B.
O negócio jurídico não releva na perspectiva de terceiros.

Natureza do casamento putativo
Se observarmos a lei, vemos que esta autonomiza a figura do Casamento Putativo. Poderia, por hipótese, tratá-lo na corrente dos artigos que dizem respeito ao regime das invalidades, pois que consubstancia, afinal, nem mais nem menos do que um critério de delimitação de várias destas, em circunstâncias contadas, que referimos já. Porém, a opção é outra e o Casamento Putativo surge-nos lado a lado com as Invalidades, criando a ideia de que é uma espécie de casamento, ainda que dotada de um padrão muito peculiar.
A doutrina, em grande medida, vai por aquele outro caminho que também seguimos. Não é, creio, a solução mais correcta, ver o casamento putativo que não seja como critério que excepciona a invalidade geral de casamentos. É a invalidade como pano de fundo que mais depressa nos conduz à essência destas figuras, a qual reside no carácter excepcional da permanência de efeitos jurídicos, uma vez declarada a invalidade.
A tese contrária tem uma explicação, é certo, mas que não se articula à figura actual que encontramos na lei. É uma tese sustentada no princípio de que, posto que precariamente, aquele casamento existiu e tem por esse facto toda a dignidade essencial reconhecida ao matrimónio. Mas a tese não colhe: são motivos de ordem pública que estão na origem do seu afastamento da esfera jurídica; e estes motivos justificam que se encontre aqui um factor de separação face ao casamento normalmente celebrado, válido. Salvar efeitos decorrentes da boa fé ou do alheamento de terceiros face ao fenómeno não significa o mesmo que reconhecer no fenómeno um verdadeiro matrimónio.
Concluímos portanto. Não creio que o Casamento Putativo deva ter outra consideração legal que não a de uma ficção: uma excelente ficção jurídica, aliás. Foi com base na sua construção que se permitiu preservar, no caudal de invalidade de um Casamento que não subsiste por razões ponderosas, aquele núcleo em que a lei se tornaria injusta caso aplicasse todos os efeitos que na pureza dos seus princípios se antevêem. E o que acontece agora? Com a figura do Casamento Putativo, nunca o nubente de boa fé será prejudicado. Os efeitos benéficos que se puderam produzir na constância do contrato vão manter-se. Vão manter-se, porém, na esfera jurídica dele.

Ex: A, de boa fé, foi herdeiro de B, com quem celebrara um casamento inválido e que morre antes de decretada a invalidade do casamento. Como a circunstância o beneficia, vê-a permanecer. Caso, porém, estivesse ele de boa fé, e houvesse que proceder ao pagamento de uma dívida, o carácter desvantajoso da situação leva o legislador a não o onerar.

E se entabular relacionamento com terceiros?
Dependerá da circunstância. Caso esses terceiros celebrem com este nubente um contrato que apenas atenda à circunstância pessoal (escrever a biografia de alguém) os efeitos do casamento não são chamados a depor. No entanto, se o contrato disser respeito a bens que sejam conjuntamente administráveis pelos dois cônjuges, há um nexo claro de dependência face ao casamento, e logo, á pessoa do outro cônjuge, Assim, não se entenderá de outro modo que não pela produção de efeitos para terceiros, caso um dos contraentes esteja de boa fé e beneficie com a permanência dos efeitos produzidos.



+







IX


Deveres pessoais. O dilema das normas respectivas depois da última Lei do Divórcio


Até aqui, o Casamento na sua evolução tradicional. Mas é esta a evolução de estudo compatível com a realidade que se vive?
Diria que o novo padrão do Divórcio modifica muitos aspectos.
Quando falo em padrão do divórcio não refiro necessariamente a Lei que entrou em vigor no final de 2008. Claro que esta o cunhou de modo decisivo. Refiro, sim, mais longe, toda a modificação que opera no regime de bens que pode mudar mercê da destruição da sociedade conjugal e as suas consequências; e uma espécie de toque aditivo na realidade que vinha de antanho e era já, nos tempos mais recentes, uma inversão do modelo dos deveres pessoais anteriores.
Falo, claro está, dos deveres pessoais. A lei enumera-os virtuosamente e todavia, apõe cautela: os conceitos usados são por vezes normativos. A comunhão de leito, o núcleo essencial do casamento, é cada vez mais ténue, numa lei que não o logra conceptualizar e sabe até que ponto deve pactuar com excepções inevitáveis. O voluntarismo do casal impôs-se. As pessoas permanecem casadas se assim entenderem, a





despeito do incumprimento de deveres legais e muito para além deles. A realidade deste mundo e sobretudo, a produção de efeitos jurídicos, dependem de uma propositura de acção de divórcio. É a arguição do fim do casamento que traz à superfície a sua oportunidade como critérios de prova, no caso de apenas um dos cônjuges pretender manter-se casado.
Creio que nos aproximamos, de facto, do regime alemão, que impõe a declaração às partes de falta de condições para que a realidade conjugal subsista, mas não mais do que isso. E tudo o resto são temas da esfera de intimidade que o juiz não terá margem de acção para conhecer e ponderar.























B:-EXCURSO: INEXISTÊNCIA; INVALIDADES MATRIMONIAIS

Relembramos, a terminar este ponto, o esboço de problemas relativos às invalidades cujo enunciado se apresentou. O propósito era o de chamar a atenção para o conceito de invalidade no Direito português, uma vez que se chamaria a depor a invalidade do casamento religioso.
Sendo esta a sequência usada, seguiremos com a apresentação dos tipos de invalidades que a lei consagrou no direito português. Não se tratará de as analisar com exaustão, mas de ver o núcleo de problemas normativos em que se inserem estas realidades que, no Direito da Igreja, assumem uma feição específica.
Por outras palavras: veremos se são “parecidos de família” os casamentos anuláveis ou até inexistentes da nossa lei e os casamentos nulos segundo o Código de Direito Canónico.


Casamento: Inexistência, Invalidades
Não me parece viável a compreensão do regime de invalidades de formas de Casamento, designadamente de Casamento Católico, afloradas pela CRP e resolvidas pela lei civil em vários momentos, sem estarmos na posse de uma noção geral acerca das invalidades que perpassam o Casamento segundo a lei em vigor.
Por isso voltamos ao tema, com abordagem tópica mas que permita guiar o seu acompanhamento.
Remeto para a lei e para a doutrina citada o regime pontual, vertido ao longo dos preceitos do Código Civil, para esta matéria. Chamando, naturalmente, a atenção para o prazo internupcial exigido, quando este se impõe, bem como a sua justificação.
Vejamos primeiro os casamentos inexistentes (artigo 1628º).
Serão aqueles que tenham sido celebrados perante alguém que não tenha competência funcional para o acto, salvo tratando-se de casamento urgente;
O casamento urgente não homologado;
O Casamento que foi celebrado entre pessoas que não manifestara a vontade nesse sentido.
O elenco do artigo 1628ª explicita este núcleo que deixamos aqui aflorado nos seus tópicos mais salientes.
O casamento inexistente não produz efeitos
Casamentos em que se verificam causas de anulabilidade Cfr. Artigo 1631º).
Será anulável o Casamento contraído com impedimento dirimente;
Celebrado, por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de vontade ou com vontade viciada por erro ou coacção;
Sem a presença de testemunhas, nos casos em que a lei as exija.
[cumpre analisar com cuidado os artigos 1624º e seguintes, relativos a situações que configuram falta ou vícios da vontade]

HIPÓTESES A RESOLVER

Casamentos cuja invalidade decorre de falta de vontade de celebrar matrimónio:
Caso 1
Ex: Xavier faz saber a Eulália que todos os documentos que tem em sua posse sobre o passado criminal desta, e até agora ocultado, virá à tona, caso ela não case com Firmino, filho de X, que precisa de um apoio experiente e de uma mão forte na liderança da sua vida: Eulália, precisamente.


Ponderando entre o opróbrio do aviltamento social e a expectativa da situação económica do marido, Eulália preferiria a primeira; mas não quer cair na lama e casa.
Como se qualificará a situação? [veremos o problema de novo quando da análise do Casamento]



Caso 2
E se, porém, Eulália casasse por outro motivo: ponderando, concluísse que a actual situação económica do futuro marido e a herança dos sogros são bem tentadoras, auguram um futuro apetecido?
Idem, nota anterior

Caso 3

Suponhamos que Gabriela se enamora de Hermano e não sabe que Hermano tem um passado turbulento: droga, crime organizado, militância terrorista…
Releva este erro para efeito de invalidação?
Ibidem, primeiras hipóteses.


Casamentos em que se verificam Impedientes (artigo 1604º): a especificidade.

Bem mais “permissivo” é este regime, que compreende aqueles parentes mais distantes na relação genética e porventura, ainda cultural.
Caso
Se Teresa resolve casar com Urbano, sendo que se trata de sobrinha e tio, o casamento não está fora do horizonte jurídico.
Porém, em que termos? E que sucederá, caso não sejam promovidas antes as providências necessárias?
[A lei separa as situações em que a impossibilidade de casar incide sobre certas pessoas daquele casos que afinal estão na linha jurídica das invalidades negociais em termos amplos. Não estando ainda no âmbito da análise dogmática do Casamento, chama-se a atenção para a sistematização da Lei, que reflecte esta preocupação].



REVISÃO DE MATÉRIA

Casamento e União de Facto: o núcleo pessoal exigível

E abandono por um tempo este mundo do Parentesco para voltar àquelas formas de Família que se revelam menos ortodoxas. Penso nos pressupostos da União de Facto, por comparação com os do Matrimónio, a forma de união intersubjectiva por excelência.
A razão deste breve regresso deve-se ao necessário apuramento do grau de consolidação que se deve exigir à relação entre os unidos de facto, de modo a que as consequências jurídicas da União operem.
_ Suponhamos que Diana e Fernando casam, combinando à partida que interpoladamente viverão separados e se comportarão pondo de parte vínculos conjugais. Durante uma dessas fases, Fernanda Morre.
Não se põe em causa a subsistência do casamento, que entre ambos vigorava nos termos de uma vontade pessoalmente conformada e se submetia ao regime formal próprio.
Mas suponhamos agora que Diana e Fernando são unidos de facto, meramente. E que fizeram acordo idêntico. Quando morre Diana, tem Fernando direito, por hipótese, à casa de morada de família, como tendo vivido em União de Facto protegida?
Em princípio, parece correcto afirmar que sim. Pois terá sentido conferir menos plenitude de efeitos a este tipo de união, que se pretendeu mais informal, “descomprometida”, do que sucede com a união formal por excelência?
Direi que Diogo e Fernando casados assumem publicamente o seu compromisso _ na esfera pública, através do contrato que celebram. Isto projecta na comunidade um reconhecimento directo da situação/estatuto pessoal de ambos, de tal modo que, não manifestando o casal outra vontade. Será o Casamento e os seus efeitos que a sociedade esperará acolher.
Diana e Fernando, unidos de facto, exibem uma atitude de indiferença ante a esfera pública, ao menos, no que faz secante com os elementos essenciais da sua relação de União. O ónus de provar a existência de direitos decorrentes desta corre a cada passo, a cada momento da existência da União de Facto. É a opção do casal; é o modo de respeitar, em plenitude, as consequências jurídicas.
O mesmo tipo de argumentação se pode chamar a depor a propósito da famigerada aplicação do artigo 496º do Código Civil ao unido de facto sobrevivo.
Se bem recordam o exemplo, que não consta em pormenor destes “Sumários” mas foi discutido nas nossas aulas, questionámos a bondade de uma interpretação restrita, ou literal, da lei. Uma interpretação que permita ao unido de facto assumir o lugar de um cônjuge sobrevivo inexistente, muito à frente de parentes afastados, em nome da dor que com toda a probabilidade é muito mais intensa do que a dor de um daqueles.
Que dizer? É indiscutível a maior proximidade do espírito da lei deste unido de facto, do que a de parentes afastados. Por outro lado, o argumento demolidor do direito dos unidos de facto a perceber danos morais, que será a total “surpresa” dos destinatários do ressarcimento, a violação consequente do princípio da segurança jurídica, não tem uma densidade evidente. Com efeito, terceiros adstritos ao pagamento da indemnização dificilmente terão mais do que uma ideia remota acerca do núcleo dos visados: assim como a expectativa destes será lassa, na maioria dos casos.
Em que ficamos?
Diria que a lei não privilegia aqui, nem uma relação concreta de parentesco ou outra, nem de proximidade. Olha a existência da dor e do direito a compensá-la face aos principais visados. Publica ou privadamente assumidos, os unidos de facto estão aqui. Deverão perceber a indemnização, nos termos que a lei estipulou para o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens. Penso que as regras gerais do Código Civil em matéria de integração de lacunas (cfr. a “norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar de acordo com o espírito do sistema”) resolvem legitimamente o problema. Não será mister criar legislação específica para o caso: a solução decorre já da ordem jurídica portuguesa.
Direito da Família na Constituição (continuação)
Chama-se a depor, agora, o papel que a Constituição comete à protecção constitucionalmente imposta dos menores.
Começo em breve trecho sobre a procriação medicamente assistida, É certo que muitas vezes a sua localização problemática não surge aqui, antes a propósito do Casamento, ou de outras relações familiares. Compreende-se a referência biológica inerente (terá de haver uma decisão de progenitor ou progenitores) mas nada tem a ver com o eixo fundamental, a fonte de legitimidade desta procriação. Pois antes de mais, do que se trata é de aquilatar do bem fundado de gerar seres humanos em condições diversas das habituais, sendo evidente que persiste um quadro de desconhecimento, biológico desde logo e com evidentes repercussões de ordem pessoal, afectiva, a perpassar toda a sequência procriativa.
Pergunta-se, então, acerca da legitimidade de trazer para este mundo desconhecido ainda mais factores de desconhecimento, sobre a origem da pessoa e a sua subsequente situação; sobre os efeitos do “factor desconhecimento” e as suas consequências. Que garantia temos de dar por adquirido, procedendo assim, o respeito pela dignidade humana, ao permitir que acresça uma margem de desconhecimento acerca deste novo ser, margem que não decorre da álea da criação em geral, mas de outros factores que trazem consigo suspeita de complexidade e efeitos ainda insondáveis.
Creio que toda a discussão a fazer acerca das condições particulares que possam atribuir maior margem de favorabilidade a uns casos ante outros (cfr. casais que se provam impedidos de procriar e afirmam o impulso da maternidade/paternidade) não prescindirá esta reflexão prévia. Pois não se trata primacialmente de fundamentar um direito familiar, porventura situado na esfera recôndita dos direitos à maternidade e paternidade, à expressão dos afectos. O direito que antes do mais se ergue é o de cada pessoa e da sua circunstância. E posto que não podemos alterar aspectos essenciais de uma e outra, convirá, por igual, que os não pretendamos definir de acordo com as nossas mundivisões, padrões…
Já noutro plano, coloca-se o domínio dos direitos/deveres dos pais e encarregados da responsabilidade sobre a educação do menor. A lei, ao longo de muitas normas, que a Filiação exprime mas também a constituição firma, tal como as Declarações Internacionais, chega a um sistema de incumbências sobre cada educador. Este sistema cresce, a ponto de se reflectir sobre outros ramos do Direito. Uma mais forte consciência social das obrigações para com as crianças corrobora uma legislação densa noutros aspectos; estou a pensar no direito criminal perante os menores.
Também o artigo 36º da CRP desempenha um papel neste domínio, que se estudará mais à frente, pelo que se faz agora uma abordagem tão breve e remissiva.